© Limbo Films, S. De R.L. de C.V. Courtesy of Netflix

Bardo, em análise

Após uma longa pausa, Alejandro G. Iñárritu regressa ao grande ecrã com “Bardo, Falsa Crónica de Umas Quantas Verdades”, um filme protagonizado por Daniel Giménez Cacho e Griselda Siciliani.

UM SALTO MORTAL OU UM SALTO EM FRENTE NA TERRA DE NINGUÉM…?

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Mal as luzes da sala se apagam e o grande ecrã se acende com a luz simultaneamente fria e quente de uma vasta planície desértica, provavelmente algures entre o México e os Estados Unidos, vemos desenhada no solo e a negro a sombra de um homem com o Sol poente pelas costas, que o faz parecer um gigante: astro-rei que de certo modo lhe indica o ponto cardeal a seguir num perpétuo movimento que então se inicia, rumo a um horizonte que nunca alcança na sua infinita dimensão. Sim, porque sendo a Terra redonda, não se pode delimitar um princípio nem um fim para o caminho que aquela figura percorre, numa quase abstração surreal, homem igual a muitos outros homens que, de salto em salto, se dirige para algum lugar ou para lado nenhum. E por isso o homem corre, corre, aqui e além levantando os pés do chão, o que o faz planar sobre a areia e a vegetação rasteira que identificamos como sendo paragens geográficas do México, mas igualmente as situadas nos Estados fronteiriços do Sul e Oeste dos EUA, aliás, outrora pertencentes ao vizinho latino. Neste filme, BARDO, FALSA CRÓNICA DE UNAS CUANTAS VERDADES (BARDO, FALSA CRÓNICA DE UMAS QUANTAS VERDADES), dirigido por Alejandro Gonzálo Iñárritu, há mesmo uma informação que circula dizendo que a AMAZON iria comprar a Baja California, Estado Mexicano, naquilo que seria na prática o prolongamento e a última etapa da anexação da Califórnia, realizada e concluída pelos Estados Unidos a 9 de Setembro de 1850, após um longo e dramático conflito conhecido pela designação genérica de Guerra Mexicano-Americana. Naturalmente, a referência ao interesse da AMAZON no negócio “imperialista” pode e se calhar deve ser encarado como uma satírica ferroada por parte da rival NETFLIX, produtora do filme.

Bardo 4
© Limbo Films, S. De R.L. de C.V. Courtesy of Netflix

Mas o realizador e argumentista, coadjuvado na escrita por Nicolás Giacobone, não se ficou pela imagética natural com apontamentos humanos, onde a leveza do ser nos remete para o seu BIRDMAN ou (A INESPERADA VIRTUDE DA IGNORÂNCIA), 2014. Logo após esta sequência inicial, introduz-nos duas personagens, pai e mãe, que numa maternidade esperam o nascimento do filho. Só que o recém-nascido não é um ser comum. Ele acaba por sair das entranhas da mãe, mas rapidamente a equipa médica que acompanha o parto se apercebe que o bebé não quer fazer parte deste nosso mundo. Prefere entrar de novo dentro da mãe e, nessa altura, assistimos ao reverso do milagre da vida com a introdução da pequena criatura pela vagina da progenitora acima, com a máxima discrição mas com a contundência que Luis Buñuel, se fosse vivo, não desdenharia usar na representação subversiva de um nascimento ao contrário. Estamos assim no domínio da articulação (que muitas e boas vezes iremos constatar ao longo do filme) daquilo que parece ser a realidade, para logo a seguir o autor nos dizer, com a subtileza possível e o peso da materialidade imagética necessária, que nada do que damos por certo está certo, para dizer a verdade, nem certo nem errado. Um dos pilares fundamentais da narrativa, factor número um a considerar na leitura criativa de BARDO (sinónimo de LIMBO), será construído a partir de uma imagem, um som, um movimento, onde podem coexistir a racionalidade mais absoluta e o desvio para um universo alternativo só possível no grande ecrã. Porque Alejandro Gonzálo Iñárritu sabe, como poucos no cinema contemporâneo, convidar os espectadores a perderem-se nos labirintos ficcionais que os perturbam, mas que no fundo acabam por os encantar, sobretudo cada vez que descobrem uma ou outra escapatória para atingir esse limbo que lhes permite interpretar, com os seus próprios parâmetros de percepção, as propostas dos mentores artísticos e ideológicos de uma determinada obra, que podem nem coincidir com os nossos gostos e preferências. Neste caso, o ego insuflado do realizador. Numa palavra, esta dialéctica, e não somente o ego, constitui o modelo de produção e realização que faz a diferença entre o grande CINEMA, arte concebida no domínio e fruição de uma linguagem específica, e as rotinas da indústria ou da actividade cinematográfica onde um FILME acaba por ser apenas o fruto de uma básica adaptação, quantas vezes para consumo imediato, de um dado argumento literário, ou melhor, de um guião cinematográfico, venha ele já planificado ou não. Estamos sempre na esperança de encontrar projectos que nos mostrem o cinema maior do que a vida, e o filme BARDO aponta para uma vida que depois de gerada, como na “fantasia maternal” do início, quer entrar de novo no interior do espaço fílmico para ali viver uma nova vida definida por aquilo que acontece na hierarquia de montagem dos planos do filme.

