Retratos Fantasmas, a Crítica
O documentário ‘Retratos Fantasmas’ do realizador brasileiro Kleber Mendonça Filho (‘O Som ao Redor’) é uma terna homenagem aos velhos cinemas e às transformações constantes do Recife, a cidade onde vive e onde filmou grande parte da sua obra. Estreia a 24 de Agosto.
O regresso às memórias pessoais é algo que tem tentado praticamente todos os cineastas, sobretudo quando estes conquistam um certo estatuto e uma certa maturidade e notoriedade, tanto na sua obra artística, como na sua vida pessoal. Este documentário ‘Retratos Fantasmas’ do talentoso realizador brasileiro Kleber Mendonça Filho é precisamente uma espécie de ‘diário cinematográfico’ e um ensaio que combina memórias íntimas, histórias, sensações e reflexões ligadas à sua vida familiar e experiências cinéfilas, no bairro e na cidade onde nasceu, cresceu, vive e trabalha: Recife, a metrópole brasileira que está como que impregnada na sua obra — de ‘O Som ao Redor’ (2012) a ‘Aquarius’ (2016) e mais ainda nas suas curtas-metragens anteriores e filmes experimentais. Excepto em ‘Bacurau’ (2019), que co-realizou com com Juliano Dornelles, filme que ganhou Prémio do Júri do Festival de Cannes 2019. ‘Retratos Fantamas’ é um projeto pessoal que o realizador começou em 2017 e seis anos depois — com a pandemia pelo meio — estreou no Festival de Cannes 2023, como uma obra antológica, onde coexiste a sua história pessoal, formação, cinefília, o seu trabalho como cineasta e a sua visão de mundo.
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‘Retratos Fantasmas’, é igualmente um regresso do realizador ao documentário — fez por exemplo ‘Critico’ (2008), uma crónica pessoal sobre o mundo da crítica de cinema, actividade que exerceu, antes de se tornar realizador em pleno — agora, num filme auto-biográfico que está como que dividido em três partes: a primeira, dedicada sobretudo à sua casa de família, que acaba por se transformar numa espécie de memorial, à sua mãe já falecida. O eixo auto-narrativo começa precisamente no apartamento — redesenhado pelo irmão que é arquiteto — localizado no bairro de Setúbal, a 250 metros da Praia da Boa Viagem, na zona sul do Recife, onde Kleber morou por mais de quatro décadas — mudou-se para lá em 1979, depois do divórcio dos pais, quando tinha pouco mais de dez anos e está prestes a completar 55 anos. Foi lá que se iniciou como cineasta, usando a casa como local de filmagens e no qual rodou uma dezena de curtas [destaque para ‘Eletrodomésticas’ (2005) ou ‘Recife Frio’ (2009), por exemplo] e as longas-metragens, entre elas os belíssimo ‘O Som ao Redor’ e ‘Aquarius’, filmes que foram uma espécie de trampolins, para a sua projecção internacional.
Esse primeiro ‘capitulo’ é efectivamente uma comovente homenagem à sua mãe Joselice, uma brilhante historiadora falecida em 1995, com apenas 54 anos; o filme reflecte também sobre a insegurança do bairro — já revista em ‘O Som ao Redor’ — que fez com que as casas e apartamentos virassem bunkers de arame farpado, além de outras controversas questões sobre a vizinhança: desde o (re)aparecimento de barulhento Nico, o cão do vizinho, a uma invasão de térmitas que causaram estragos no telhado da casa abandonada do lado pertencente a um médium e que muitos vizinhos atribuem ser na verdade, o próprio Kleber, com os seus filmes e rodagens, quase clandestinas.
A segunda parte, a mais longa é dedicada às grandes transformações na cidade do Recife e principalmente aos grandes cinemas do centro, que marcaram a dinâmica social pernambucana, durante boa parte do século XX: o Art Palácio, o Trianon, o Moderno, o Veneza, o Ritz, o Astor, o Boa Vista e, por fim, o renovado São Luiz, que ainda resiste — graças aos poderes públicos — como um grande templo de culto cinéfilo. O realizador lidou com o encerramento destas grandes salas de cinemas, durante a sua fase de estudante universitário e aspirante a realizador. Por isso conseguiu resgatar alguns materiais de arquivo, fragmentos de filmes, histórias pessoais, gravações de visitas aos cinemas de rua; e, mais uma vez com uma certa ternura, mostra um conjunto de entrevistas e conversas com o Senhor Alexandre — já falecido — um velho projecionista, com quem estabeleceu uma relação de carinho, que faz lembrar ‘Cinema Paraíso’.
