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As 6 razões do fenómeno Baby Reindeer, a minissérie mais vista da Netflix

O comediante britânico Richard Gadd escreveu e protagonizou “Baby Reindeer”, inspirado nas suas próprias experiências na vida real. A minissérie sobre uma perseguição obsessiva e o abuso sexual, combina o apelo de uma história de suspense com um profundo sentido de empatia com os dois estranhos personagens. O final, sem revelarmos na totalidade, ilustra bem porque “Baby Reindeer, disponível no streaming da Netflix, se tornou uma das séries top do ano de 2024. Atenção este texto tem (um pouco de) spoiler!

A minissérie de 7 episódios “Baby Reindeer” estreou na Netflix, em abril passado, discretamente e sem grande alarido, depressa se tornou numa das séries mais faladas de 2024 e pelos mais variados motivos.

O último é porque sendo “Baby Reindeer”, baseada em factos reais, a suposta verdadeira Martha de “Baby Reindeer”, uma advogada escocesa chamada Fiona Harvey, garantiu durante uma entrevista ao sempre polémico Piers Morgan — o da entrevista com CR7 — que o criador da série o comediante Richard Gadd é ‘psicopata’, que não era ‘obcecada’ por ele e que pretende processá-lo, assim como à Netflix.

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Já vemos isto, porque não é difícil perceber a razão de tanto sucesso e tanto falatório acerca da série, que continua a chegar às redes sociais, e que deve grande parte do seu sucesso ao boca-a-boca.


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Uma poderosa experiência teatral

Baseada num premiado monólogo teatral, estreado no Festival Fringe de Edimburgo em 2019,  escrito e interpretado pelo comediante escocês Richard Gadd, “Baby Reindeer” é um emocionante e inquietante thriller psicológico, sem crimes de sangue, sobre uma história intensa e pessoal que chega aos ecrãs, explorando temas da obsessão, vulnerabilidade e trauma.

A minissérie “Baby Reindeer” começa o seu primeiro episódio, com Martha (Jessica Gunning), uma advogada escocesa e obesa de meia-idade, emocionalmente frágil, que fica fascinada pela gentileza que Donny (Gadd) lhe demonstra, ao oferece-lhe uma bebida de borla, no bar onde este trabalha para ganhar a vida, apesar de à noite ser um falhado comediante de stand up.

Aos poucos e ao longo do primeiro episódio, as carências de Martha começam a vir ao de cima e a tornarem-se cada vez mais assustadoras e obsessivas. E a coisa complica-se quando Donny descobre que a sua ‘nova amiga’ tem um historial de assédio e de perseguição a outras pessoas.

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Entretanto já começou o que acabará por se tornar uma torrente de abusos, inundando o seu e-mail e as suas redes sociais com mensagens mal escritas, que insultam o seu caráter e, por vezes, o ameaçam mesmo com violência sexual.


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Uma grande eficácia dramatúrgica

Na verdade o que torna “Baby Reindeer” tão eficaz do ponto de vista dramatúrgico é que, à medida que Martha se envolve cada vez mais na vida pessoal de Donny — assistindo aos seus péssimos espetáculos de comédia, fazendo amizade com a sua senhoria e ex-sogra, telefonando aos seus pais — o público partilha os seus sentimentos crescentes de desamparo e frustração, intercalados com lampejos de compaixão pelo personagem.

Na verdade, os dois personagens são profundos e complexos, com Gadd oferecendo uma performance visceral e autêntica como ele próprio; e com Jessica Gunning, (“The Outlaws”) a dar vida a Martha com uma intensidade perturbadora, capturando a essência da obsessão e da manipulação psicológica.

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A série tem digamos o apelo de um verdadeira ‘catástrofe emocional em câmara lenta’, ao estilo de um documentário sensacionalista sobre a implosão de um edifício em ruínas ou sobre crimes reais, mas equilibrado com a empatia que vamos sentindo, por duas pessoas profundamente destruídas e frágeis.

