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Eu Capitão, a Crítica | Matteo Garrone realiza uma obra nomeada aos Óscares de 2024

Matteo Garrone presenteia-nos com “Eu Capitão”, a obra italiana que representa o país na cerimónia dos Óscares de 2024!

Não restam muitas dúvidas de que vivemos num mundo de grotescos contrastes onde o cinismo e a hipocrisia dos países ricos prevalece demolidor contra o chamado Terceiro Mundo. Em vez de se atenuarem as diferenças entre os povos, são cada vez maiores as barreiras que separam os países industrializados do Norte da maioria dos países do Sul em que o considerado inevitável subdesenvolvimento persiste como uma ferida aberta que infecta a sua vida política, social, económica e cultural. Neste contexto, há cidadãos que assumem movimentos contraditórios motivados por objectivos simetricamente opostos e que na prática revelam preocupações aparentemente inconciliáveis com a razão que leva uns e outros a serem deles protagonistas.

QUANDO OS SONHOS SE CRUZAM COM O PESADELO

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Senão vejamos: aqui na Europa, e não só, há quem pague uma pequena fortuna por viagens a regiões ditas exóticas onde desejam encontrar o El Dorado prometido pelas agências e pelo marketing que só mostra o que lhe interessa mostrar, ou seja, grandes aventuras orientadas em geral para as mesmíssimas áreas geográficas de onde partem diariamente centenas ou mesmo milhares de desesperados, impelidos pelas condições em que vivem ou por conflitos e perseguições da pior espécie. Pessoas que afinal de contas pagam igualmente, proporcionalmente aos seus recursos, autênticas fortunas para seguirem viagem mas em sentido contrário.

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Num dos lados, vemos alegres viajantes que possuem uma série de garantias de regressar a casa ilesos de complicações. No outro, vemos migrantes acossados por condições extremas e sem qualquer garantia de atingir o destino almejado e sonhado, quanto mais de regressar ao lar e família que com pesar ou resignação abandonaram. Esta reflexão sobre o modo como o planeta vive paredes meias entre o sonho e o pesadelo serve de introdução aos valores veiculados no muito interessante e de visão urgente, “Io Capitano” (Eu Capitão), 2023, realizado pelo italiano Matteo Garrone e protagonizado por excelentes actores não-profissionais, dos quais se destaca o expressivo Seydou Sarr no papel de um adolescente chamado Seydou.




Ele e um jovem amigo, Moussa (Moustapha Fall), habitam num bairro pobre de Dakar, capital do Senegal, e através de biscates aqui e além conseguem angariar uma apreciável quantia, para os padrões económicos locais, dinheiro com que sonham comprar a “passagem” para a Europa, mais precisamente para Itália. Este país surge aos seus olhos através das redes sociais como o local onde os sonhos se podem concretizar, sonhos que são fruto de algo que podemos considerar a maior e mais grave alienação provocada pelo fosso civilizacional aberto quando se produz o choque entre as infra-estruturas económicas mais desenvolvidas e o reflexo de ilusão que elas produzem na super-estrutura ideológica de quem, como eles, se admira a certa altura com o facto de na Europa existir quem durma nas ruas e passe fome se não for ajudado.

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Entretanto, um senegalês mais velho e mais experimentado nas coisas da vida procura demover os rapazes de darem corda aos sapatos numa jornada repleta de perigos. Mas, como dissemos anteriormente, pode a razão vencer a vontade indómita de quem acredita numa quimera? Dificilmente…! Nem a mãe de Seydou, com a sua natural autoridade, o consegue convencer a ficar com ela e a permanecer no país. Desde cedo, este filme dá-nos uma visão nua e crua da ilusão que passo a passo empurra Seydou e Moussa do sonho para o pesadelo. Quando finalmente os dois rapazes viram costas ao passado acabam por comprometer o futuro, sobretudo quando se entregam nas mãos de gente sem escrúpulos que sem qualquer grau de solidariedade os vão, literalmente, roubando pelo caminho, obrigando-os a pagar por serviços que em certos casos nem sequer são cumpridos na íntegra.

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Isto porque a engrenagem de cupidez urdida pelas máfias locais e por polícias corruptos manobra os mecanismos de exploração que fazem destes migrantes meros números de um negócio canalha, por vezes de contornos macabros e mergulhado na mais óbvia e semi-clandestina actividade criminosa. Matteo Garrone não poupa ninguém, nem mesmo os jovens, ao confrontá-los com a realidade das malhas apertadas das redes em que eles caem, junto com centenas de outros oriundos dos países subsarianos. Será precisamente no Deserto do Sahara que as agrestes provações físicas se consubstanciam, e as piores nem vão ser as inerentes ao inóspito esforço constituído pelo calcorrear das íngremes dunas e pelo imenso mar de areia.




No deserto dá-se igualmente uma separação forçada entre Seydou e Moussa que só será resolvida mais para a frente e numa altura em que já ninguém duvida, nem mesmo o espectador, de que esta viagem se fez desde o início sob o espectro da morte e das arbitrariedades que podiam acontecer a qualquer momento. Mas há um ponto a reter: o facto de a realização não ignorar o lado feérico e simbólico que os sonhos de Seydou representam no processo narrativo. Esses episódios oníricos inseridos num conjunto de sequências exemplares de “Eu Capitão” não estão lá para aliviar a consciência das personagens nem adocicar as circunvoluções da acção.

