Charlotte Gainsbourg | © Filme4you

Os Passageiros da Noite, em análise

Em ‘Os Passageiros da Noite’, o realizador francês Mikhaël Hers vai-se aperfeiçoando no seu estilo directo, delicado e sensível com este filme soberbo e de matriz existencialista, sobre o quotidiano de uma pequena família parisiense, na década de 1980. Estreia a 5 de janeiro. 

Se existem filmes com quem logo nos identificamos com as personagens ou temos a impressão de que as conhecemos de algum lado é o caso deste ‘Os Passageiros da Noite’, um filme de Mikhaël Hers (Amanda, 2018), — o realizador já passou por aqui várias vezes pelo IndieLisboa — escrito por ele mesmo, juntamente com Maude Ameline e Mariette Désert, estreado na Competição da Berlinale-Festival de Cinema de Berlim de 2022 e depois na Festa do Cinema Francês. O filme tem feito as delícias da crítica, incluindo deste que vos escreve. Primeiro importa explicar que, este título do filme, remete para a memória de um extraordinário formato de programa de rádio, muito em voga nas madrugadas das estações generalistas dos saudosos anos 80. Em Portugal, este programa chamava-se precisamente O Passageiro da Noite e era conduzido, salvo erro, por um excelente locutor e comunicador chamado Cândido Mota, e ia para o ar também nas madrugadas da Rádio Comercial. Fez história na rádio portuguesa e é pena ter desaparecido, já que as estações sobrevivem agora à custa das repetitivas e solitárias playlist  e muito pouco da locução e dos programas de autor.

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Os Passageiros da Noite
Um filme que é quase um abraço tão caloroso, como os tema românticos de época de Joe Dassin.©Filmes4you

E na verdade, há efectivamente uma grande ligação entre o objectivo deste programa de rádio quase universal, diria, e o delicioso filme de Hers. O francês é um cineasta que tem evoluindo muito nos seus filmes, tornando-se quase um mestre em reconstruir os sentimentos da vida e os fragmentos que constituem os mais normais (e universais) destinos das pessoas, que neste caso utilizam ou utilizavam a rádio — um meio quente na concepção do filósofo ou comunicólogo Marshall Mcluhan — para falar de si, dos seus anseios sentimentos, ou mesmo para combaterem a solidão e o desencanto. O filme começa com um breve prólogo ambientado em 1981, nas ruas de Paris, com povo a festejar — que saudades!!! — a ascensão da esquerda ao poder: François Miterrand é eleito à segunda volta como Presidente da República da França. A partir daí, ’Os Passageiros da Noite’ instala-se num apartamento familiar, numa torre no bairro de Beaugrenelle, atrás da Torre Eiffel, com uma bela vista para a cidade e para o Sena.

Os Passageiros da Noite
A chegada de Talulah à família, com o seu espírito jovem e rebelde, mudará a vida de todos para sempre. ©Filmes4you

Elisabeth (Charlotte Gainsbourg), uma mulher dona-de-casa dos seus 40 anos, foi deixada pelo marido. Fica sozinha, abatida e cheia de dúvidas sobre as suas capacidades, e sobretudo com algumas dificuldades financeiras devido à sua dependência do companheiro. Por isso, vai ter de reinventar a sua vida, já que partilha ainda, com os seus dois filhos adolescentes e portanto a vários níveis, dependentes também dela: Judith (Megan Northam) e Matthias (Quito Rayon-Richter). O acaso e a necessidade de se virar, leva-a a um emprego de telefonista, num programa de rádio noturno na Radio France, apresentado por Vanda Dorval (Emmanuelle Béart), para onde os ouvintes ligam para fazer às mais diversas confissões: falar sobre si, do seu passado, da sua infância, enfim desabafarem sobre as suas vidas e sentimentos. É lá que uma noite e ao vivo vai aparecer Talulah (Noée Abita), uma miúda errante de 18 anos, com uma vida complicada e que Elisabeth decide ajudar e acolher; algo que não vai deixar o jovem Matthias (de 15 anos) indiferente. Para depois a rapariga inesperadamente, desaparecer e reaparecer quatro anos depois, enquanto a vida de todos no agregado familiar, felizmente, mudou entretanto…para melhor.

