Doclisboa ’22 | Competição Portuguesa 1, em análise
O Doclisboa ’22 já começou, comemorando 20 edições do certame. A presente edição decorrerá entre os dias 6 e 16 de outubro, com programação na Culturgest, Cinema São Jorge e Cinema Ideal, entre outros espaços complementares. Na sexta-feira, dia 7 de outubro, a Competição Portuguesa arrancou com o 1º conjunto de filmes.
No segundo dia da 20ª edição do Doclisboa, arrancou a Competição Portuguesa, a qual se faz compor por um total de 12 filmes, na sua vasta maioria curtas-metragens. No dia 7 de outubro, pelas 19h00, e no Cinema São Jorge, foi possível assistir às obras “Luana”, “May the Earth Become the Sky” e “A Ilha”. Refletimos agora sobre dois dos três títulos exibidos.
COMPETIÇÃO PORTUGUESA – LUANA (2022)
De Maria Simões e Tiago Melo Bento (Portugal, Uruguai, 18′)
Em Cabo Polónio, no Uruguai, Luana é uma das poucas crianças de uma comunidade que vive isolada, sem água, luz eléctrica ou acesso fácil. É através do seu olhar que descobrimos um mundo pautado pela violência dos elementos, ancorado na solidão de um movimento colectivo que experimenta ainda uma utopia social. O vento, o mar, o sol, a areia sem fim e os animais compõem uma paisagem onde a vida persiste, apesar de tudo.
Inicialmente, a fita traduz-se quase como se de um filme doméstico se tratasse, não fosse a existência de ambiciosos planos gerais da natureza. O universo da curta faz-se numa pequena cabana, que vai sendo intercalada com imagens do deslumbrante meio natural. Estas traduzem o mundo de Luana como um praticamente intocado pela destruidora mão humana.
Aqui, a praia e o deserto são sempre magnânimos, mas mais belos quando ausentes da companhia humana. “Luana” é uma curta-metragem capaz de observar atentamente e refletir tanto sobre o particular como sobre o geral, propondo um contexto em que a humanidade se equilibra com o seu meio envolvente.
Do ponto de vista técnico, a imagem a pender para o escura e granulada acaba por não permitir a valorização do local em todo o seu esplendor por parte de quem assiste à curta e, deste lado, tenta imaginar como seria explorar o mundo de Luana.
65/100
A ILHA (2022)
De Mónica de Miranda (Portugal, 38′)
Após 500 anos de presença africana em Portugal, os negros refugiam-se na criação utópica de A Ilha. Um lugar situado no espaço entre a ficção e a realidade, onde se pode reescrever histórias e pensar futuros através das personagens e seus percursos.
Também elegível para a competição de curtas e em estreia mundial na presente edição do Doclisboa, “A Ilha” é uma reinvenção e reapropriação da História que ao longo de centenas de anos foi brutalmente silenciada. A obra de Mónica de Miranda não pretende situar-se no reino puro do documentário, antes pelo contrário, afirmando-se como um híbrido onírico que pensa como a memória coletiva de um povo se constrói.
“A minha voz vem dos meus mortos”, diz-nos a primeira narradora de “A Ilha” na abertura desta poética e trespassante obra. Com as primeiras frases fica assente a tese defendida de forma tão eloquente por Mónica de Miranda, a de que os antepassados de todos os intervenientes deste filme são transportados por estes. Tal como a realizadora defende na sinopse longa do filme, cada uma das personagens passará por uma viagem física e interior. Esta viagem pressupõe “a redenção do passado e a capacidade de imaginar o futuro”.
Nesta abertura da Competição Portuguesa, e tendo em conta que a memória colonial se encontra em foco nesta edição do Doclisboa, “A Ilha” é um título pertinente e poderoso, por colocar a história e a cultura africana num local de destaque antes negado. É uma arma contra os preconceitos mais fortemente enraizados na sociedade portuguesa, e Mónica de Miranda assim concebeu esta bela curta com tais intenções em mente.
De acordo com Miranda, “A ilha situa-se fora do olhar eurocêntrico, desenvolvendo uma perspetiva feminista negra” (a certa altura é dito, “transforma-te na vida que transborda”). O apelo à ação e à resistência está patente em casa frase, em cada gesto, em cada olhar de não conformidade.
A “ilha” baseia-se num termo do século XVII e XVIII, que pejorativamente apelidou “Ilha dos Pretos” às comunidades negras que se fixaram junto do rio Sado. Agora, esta peça pós-colonial rescreve a memória destes espaços.
“A vida está aqui, já nasceu, e agora podemos respirar”.
Esta curta-metragem apresenta-se como um poema visual calmo, idílico, tranquilizante e que transporta consigo a promessa de um amanhã menos polarizado. Impressiona também pela imensa qualidade do texto (co-escrito pela realizadora) e das movimentações cénicas dramáticas mas poderosas. Uma curta capaz de purgar traumas ou, pelo menos, lutar arduamente e de forma admirável nessa direção.
88/100
Não percam a cobertura da Magazine.HD ao longo destes 10 dias de Doclisboa em 2022, durante os quais todo o mundo cabe em Lisboa! Quanto à Competição Portuguesa 1, este conjunto de curtas-metragens volta a exibir no dia 9 de outubro, domingo, logo pelas 10h30, no Pequeno Auditório da Culturgest.