"Bluish" | © Panama Film

Bluish, a Crítica | O IndieLisboa em tons de azul

A depressão descreve-se em mil variações de azul na segunda longa-metragem de Milena Czernovsky e Lilith Kraxner, “Bluish.” A fita integra a Competição Internacional do 22º IndieLisboa.

Por vezes, a vida parece estagnar e a escuridão que habita dentro de nós escapa ao seu confinamento para contaminar o dia. Como um buraco negro, suga a luz e tudo o mais, comprime e corrói, colapsando noções de tempo e normalidade até que só fica um vazio total. Nesse nada, flutuamos, como que suspensos, ambíguos, sem sair do mesmo sítio, ora para um afundamento mais profundo ou alguma salvação. Muitos cineastas como Kieslowski, Kon, Aronofsky, Trier e tantos que tais, já fizerem deste sentimento um flutuar literal, visualizando o estado mental das suas personagens com imagens delas perdidas na água, um limbo líquido em rima com um limbo espiritual.

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Milena Czernovsky e Lilith Kraxner juntam-se a essa longa linhagem, usando a piscina como meio ilustrativo, como poesia audiovisual, como um ponto de acesso da audiência a interioridades difíceis de discernir doutra forma. Por isso mesmo, esta imagem surge enquanto simbolismo fundamental de “Bluish,” uma soma dos seus temas e prioridades artísticas. Por isso mesmo, surge no lugar da coda para a sinfonia cinematográfica que estas duas orquestraram. Em certa medida, funciona quase como resumo da estética escolhida, as permutações fotográficas da fita em apogeu nessas passagens aquosas, a água propondo cinquenta tons de azul.

A flutuar sobre a vida, suspensas no vazio.

bluish critica indielisboa
“Bluish” | © Panama Film

Mas esse é somente o fim de “Bluish.” Há muito a preceder esse quadro. Ou melhor, há a sugestão de muito sem que, efetivamente, aconteça grande coisa em cena. O que faz sentido intelectual e até emocional quando ponderamos a natureza do projeto enquanto retrato do ennui e da depressão. É lógico tentar estruturar o filme em torno dessas realidades, mas isso não significa que o resultado seja especialmente fácil de descrever. Será ainda menos fácil de ver, encurralando o espectador num ciclo vicioso de inação e narrativa inortodoxa, entorpecendo a psique até que nos sentimos em sintonia com as duas protagonistas.

São elas Errol e Sasha, duas jovens na Áustria do pós-pandemia, vivendo existências paralelas numa Viena submersa nos matizes celestes e safira que as realizadoras elegeram. Com apoio dramatúrgico de Tizza Covi, as cineastas esboçam as suas figuras em jeito esbatido, apoiando-se numa contemplação onde raramente se verbalizam ideias precisas. No entanto, somos levados a entender os seus conceitos no âmago do ser, em parte porque a solidão e a melancolia são tão reconhecíveis. Em parte, porque o jogo de “Bluish” se apoia numa imersividade visceral, onde a atmosfera conta mais que qualquer tipo de história.


Na casa dos vinte, nem Errol nem Sasha têm muito com que ocupar os dias. Ou alguém com quem os partilhar. Não admira que as suas vidas não desenhem uma história que empolgue ou capture a atenção do público comum, enterradas na depressão de cada uma. Mas a metrópole vienense puxa por elas e os seus círculos sociais também. Se há solidão, ela deve-se de uma incapacidade pessoal, os problemas de reintegrar a sociedade após os anos passados fechadas em casa por causa da pandemia. Reuniões e aulas de Zoom têm lugar nesta não-história, a máquina da proximidade digital a ter o efeito contrário, distanciando ainda mais a gente.

Assim, “Bluish” assume-se como um retrato dos nossos tempos cujo texto esbatido não significa uma falta de foco ou, muito menos, qualquer falta de especificidade. Só que, de novo, os preceitos da narrativa tradicional estão ausentes. Apenas conhecemos estas mulheres no píncaro da dormência, os retratos deliberadamente incompletos. Até o que as distingue é uma incógnita, tirando a diferença entre as atrizes – Leonie Bramberger e Natasha Goncharova. De facto, é difícil discernir a razão pela qual as cineastas decidiram incluir duas personagens quando uma bastava. Quiçá se trata de um gesto de autorreflexão, sugerindo a possibilidade da autobiografia ficcionada.

Cinema do pós-pandemia, pintado a azul.

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“Bluish” | © Panama Film

Só ocasionalmente temos noção dos seus comportamentos como indivíduos além da sua estagnação. Quando há o piscar de olhos trocado com uma criança à espera do médico traz-se uma leveza refrescante ao filme. Ou uma viagem de autocarro que se torna em busca pelo toque de um estranho. Ou num instante de cantoria caricata. Por conseguinte, a especificidade referida anteriormente manifesta-se principalmente na linguagem audiovisual, com especial destaque para a fotografia de Antonia de la Luz Kasik. Ela consegue capturar as texturas da solidão e os matizes da melancolia com a paleta fixa nos azuis, ora em pequenos interlúdios musicais ou nos muitos serões passados entre paredes brancas e sem vida.

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Há muitos enquadramentos justapostos, prisões desenhadas na composição precisa, corpos desnudos em foco limitado e uma dezena de outras imagens de sublime delicadeza que, no seu melhor, recordam o cinema de Akerman ou as transições observacionais de Denis. O som é quase tão impressionante quanto as imagens, dando variação aos silêncios até ao ponto em que conseguimos contestar a diferença entre os quartos de cada personagem pelo modo como a quietude nos enche o ouvido. Se aplaudimos a diretora de fotografia, o trapalho sonoplástico de Nora Czamler também merece a sua salva de palmas. Tantas qualidades neste “Bluish,” mas, no fim, como o corpo na piscina, o filme flutua sem ir a lado nenhum.

Bluish, a Crítica

Movie title: bluish

Date published: 9 de May de 2025

Country: Áustria

Duration: 83 min.

Director(s): Milena Czernovsky, Lilith Kraxner

Actor(s): Leonie Bramberger, Natasha Goncharova

Genre: Drama , 2024

CONCLUSÃO:

É difícil fazer da depressão um objeto de estudo cinematográfico capaz de captar a atenção do público. “Bluish” depara-se com os mesmos problemas, mas não significa que tenha falta de mais-valias. A conceção audiovisual que Milena Czernovsky e Lilith Kraxner fizeram tem imenso mérito, marcando-as como cineastas a celebrar. Depois deste lançamento prometedor, mal podemos esperar para ver o que elas fazem a seguir. Quiçá uma rendição total à abstração esteja no horizonte. Pelo menos aí, sem personagens a definir expetativas dramatúrgicas, os talentos das artistas poderão triunfar por completo.

O MELHOR: A fotografia e a sonoplastia, as muitas imagens que parecem conhecer melhor as personagens que o texto ou até as suas intérpretes.

O PIOR: Termos duas protagonistas parece-nos uma redundância sem desculpa, mesmo que a sua presença possa sugerir as dimensões pessoais do projeto para as suas criadoras.

CA

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