Entre imagens de arquivo, making ofs e excertos dos seus filmes, experiências cinematográficas — até do género gore que fazia com os amigos — filmes caseiros em VHS, Betacam, Hi8 e MiniDV, imagens antigas e outras mais recentes que mostram, aquelas míticas salas, agora convertidas em templos evangélicos, supermercados ou agências bancárias, conjugadas com a sua cuidadosa e tranquila narração (aliás mais analítica até, do que sentimental), Kleber Mendonça Filho constrói aquele que é claramente o filme mais pessoal da sua carreira.
Para o fim, como que num pequeno Epílogo, o realizador ele próprio, proporciona-nos uma pequena e genial surpresa, uma grande sequência de cinema e talvez uma das melhores da sua obra e que resume todo o seu filme. É algo que é melhor mesmo não revelar, para deixar o espectador saborear entre um sorriso, a ternura, a magia do cinema, falada no doce e cantado sotaque nordestino.
‘Retratos Fantasmas’ tem, obviamente, um tom e um espírito nostálgico e melancólico, pois fala de outros tempos (nem melhores, nem piores, outros….) da cidade, das brutais mudanças arquitectónicas e sociais, da passagem do tempo, dos edifícios e de pessoas (e animais como o cão Nico), que já não estão neste mundo. Os tais fantasmas a que alude o título. Resumindo, o filme de Mendonça Filho — que conheço há mais de 20 anos, enquanto crítico de cinema, das filas e das nossas conversas cinéfilas, antes de entrarmos nas sessões dos festivais — é lindo, triste e muito emocionante, tudo isto ao mesmo tempo, além de um final absolutamente genial e divertido, que é um bom exemplo da beleza e como o cinema apesar de tudo nos pode dar uma visão mais positiva do mundo. Como eu gostava de fazer uma filme como este sobre a minha Lisboa!
JVM
Critica | Retratos Fantasmas
Movie title: Retratos Fantasmas
Movie description: Fruto de sete anos de trabalho, pesquisa, filmagens e montagem, ‘Retratos Fantasmas’, de Kleber Mendonça Filho, mostra-nos o espaço histórico e humano da cidade do Recife, como personagem principal, revisitando-a através dos grandes cinemas que serviram como espaços de convívio cinéfilo, durante o século XX.
Date published: 23 de August de 2023
Country: Brasil
Duration: 93 min
Director(s): Kleber Mendonça Filho
Genre: Documentário, 2023,
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José Vieira Mendes - 100
CONCLUSÃO:
‘Retratos Fantasmas’, o brilhante documentário de Kleber Mendonça Filho, aborda a sua história familiar, a sua cidade, o seu país e o seu cinema, e a evolução do consumo cinematográfico, através do desaparecimento das grandes salas. O filme é particularmente tocante, sobretudo para aqueles que passaram por estas mudanças de décadas, seja no Brasil ou em Portugal, a nossa cidade que se transformou, os entes queridos que perdemos, as nossas casas familiares que deixamos, as velhas salas de cinema que desapareceram, transformadas agora em igrejas evangélicas ou lojas de comércio. Portanto, é difícil não nos emocionarmos com o desaparecimento desse mundo que conhecíamos bem e a chegada de um outro que estamos a tentar adaptarmo-nos. O realizador, não diz que os tempos passados foram melhores, mostra-nos antes um processo de mudança, que se vai tornando irreconhecível, em relação ao que conhecemos e amámos. Isso, acontece com as cidades, acontece com os filmes, acontece com as pessoas, acontece com tudo…sobretudo quando passamos dos 50 anos. Viva a magia do cinema…
JVM
Pros
A sequência final, quase em jeito de curta-metragem dentro do proprio filme, é uma das mais belas da obra do realizador e um exemplo perfeito da contagiante magia do cinema. Até fico arrepiado!
Cons
A nostalgia e melancolia desses tempos, nem melhores nem piores, mas que aprendemos amar e a dificuldade que sentimos em nos adaptar aos novos, que aí vêm, sobretudo quando como o realizador chegamos à meia-idade.