No entanto, uma história tão sombria e perturbadora como esta precisava de um final à sua medida. E efectivamente “Baby Reindeer” tem um final satisfatório nos seus detalhes, mas muito perturbador nas suas implicações. Gadd (que escreveu todos os episódios), digamos que planta as bases para uma espécie de falso final no penúltimo episódio, o sexto, que termina com Donny a sofrer um colapso emocional, que altera a sua carreira, enquanto participava numa competição de comédia ao vivo.

O estilo cómico de Donny é altamente discutível e conceptual, apesar de esforçado, porém os seus adereços são ridículos e as suas piadas secas, são um tanto estranhas, criadas para deixar o público a pensar se deve rir ou ficar sério e desconcertado, com aquele estranho humor. Donny é aliás uma espécie de versão escocesa — mas de facto muito menos eficaz — de um Steve Martin na altura do seu álbum “Wild and Crazy Guy” de 1978, que tem também uma versão audiovisual, disponível no streaming da Mubi.

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Uma experiência aparentemente muito pessoal

Como diz o próprio Donny em “Baby Reindeer”: “sou um comediante quando eles estão a rir, um artista sério quando não estão.” Por isso, quando o público dos pequeno palcos ou dos pubs de stand up, não se envolveu com a sua proposta de humor durante essa competição, Donny livra-se dos seus adereços e limita-se a falar, a falar…partilhando surpreendentemente com os espectadores atónitos, a sua história pessoal, a que assistimos, pelo menos em dois dos cinco episódios anteriores: quando ainda se iniciava jovem comediante inexperiente, aceitou uma colaboração não remunerada de Darrien O’Connor (Tom Goodman-Hill), um cinquentão e respeitado criador de comédia para televisão, que várias vezes em sua casa se aproveitou dele, drogando-o e agredindo-o sexualmente; e depois fala também, — algo que também já vimos antes — sobre o seu relacionamento com Teri, a namorada transexual, (interpretada pela atriz mexicana Nava Mau), que tem vergonha de beijar em público e de assumir uma relação mais estável. E, claro, conta-lhes sobre Martha, o anjo e demónio que carrega nos ombros: às vezes ela diz-lhe como ele é doce, engraçado e bonito, e às vezes chama-lhe degenerado, sem talento e sem força de vontade.

No início do sétimo e último episódio da série, um vídeo sobre essa falhada mas emocionante prestação ou melhor confissão de Donny na competição de stand up, chega ao YouTube (com o título “Comediante sofre ao vivo um colapso épico”), dando-lhe na verdade uma fama viral e novas oportunidades de trabalho, que até aí nunca tinha alcançado.

Porém, a pressão deste aumento de notoriedade, juntamente com o fluxo incessante de mensagens de voz ameaçadoras de Martha, leva Donny a confessar aos seus pais, — um casal escocês aparentemente bem tradicional — inesperadamente compreensivos, de que foi violado nas circunstâncias que conhecemos; que está confundido quanto à sua identidade sexual; e que tem ou teve — porque entretanto zangaram-se — uma namorada transexual.

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No fundo, todas estas confissões e uns dias em casa com os mimos da família, parecem ser bastante libertadores. Contudo, logo de seguida, mais uma das ameaças de Martha torna-se suficientemente grave para que esta seja detida pela polícia e, eventualmente, presa durante uns dias.


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Donny vive feliz, mas não para sempre

Gadd leva o conflito entre Donny e Martha a uma conclusão lógica, na qual Martha parece reconhecer finalmente o dano que lhe causou ao declarar-se culpada. Assim, Donny vive feliz…mas não para sempre.

Não mais do que, alguns dias. As ambiguidades perturbadoras do epílogo de “Baby Reindeer” — o verdadeiro final, ocorre depois de Martha ser finalmente presa — começa primeiro, com Donny a ouvir obsessivamente em podcast as mensagens antigas de Martha e a transformar cada uma das suas interações passadas em peças de um puzzle que pendura na parede do seu quarto, como se fosse um storyboard ou um painel de um detetive, que tenta resolver um complicado crime de homicídio.