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Daremos agora conta de quem são e o que fazem as personagens de BARDO, com especial incidência no protagonista, o jornalista e documentarista Silverio Gama (interpretado com garra por Daniel Giménez Cacho). Vive entre a Cidade do México, a capital, e Los Angeles. Nos Estados Unidos, que ele critica com severidade do ponto de vista socio-político, a sua derradeira obra documental intitulada, precisamente, FALSA CRÓNICA DE UMAS QUANTAS VERDADES, recebeu um prémio, e Silverio Gama será de seguida convidado a deslocar-se aos EUA para o receber. Só que ele atravessa um período de crise, mergulhado nas angústias da meia-idade, atormentado por memórias passadas, condicionado por uma modesta condição de classe e de um presente burguês, contradições que contaminam a sua relação existencial com a família, a mulher, Lucía Gama (Griselda Siciliani), e o filho mexicano, mas fortemente influenciado pelo panorama cultural e ideológico norte-americano (mistura de forma patética o castelhano com o inglês), uma vez que, dada a posição económica e social do papá, foi viver o American Dream. Esse conceito mítico que alguns refugiados, que iremos ver no filme a percorrer o deserto na direcção contrária das chamadas caravanas de emigrantes, dizem ser o “inferno americano”. E os que voltam para casa (provavelmente referindo-se aos que habitam os dois lados da fronteira) avisam os que seguem em frente que eles não sabem ou não se aperceberam ainda do pesadelo em que se vão meter e onde outros já estão metidos. Sobre a aculturação subdesenvolvida e arrogante dos que mascaram a sua identidade de origem, iremos assistir a uma deliciosa sátira da passagem pelos serviços de imigração americanos no aeroporto de Los Angeles, com um guarda a recusar aceitar que Silverio Gama e a família são cidadãos residentes (o que de facto eram) só porque são mexicanos oriundos do México. Só quem nunca passou por estas fronteiras poderá pensar que esta sequência foi inventada.

