Dark | © Netflix

Dark, segunda temporada em análise

Entre ciclos, paradoxos, linhas temporais e árvores genealógicas, “Dark”, o labirinto alemão da Netflix, consolidou-se e é até ver a melhor série de 2019.

Segundo Albert Einstein a diferença entre passado, presente e futuro é apenas uma persistente ilusão. Segundo Jantje Friese e Baran bo Odar, os autores de “Dark”, o livre arbítrio é também uma ilusão e tudo é explicado por relações de causalidade. Se as regras do nosso mundo obedecerem ao determinismo filosófico da série alemã da Netflix, acredito que esta crítica estava pré-determinada vir a acontecer, e que algumas palavras ou ideias aqui escritas têm como missão fazer crescer, em modesta escala, o número de pessoas interessadas em ver ou rever “Dark”. Acreditem, a série merece a máxima audiência possível; e é garantia de tempo bem empregue para qualquer colecionador de séries. Não deixem “Dark” para ontem ou para amanhã, vejam agora.

Aviso que abaixo poderão encontrar SPOILERS, relativos às duas temporadas.

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Dark © Netflix

Em dezembro de 2017, a Netflix disponibilizou entre os seus conteúdos uma série sobrenatural germânica, passada na pequena comunidade de Winden, que tinha como premissa para o seu carácter misterioso o desaparecimento de crianças. Intimidante e intrigante embora exigente dada a quantidade de personagens (famílias Kahnwald, Nielsen, Doppler e Tiedemann) e a alternância temporal não-linear (1953, 1986 e 2019, intervalos de 33 anos) “Dark” não demorou a conquistar o grande público, cruzando narrativas e equilibrando o lado mundano e universal de qualquer história – comportamento humano e conexão entre personagens – com os seus segredos e a sua componente sci-fi, deixando filosofia, religião e física de mãos dadas.

De uma forma muito abreviada, e assumindo a perspetiva do protagonista, Jonas descobre na 1ª temporada que o seu pai Michael, que se suicidou e deixou uma carta, é na verdade também Mikkel, filho do inspetor Ulrich e irmão de Martha, por quem Jonas está apaixonado. Jonas viaja ao passado mas termina a série no futuro, Mikkel é visto pela última vez numa gruta em 2019 indo parar a 1986 onde se vem a tornar o pai de Jonas, e no meio de tantas analepses e prolepses descobrimos ainda que uma estranha e misteriosa figura é na verdade a versão adulta de Jonas, chegando este a revelar a sua identidade ao seu eu mais jovem.

Entre crianças mortas com queimaduras nos olhos e tímpanos furados, animais caídos, centrais nucleares, triquetras, tábuas de Esmeralda tatuadas, adultério, chocolates Raider, pontes de Einstein-Rosen ou buracos de minhoca, máquinas do tempo construídas por relojoeiros e a inscrição latina Sic Mundus Creatus Est, conhecemos o sinistro padre Noah, percebemos que Claudia Tiedemann estaria em conflito com este, e vimos o desesperado mas um passo à frente de muitos outros, Ulrich Nielsen, viajar até 1953, onde falharia a tentativa de matar Helge, algo que no seu entender permitiria reescrever as histórias do seu irmão Mads e do seu filho Mikkel.

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“Dark” é um puzzle, um déjà vu, uma boa dor de cabeça e uma razão para estarmos gratos pela existência do botão pausa nos nossos comandos. No final da 1ª temporada, ou primeiro ciclo, podíamos descrevê-la como a série em que um rapaz (Jonas) de blusão amarelo descobre que beijou a tia (Martha), que é filha de um homem (Ulrich) que procura o seu filho (Mikkel/ Michael), filho esse que é o pai do rapaz. E esse homem trai a mulher (Katharina) com a mãe (Hannah) do rapaz, casada portanto com o filho do homem.

Mantendo o seu casting surreal – os atores são tão bem escolhidos que chegamos a pensar que a versão envelhecida de uma personagem é o ator “anterior” caracterizado –, a 2ª temporada de “Dark” viaja entre mais anos (1921, 1954, 1987, 2019, 2020 e 2053) e arrebata os espectadores com novas descobertas fruto do paradoxo de Bootsrap ou paradoxo ontológico, que defende que os objetos podem existir sem terem sido criados e estabelece juntamente com a doutrina do eterno retorno de Nietzche as regras essenciais das viagens no tempo da série.