A sua investigação, leva-o até à porta do homem que abusou dele, onde Donny estranhamente, cai no antigo padrão de deferência e vontade de lhe agradar. Depois, na chocante cena final, um bem-parecido barman oferece uma bebida de borla a Donny, com os olhos marejados e fixos nele, soando ao que este fez em tempos com Martha.

Porque é que o Donny está afinal ainda tão em baixo psicologicamente? Parece estar ainda a processar o que Martha e Darrien lhe fizeram e fica furioso consigo mesmo por não ter enfrentado o seu agressor. Alcançou a fama que sempre desejou e descobriu que isso afinal não tinha resolvido todos os seus problemas.

O clímax, ou melhor o desenlace final, surge quando, ao ouvir uma das mensagens antigas de Martha que lhe chama de ‘pequena rena’, Donny escuta-a explicando que ele faz lembrar-lhe o peluche que a confortou durante anos de uma infância difícil. Por um momento, este aborrecimento de Donny, antes aterrador, torna-o mais uma vez uma pessoa digna de compreensão e de quase de compaixão por Martha. Ou talvez, mais uma vez, exista no fundo uma certa empatia entre os dois: Donny termina a história no mesmo estado em que encontrou Martha pela primeira vez, destacando afinal esse estranho laço que acaba por existir entre os dois.


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Um estranho objecto de desejo

Numa época em que as histórias de traumas quase se tornaram clichês das séries de televisão “Baby Reindeer” apresenta uma subtil abordagem de como as perturbações mentais tocam a qualquer um e se tornam confusas, imprevisíveis e profundamente pessoais, tudo sublinhado pela ambivalência emocional dos seus personagens e do seu final.

“Baby Reindeer” também depende muito do ponto de vista subjetivo do espectador em relação aos protagonistas: a forma como os vemos. A narração de Donny domina cada episódio, contando ao detalhe as suas vivências e a sua frustração consigo mesmo.

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Os dois realizadores da série, Weronika Tofilska e Josephine Bornebusch, fixam muitas vezes a câmara no rosto de Donny, captando os seus sentimentos de desorientação, quando até os seus melhores momentos são interrompidos pelas constantes intrusões de Martha na sua vida.

Os espectadores ficam imersos nas neuroses de Donny, que incluem — e nós também começamos a compreender — a sua dependência de ser objeto da obsessão daquela mulher, mesmo que se sinta confuso em relação à sua sexualidade. Embora a série siga a perspetiva de Donny, de certa forma também conseguimos ver o mundo através dos olhos de Martha, ou pelo menos na medida em que Donny se identifica com ela. Quando Martha sai da vida de Donny no final do episódio, ele ainda tem de viver com aquela parte de si, em que se sente exatamente da mesma forma que ela se sentia.


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Uma dependência emocional do outro

Ao longo de “Baby Reindeer”, Donny esforça-se também por tentar explicar porque não é proativo em relação a Martha e não toma uma atitude? Porque não avisa os seus amigos que está a ser assediado por Martha? Por que demorou tanto tempo para se queixar à polícia? Porque não a rejeitou logo da primeira vez que ela começou a assediá-lo?

A resposta é que, de certa forma, Donny compreende porque Martha atua daquela maneira. Ele próprio sente-se perdido, sozinho, rejeitado e desajeitado, trabalhando ingloriamente no bar sem qualquer perspectiva de futuro como comediante. É por isso que não encontra nenhuma vitória, nem fica satisfeito em derrotar Martha. Para Donny é como debater-se, com algo que já faz quase todos os dias.

“Baby Reindeer” é de facto um thriller psicológico arrepiante que mantém os espectadores à beira do sofá do início ao fim, pese embora a ambiguidade. Com interpretações memoráveis de Richard Gadd e Jessica Gunning, uma  realização intensa e uma narrativa envolvente, a minissérie da Netflix, vai decerto ficar na história pois destaca-se  por ser uma perturbadora e realista exploração do lado mais sombrio da obsessão humana.



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