Cinema Europeu? Sim, Por Favor | A Lagosta

Foi dos grandes fenómenos do festival de Cannes no ano passado (onde venceu, inclusive, o Prémio do Júri) e a chegada de A Lagosta aos cinemas portugueses promete uma generosa quantidade da mais saborosa estranheza.

Num peculiar e não pouco bizarro futuro próximo, uma lei invisível mas profundamente dogmática impede os cidadãos de uma qualquer civilização fictícia de permanecerem solteiros. Como? Qualquer homem ou mulher que não tiver um relacionamento é preso e enviado para um Hotel onde terá 45 dias para encontrar um(a) parceiro(a). Caso encontrem alguém serão lentamente reintroduzidos numa sociedade obcecada pelo relacionamento, se não… serão transformados num animal da sua preferência e libertados no meio da Floresta. O nosso protagonista é o cabisbaixo David que acabou de ser abandonado pela esposa por um outro homem que (também) usa óculos. À entrada no profético albergue, David decide que, caso as coisas não corram pelo melhor, se transformará numa lagosta, porque vivem mais de cem anos, são férteis e vivem no mar.

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Quem nos traz este inestimável espécime cinematográfico é o realizador grego Yorgos Lanthimos que já antes tinha demonstrado apreço pelo mundo animal como preciosa ferramenta para criar absurdos paralelismos críticos à raça humana. Depois de o ter feito no glorioso Canino de 2009 – sobre pais que mantinham as filhas em cativeiro sem qualquer conhecimento do mundo, quase como cães, supostamente até que lhes caíssem os dentes caninos – regressa à temática em 2016 com a originalidade peculiar de A Lagosta.

Não obstante os meros 43 anos de idade e apenas quatro longas-metragens no currículo que antecede o seu novo filme, Lanthimos já mereceu há muito o estatuto de autor aclamado e a sua primeira incursão no cinema na língua de Shakespeare é um redondo sucesso e a prova irredutível de que faz parte do reduzido lote de criadores mais inventivos do Cinema Contemporâneo atual.

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É esta a introdução ao admirável mundo novo de Lanthimos, uma espécie de comédia negra que é também um filme de terror para gente grande e uma ópera apaixonada para passarinhos românticos que encaixa perfeitamente na célebre descrição de Fernando Pessoa de um gosto adquirido – primeiro estranha-se, depois entranha-se.

De facto, A Lagosta leva o seu tempo a instalar-se no nosso frágil imaginário emocional, aparecendo, numa primeira instância, como uma escabrosa sátira selvaticamente imaginativa que explora uma alegoria sobre o absurdo das normas rígidas da sociedade, e, num segundo momento, mais compassado e profundo, uma das mais originais e vibrantes histórias sobre as relações modernas e o Amor – encontrando-se assim, quiçá, o valoroso descendente retardado da explosão criativa de O Despertar da Mente (2004) de Michel Gondry.

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O brilhante argumento mordaz de Lanthimos e de Efthymis Filippou mantém um registo inefavelmente impassível e inexpressivo, ainda que não esteja 100% sincronizado nos seus balanços rítmicos. De facto, o segundo ato é manifestamente menos radiante do que o primeiro – uma gloriosa crítica à necessidade inata da sociedade em relação ao conformismo que é perturbadoramente divertida – perdendo algum gás quando muda o foco para o grupo dos solitários. Felizmente, a química e ternura genuína entre a dupla apaixonada central chega e sobre para manter o nosso investimento e alimentar o resto da invulgar jornada da locomotiva de Lanthimos.

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A compactuar com o tom anárquico e absurdo porém inesperadamente terno temos um rol memorável de pérolas interpretativas: Colin Farrell encontra aqui uma das suas melhores e mais corajosas performances da carreira, mas não está sozinho – Rachel Weisz é uma absoluta (re)revelação, Ben Whishaw continua a compor o seu arsenal de dinamismo em trilhos cinematográfico, a (quase) vilã Léa Seydoux é um voluptuoso toque de magia negra e John C. Reilly volta a provar porque é um dos mais destemidos atores secundários em Hollywood.

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Com centenas de filmes a serem lançados todos os anos sobre o amor e as relações que o moldam, A Lagosta consegue ser único, original e refrescante – talvez porque seja o exato tipo de projeto que Hollywood nunca poderia sonhar parir. É que ainda que possa ser erroneamente categorizado como uma “simples” comédia metafórica sobre o absurdismo das relações, a conformidade e a solidão, e uma observação severa aos estranhos jogos do romantismo da atualidade que parecem tão ridiculamente guiados por uma espécie de religião Big Brother, o filme de Lanthimos é, acima de tudo, um terno relato sobre a necessidade tão humana de amar e ser amado.

Somando-se os trunfos e lançando as poucas gorduras aos gatos, pode muito bem dar-se o caso de este ser o filme mais romântico do ano. Ou o mais perturbador. Ou o mais divertido. Ou o mais deprimente. Ou o mais estranho.

Ou ser todas essas coisas, ao mesmo tempo e sem exceção.


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