Ao longo de 8 episódios com um relógio interno definido (27 de junho de 2020, apocalipse), os autores assumem o conflito entre dois lados – Adam vs. Diabo Branco -, dedicam desta vez mais tempo a Noah, Egon e Claudia Tiedemann como tinham feito na temporada anterior com Ulrich (haverá personagens mais trágicas do que ele e Mikkel?) e Charlotte, e movem as peças no seu tabuleiro labiríntico com a confiança e atenção ao detalhe de quem pensou em tudo à priori muitíssimo bem. É excelente ver uma série que sabe gerir os momentos das revelações feitas às personagens e aos espectadores, e que continua a levantar questões mas vai fornecendo respostas, permitindo reinterpretar pormenores da 1ª temporada que agora se tornam geniais: por exemplo, a marca no pescoço do Estranho, quem conduz Mikkel até à gruta, levando-o a viajar até 1986, ou uma piada de Ulrich em relação a um apocalipse iminente.

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Dark © Netflix

À medida que sabemos mais e mais o complexo novelo de “Dark” transforma-se aos poucos num círculo e numa prisão temporal que teima em interessar-se não pelo onde nem pelo como mas sim pelo quando. E num ano em que um franchise recordista explorou o conceito de viagem no tempo, executando-o de forma emotiva mas bastante duvidosa, Friese e bo Odar, a argumentista alemã e o realizador suíço que são um casal e se conheceram a estudar cinema, mostram que é possível trabalhar uma narrativa ambiciosa com viagens no tempo, mantendo a obra coesa e lógica (“Primer”, de 2004, talvez seja o exemplo mais próximo).

Além do trabalho equilibrado de todo o elenco, deve-se destacar também a banda sonora de Ben Frost, que atinge nesta temporada o seu apogeu quando Jonas abandona Martha junto ao lago, e a montagem, aspeto em que não será exagero considerar “Dark” a melhor série da atualidade. Do episódio 4 até ao 8 o nível mantém-se muito alto sendo o sexto “An Endless Cycle” porventura o melhor capítulo da temporada ao transformar uma intenção de reescrever o passado no contributo decisivo e consciente para acontecimentos capitais que já víramos. E se Mikkel ser Michael fora o principal momento alucinogénico da temporada 1, o que dizer agora da relação entre Charlotte e Elisabeth?

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Até há alguns dias, “Chernobyl”, “Fleabag” e “When They See Us” compunham o meu pódio de melhores séries de 2019 mas neste momento não tenho qualquer hesitação em entregar a “Dark” a coroa na lista de melhores do ano. E, decorrido meio ano e salvo agradáveis surpresas, só vejo “Mr. Robot” com capacidade para vir a destronar o tesouro alemão da Netflix. Por falar em Netflix, embora haja “BoJack Horseman”, “The Crown”, “Master of None” e “Stranger Things” se calhar começa a fazer sentido ponderar “Dark” como a melhor série original Netflix…

Friese e bo Odar já revelaram ser mais confuso acompanhar a localização temporal de objetos (por exemplo, que versão da máquina do tempo está em cena) do que das personagens. Garantiram que nem sempre a sua escrita equivale a uma casa que é construída tijolo após tijolo, decidindo por vezes de antemão que há uma casa enterrada e que removendo a areia chegarão até ela. E embora saibam que cada temporada é escrita na partitura de um grande número musical, gerindo o ritmo até ao clímax, não deixam de considerar cada episódio uma espécie de jazz, sem refrão e sem versos, porque viajar no tempo pede uma linguagem diferente.

Pessoalmente, embora considere ótimo e ideal o espectador poder escolher hoje em muitos casos como e quando consome as suas séries, “Dark” é uma das poucas séries que merecia ter os seus episódios emitidos semanalmente. Chamem-me conservador mas para mim as grandes séries, sobretudo aquelas que inspiram teorias e puxam mais pela imaginação, ganham ao deixar-nos respirar, discutir e sonhar um episódio de cada vez. E, convenhamos, nos termos atuais ninguém são tem autocontrolo suficiente para saborear “Dark” num modo que não seja o bingewatch.