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Estão lá para acentuar as amargas contradições da personalidade humana que não se apaga da maneira de ser e estar de Seydou, nem do seu pensamento onde vagueiam medos que irão assolá-lo enquanto comandante de uma odisseia que irá catapultar um rapaz de dezasseis anos para responsabilidades adultas que em Dakar nunca sonhara ser obrigado a assumir. Destaque para a mestria da realização e para o modo como os diferentes intervenientes nas diversas áreas da produção conseguiram atribuir um cunho de verdade ao quadro de reconstituições necessário para credibilizar as grandes linhas da acção e dos diálogos assumidos nas línguas de cada actor (a rodagem desenrolou-se no Senegal, Marrocos e Itália).

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Impressionante o modo como os actores, protagonistas ou secundários, conferem um peso e uma força especial ao modo como interagem, sem que a sua composição soe a falso ou a excessiva. Na verdade, nada acontece por acaso, e não custa acreditar que muito do que eles estão a representar passa pela memória de situações que realmente viveram e pela interpretação e assimilação de muitas histórias ouvidas a compatriotas que passaram pelo mesmo e sobreviveram para o contar. Também, provavelmente, pela memória de muitos que ficaram pelo caminho e cujas histórias não precisaram de ser contadas para se perceber o seu sentido e dor.

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Matteo Garrone sabe igualmente que nestas assombradas peregrinações há factores religiosos que amparam os que sofrem, no plano espiritual a fé que move montanhas e no plano material a que vence a aridez do deserto e as vagas e correntes do Mar Mediterrâneo. Como a certa altura alguém diz, “sempre em frente, rumo ao Norte”. Como quem diz, “não olhem para o que ficou, mas sim para o que aí vem”. Por isso, numa sequência fulcral de “Eu Capitão”, arrepia ouvir Allahu Akbar, Deus É Grande, não como um grito de guerra ou um chamamento religioso, mas antes como um apelo a uma união dos migrantes contra as grandes adversidades do destino. Não só o devir dos homens, mulheres e crianças, mas também o da Terra Prometida, de que a costa da Sicília parece ser o improvável mas finalmente primeiro e se calhar derradeiro refúgio. Mas o filme não acaba aqui, fica em aberto, e cabe-nos julgar subjectivamente qual será mesmo o destino que os espera, a Seydou, a Moussa, e aos milhares que arriscaram e vão continuar a arriscar a vida numa viagem nada segura para um paraíso que está longe de o ser e que na verdade não se encontra ali ao virar da esquina.

Eu Capitão, a Crítica
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Movie title: Io capitano

Director(s): Matteo Garrone

Actor(s): Seydou Sarr, Moustapha Fall, Issaka Sawadogo, Hichem Yacoubi, Doodou Sagna

Genre: Drama, 2023, 121min

  • João Garção Borges - 90
90

Conclusão:

PRÓS: Há quatro grandes vectores que importa destacar nesta co-produção entre a Itália, a Bélgica e a França.

Primeiro, a segurança da realização e da direcção de actores (na sua maioria não profissionais).

Segundo, a perfeita adequação da Direcção de Fotografia (Paolo Carnera) que, sem fazer concessões ao rodriginho folclórico dos ambientes “exóticos”, não abandona o lado sedutor das imagens que assim se conjugam na perfeição com a banda sonora, onde a música desempenha igualmente um papel de relevo.

Terceiro, um argumento feito da simbiose criativa e segura de muitas fontes orais, de experiências pessoais vividas in loco

e de notícias que qualquer um de nós que ande atento aos fenómenos das migrações pode encontrar no dia-a-dia.

Quarto, a profusão de prémios recebidos. Destaque para os do Festival de Veneza em 2023: Leão de Prata para Melhor Realizador, Prémio Marcello Mastroianni para Seydou Sarr, e ainda outros nove em diferentes categorias. Em suma, recebeu as mais do que merecidas distinções, excepto o Leão de Ouro que foi, adivinhem lá, para a fantasia pseudo-barroca “Pobres Criaturas”, do grego Yorgos Lanthimos. Numa palavra, na competição principal o júri preferiu as pobres criaturas lideradas por Emma Stone aos pobres aventureiros de carne e osso que são hoje e nos anos que se vão seguir exemplo maior de um dos mais graves problemas que a Europa enfrenta e continuará a enfrentar, o assalto das suas fronteiras por povos em fuga da miséria, situação que podia ser evitada ou pelo menos moderada com um centésimo do orçamento que se está a pensar desviar e cativar para a produção de armas. Por curiosidade, no mesmo festival e no mesmo ano, outro drama sobre migrantes que podemos enquadrar no estatuto de refugiados, “Green Border”, 2023, da polaca Agnieszka Holland, recebeu o Prémio Especial do Júri e ainda seis outros mais ou menos secundários. Neste caso, um filme politicamente redundante, menos subtil e com muito má-consciência sobre o autêntico conflito que se estabeleceu na fronteira entre a Polónia e a Bielorrússia, com cada lado a empurrar para o outro os homens e mulheres que procuravam entrar na Europa, mais precisamente na União Europeia.

Finalmente, “Eu Capitão” está nomeado para o Óscar na categoria de Melhor Produção Internacional. Hipóteses contra os seus concorrentes? Pessoalmente só um deles me parece mais forte, “A Zona de Interesse”, 2023, de Jonathan Glazer. Mas como não sou nem quero ser membro da Academia, os meus votos não contam e fico simplesmente a aguardar o resultado na madrugada de 10 para 11 do próximo mês de Março, e assim aproveito para pensar noutra coisa que não apenas o desenlace das eleições legislativas que se realizam nesse mesmo dia.

CONTRA: Nada.

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