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VÊ TRAILER DE ‘OS PASSAGEIROS DA NOITE’

O filme para além de uma imersão na intimidade desta família normal e vulgar, com os mesmos problemas de muitos de nós, proporciona-nos ainda um olhar sobre os vastos arredores de Paris, sobre uma temporalidade ficcional, os vibrantes anos 80 — também em Portugal — através de um drama que se estende ao longo de sete anos e que passam a correr como a vida e com altos e baixos. As interpretações do elenco liderado por Charlotte Gainsbourg, é absolutamente notável e preciso na caracterização perfeita de cada uma das personagens e na sua evolução.  Este filme aliás não seria a mesma coisa sem a sua personagem e actriz principal, Charlotte Gainsbourg, que consegue fazer com que seja uma alegria vê-la e ouvi-la. E com isso, Mikhaël Hers, traça-nos um maravilhoso retrato de vida e da passagem de um tempo, apresentando-nos as micro-emoções daquele presente, que alimentava muitas incertezas no futuro, valorizado as forças e fraquezas humanas, mas sempre com uma absoluta simplicidade e sensibilidade. E sobretudo, mostra-nos como a densidade dos laços afetivos, do amor e da bondade, ajudam a superar as maiores tormentas e dificuldades.

Os Passageiros da Noite
O elenco liderado por Charlotte Gainsbourg, é absolutamente notável e preciso nas interpretações. ©Filmes4you
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Com um estilo que flutua à superfície do mundo e dos acontecimentos como se nada se tivesse passado, o filme é ainda um fino reflector de atmosferas contidas, de pequenas coisas, pequenos gestos e acções simples, mas essenciais e que dão sentido à vida e à humanidade. ’Os Passageiros da Noite’ é ainda uma obra profundamente emocional e nostálgica, atemporal e universal, com uma atmosfera dos anos 80, muito bem reconstruída, tanto ao nível da música, como do guarda-roupa e adereços. Faz também uma pequena homenagem a Noites de Lua Cheia (1984), do mestre Éric Rohmer, aliás referido num dos diálogos, por uma das personagens. O filme de Hers combina harmoniosamente um tom existencialista e agitado do cinema da nouvelle vague, com um ritmo tranquilo moderno, através de uma série de sequências encaixadas subtilmente, no meio dessa história de sete anos, intercalada por várias imagens de arquivo — por exemplo, um excerto de ‘Le Pont du Nord (1981), de Jacques Rivette. A cidade de Paris é também uma das personagens do filme. 

JVM




Os Passageiros da Noite, em análise
Os Passageiros da Noite

Movie title: Les Passagers de la nuit

Movie description: Paris, anos 80. Elisabeth acaba de ser abandonada pelo marido e tem de assegurar o sustento dos seus dois filhos adolescentes, Matthias e Judith. Encontra um emprego num programa de rádio noturno, onde conhece Talulah, uma rapariga desapaixonada que acolhe quase como filha. Talulah descobre o calor de um lar e Matthias descobre a possibilidade de um primeiro amor, enquanto Elisabeth define o seu caminho, a sua vida e futuro pela primeira vez.

Date published: 28 de December de 2022

Country: França

Duration: 111 minutos

Director(s): Mikhaël Hers

Actor(s): Charlotte Gainsbourg, Quito Rayon Richter, Noée Abita

Genre: Drama, 2022,

  • José Vieira Mendes - 85
85

CONCLUSÃO:

’Os Passageiros da Noite’ do realizador francês Mikhaël Hers é um filme luminoso apesar de se passar quase sempre à noite. A história passa-se em Paris, em 1981 e sete anos depois. O filme acompanha a vida de Elisabeth, uma mulher que acaba de se separar e que tem de ir à luta para enfrentar essa nova etapa da sua vida. Elizabeth terá que sustentar os seus dois filhos adolescentes, enquanto cuida de si mesma.  Para isso consegue um emprego num programa noturno de rádio chamado ‘Os Passageiros da Noite’, onde conhecerá Talulah, uma adolescente muito peculiar e problemática, que decidirá receber em sua casa. A chegada de Talulah à família, com seu espírito jovem e rebelde, mudará a vida de todos para sempre. ’Os Passageiros da Noite’ além de nos identificarmos imediatamente com os personagens — pelos menos aqueles que viveram intensamente a década de 80 — é um filme que seduz com as suas homenagens à cultura de então, em todas as suas formas: livros, filmes de Éric Rohmer, música de Kim Wilde ou Joe Dassin, entre outras coisas, além da sua reconstrução sóbria, mas muito bem-sucedida, das ruas de Paris ou da Maison de la Radio (Radio France), daqueles vibrantes anos 80.

Pros

É incrível a facilidade com que Hers mistura os mais diversos personagens e sentimentos, para compor um mosaico impressionista evocativo, dando-nos quase um abraço tão caloroso, como os tema de Joe Dassin.

Cons

Para muitos espectadores desenquadrados da década de 80 pode parecer um drama leve e ligeiro, que peca pela falta de tensão narrativa, porém não deixa de ser um filme estimulante, sentimental e emocional, sem ser piegas.

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