Até ao próximo ciclo, muitas são as perguntas que vão fervilhar na mente dos fãs. O homem que o jovem Noah matou era Bartosz em adulto? Quem é a rapariga que libertou Jonas em 2053? Quem era a figura escura com uma cabeça gigante que Jana Nielsen viu na floresta? Como ficou Adam com a sua aparência? O que aconteceu nos anos seguintes àqueles que se esconderam no bunker durante o apocalipse de 2020? A que ano foram levados Magnus, Franziska e Bartosz pela versão adulta de Jonas? Porque é que o calendário que Jonas viu em sua casa no futuro não tinha o dia 21 assinalado? Será que algum casal conhecido (Magnus & Franziska ou Jonas & Martha) são os pais de Agnes e Noah? De que forma é que Hannah vai baralhar tudo em 1954? Boris Niewald, o verdadeiro nome de Aleksander, tem esse apelido porque Hannah em 1954 cria uma nova identidade para si fundindo os apelidos Nielsen e Kahnwald? Quem levou Charlotte, entregando-a ao cuidado do relojoeiro?

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Dark © Netflix

Estas, entre tantas outras interrogações, vão inspirar teorias durante os próximos meses. Além de tudo isto, importa acrescentar duas informações de peso, sem esquecer o eterno gag do olho direito de Wöller e o alívio que sinto por não ter chegado a assistir àquele sonho/ memória recorrente de Jonas e Martha pela perspetiva de Adam. 1) Será que Adam é mesmo Jonas? Por um lado é invulgar mas muito interessante o conflito que a série provoca no espectador ao fazer com que protagonista e antagonista sejam a mesma personagem – nesta fase não é claro por que “lado” devemos torcer e depois de assistirmos às redenções de Noah e Egon Tiedemann apenas podemos ter a certeza sobre o lado vilanesco da egoísta Hannah – mas de facto Jonas pode também estar a ser manipulado e estar outra pessoa debaixo daquela cara de hambúrguer. 2) Depois, a revelação nos instantes finais da temporada faz com que a teia passe de um círculo paradoxal para uma temível mas entusiasmante esfera de universos e realidades. Complicar o complicado é arriscado mas Jantje Friese e Baran bo Odar deixam-me confortável, tranquilo e com as minhas expectativas entregues a boas mãos por parecerem ter tudo bem definido desde o começo, não querendo esticar a série além de 3 temporadas e demonstrando ter sempre no bolso as chaves para sair deste labirinto. E pode até acontecer a próxima temporada terminar como começou a primeira, porque como “Dark” insiste em dizer-nos o começo é o fim e o fim é o começo.

Embora entre as temporadas 1 e 2 tenha havido um intervalo de ano e meio, a produção da 3ª e última temporada da série já arrancou e faria um certo sentido a sua estreia acontecer a 27 de junho de 2020, o dia do apocalipse. Infelizmente, não podemos viajar no tempo até lá – mas talvez seja por isso que “Dark” nos preenche tanto, porque hoje poucos são aqueles que vivem no presente. Temos saudades do passado e estamos ansiosos pelo futuro.

TRAILER | “DARK”

Já viste a segunda temporada de “Dark”? Que perguntas e teorias tens rumo ao terceiro e último ciclo?

Dark, em análise
Dark

Name: Dark - Temporada 2

Description: Enquanto Jonas está preso no futuro, as famílias Nielsen, Doppler, Kahnwald e Tiedemann reagem a novas descobertas e preparam-se para o apocalipse.

  • Miguel Pontares - 90
  • Inês Serra - 90
  • Filipa Machado - 90
  • Maria João Sá - 80
88

CONCLUSÃO

O MELHOR – “Dark” é um labirinto, um déjà vu e a melhor dor de cabeça possível. É um círculo paradoxal pensado ao detalhe por quem parece ter as chaves para todas as portas que cria. O casting mantém-se surreal, a banda sonora épica e em termos de montagem não há melhor no atual panorama televisivo.

O PIOR – Por ser uma grande série que inspira teorias e puxa pela imaginação, talvez merecesse ter os seus episódios emitidos semanalmente, deixando o espectador respirar, discutir e sonhar um episódio de cada vez. Nos termos atuais, ninguém são tem autocontrolo suficiente para saborear este puzzle num modo que não seja o bingewatch.

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  1. Isabel 4 de Junho de 2020

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