Bardo
© Limbo Films, S. De R.L. de C.V. Courtesy of Netflix

Depois de instalada na sua casa de Los Angeles, a família Gama irá confrontar os seus problemas estruturais com os problemas gerados pela autêntica vertigem alucinatória do protagonista, que corroem a sua carreira, a sua inserção na realidade plastificada do audiovisual e que, segundo ele, se organiza perversamente para humilhar os que alcançam o sucesso, reduzindo a abordagem da vida de um qualquer cidadão a uma palhaçada para gerar audiências na guerra dos formatos que invadem e poluem o pequeno ecrã. Talk-shows dirigidos por quem, entre uma pergunta estúpida e um discurso canalha, fazem uma pausa para anunciar o patrocínio de uma marca qualquer, por exemplo, um cafezinho que sabe mesmo bem, ainda que a caneca do marketing esteja vazia. Só não vê quem não quer ver que Alejandro Gonzálo Iñárritu aproveita ao longo dos 159 minutos de BARDO para falar dele, do México, dos Estados Unidos, mas sem esquecer o amor, não só o amor físico como o espiritual, não só o amor pelos homens e mulheres com quem partilha as suas preocupações, como amor ao país que o viu nascer. País que ele defende, criticando-o sem dó nem piedade, com a mesma virulência com que insulta a personagem de Hernán Cortés, a quem apelida de assassino e mercenário útil do Século XVI, e que retrata sem pompa nem circunstância no alto de uma pirâmide de cadáveres de homens e mulheres aztecas, vítimas dos massacres desencadeados pelo conquistador espanhol. Fantástica sequência rodada no monumental centro da capital mexicana. Tudo isto para o filme que estava a ser rodado pelo documentarista Silverio Gama, e que até surge menos estranho na sua violenta exposição dos factos históricos do que a surreal incursão pelas ruas da cidade onde, na actualidade, os cidadãos que por ali andam caem sem se saber porquê, simplesmente caem no chão, inanimados.

Bardo
© Limbo Films, S. De R.L. de C.V. Courtesy of Netflix
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Muito mais seria possível destacar neste magnífico BARDO. Há sequências inteiras que valem por muitos filmes. Fico no entanto por aqui, convidando o espectador a ir vê-lo num grande ecrã, o maior que conseguir encontrar, numa sala devidamente equipada para apreciar a notável banda sonora no que diz respeito a montagem e misturas de som, e ainda a banda sonora musical, ritmos latinos e atmosferas de diversas proveniências que se conjugam na perfeição com a multifacetada imagética servida por uma Direcção de Fotografia de cinco estrelas, responsabilidade de Darius Khondji, que recebeu apoio indispensável da Direcção Artística de Eugenio Caballero.

Bardo, em análise

Movie title: Bardo, falsa crónica de unas cuantas verdades

Director(s): Alejandro G. Iñárritu

Actor(s): Daniel Giménez Cacho, GriseldaSiciliani, Ximena Lamadrid

Genre: Drama, 2022, 159min

  • João Garção Borges - 95
95

Summary

PRÓS: Nesta ficção, há quem encontre influências de Federico Fellini e do seu 81/2 (OITO E MEIO), 1963. Posso aceitar, mas prefiro destacar outras que me parecem mais fortes e que, directa ou indirectamente, concorrem para o estilo visual de BARDO, no modo como a fluidez dos planos, muitos planos sequência, se organizam. Por exemplo, não podemos ignorar os ecos do melhor cinema do sempre independente americano, Terrence Mallick, ou as fabulosas incursões pelo imaginário político e sociológico do Século XX, concebidas pela visão desassombrada do soviético Mikhail Kalatozov, neste caso, sobretudo as observadas no genial SOY CUBA, 1964 (Fotografia do mestre Sergey Urusevsky). E, porque não, de um Luís Buñuel. Como disse no artigo, BARDO, produção da NETFLIX, vai chegar ao streaming, mais dia, menos dia. Mas garanto

que não será a mesma coisa. Por muito que reproduzam em casa as boas condições de ver cinema, a dimensão, o fôlego deste filme, a viagem que os espectadores são convidados a realizar através do seu labirinto de acções e emoções, a concentração necessária para absorver os pormenores desta obra plural, não se podem encontrar a não ser num visionamento em sala e, como igualmente disse, no maior ecrã que existir perto de si.

CONTRA: Nada. Neste filme, até eu que não gosto muito de grandes angulares (prefiro as objectivas entre os 50mm e os 105mm), me rendo ao notável exercício de composição patente em cada plano. Repito, magnífico BARDO, FALSA CRÓNICA DE UMAS QUANTAS VERDADES.

E, mais uma vez, se não forem vê-lo num grande ecrã, com um grande som, nem sabem o que perdem.

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