©Festival de Clermont-Ferrand

Festival de Clermont-Ferrand 2024: Curtas, a Crítica | Cul de Sac, 2720 e Quase me Lembro em análise

“Cul de Sac”, “2720” e “Quase me Lembro” marcaram presença na mais recente edição do Festival de Clermont-Ferrand.

Decorre em França (2-10 Fevereiro) a 46ª edição da competição nacional, a 36ª edição da competição internacional, a 26ª edição da competição labo e a 39ª edição do Marché du Film Court. Tudo reunido no muito bem organizado Festival du Court Métrage de Clermont-Ferrand, a mais importante manifestação do género, que supera largamente no quadro estratégico de capitalização e comercialização de curtas-metragens qualquer outra das muitas que se realizam e, por vezes, se multiplicam como cogumelos por esse mundo fora. Durante anos acompanhei in loco a programação proposta pelos principais mentores da organização, a associação Sauve Qui Peut Le Court Métrage, herdeiros directos e indirectos dos pais fundadores daquela que foi numa fase inicial uma singela retrospectiva de cinema francês erguida no final dos anos setenta do século XX por estudantes universitários.

TRÊS CURTAS-METRAGENS PORTUGUESAS NA COMPETIÇÃO DE CLERMONT-FERRAND

Na verdade, a Universidade de Clermont-Ferrand veio dar uma vida nova e um perfil novo a uma cidade que durante anos foi conhecida pelo sombrio e bisonho cognome de “Cidade Michelin” devido ao facto de a fábrica daquela marca empregar a maioria da força laboral local, e não só. Também ajudou os investimentos feitos pelas forças vivas da região, nomeadamente as defensoras do património da família liderada por Valéry Giscard d’Estaing, que ocupou o cargo de Presidente da República, e a valorização da cidade com excelentes equipamentos culturais graças a um outro presidente, o sempre amigo do Pays des Volcans, o “ami” François Miterrand. Por lá ganharam a vida muitos portugueses que acabaram por ficar e que ainda hoje dão um sabor e um sotaque especial a Clermont-Ferrand por serem, logo a seguir a Paris, a segunda maior comunidade de origem nacional a residir em França.

Festival de Clermont-Ferrand 2024 Cul de Sac
©Festival de Clermont-Ferrand

Para além da programação nas suas diversas competições e programas especiais, participei sobretudo no Mercado do Filme Curto, plataforma indispensável para quem quiser de forma séria estabelecer as bases de uma programação exigente para públicos exigentes, como sempre defendi durante os dezoito anos que durou o Onda Curta na RTP2, programa de que fui o autor e responsável pela produção e realização. Marca da RTP que se internacionalizou através de parcerias com um vasto leque de instituições e festivais de cinema na Europa, África, Ásia, América, e só faltou a Austrália e Nova Zelândia, parcerias que estavam previstas mas que não se concretizaram antes da minha rescisão amigável com a RTP e consequente interrupção do Onda Curta e das actividades a ele associadas.

Lê Também:   Pobres Criaturas, a Crítica | A nova colaboração de Emma Stone e Yorgos Lanthimos

Diga-se, o Onda Curta só espera pelas melhores condições objectivas e subjectivas para poder voltar a dar cartas num universo multifacetado e específico que, infelizmente, nos últimos anos em Portugal e noutras geografias não vem conquistando o lugar ao sol que bem merecia. De novo, voltarei a Clermont-Ferrand onde seguramente saudarei a companhia da Agência da Curta-Metragem que desde há anos substituiu no mercado a participação legítima mas demasiado institucional e burocrática do então IPACA, outra das designações que por cá deram ao IPC, ICAM e actual ICA. Entretanto, sem precisar de pôr os pés em França, estou em condições de vos dar conta daquilo que valem as curtas portuguesas que este ano foram seleccionadas para a competição internacional.




Primeira aposta, “Cul de Sac”, 2023, co-produção entre a Vertigo (Croácia) e a Olhar de Ulisses (Portugal), realizada por Vanja Vascarac e Mário Macedo. Mais do que o simples e rotineiro movimento de quatro skaters, logo de início gosto do modo como os sons dos rolamentos se misturam com o som geral dos acessos subterrâneos onde eles se infiltram para alcançar o objectivo maior de entrar no espaço deserto de um centro comercial. Estamos no domínio da criação de um espaço sonoro e não apenas de uma banda sonora com recurso ao som directo. Este efeito áudio e visual, sublinhado pelo eco e pelas geometrias arquitectónicas dos interiores, garante a atenção do espectador para a aparente futilidade do percurso de quatro rapazes pelos corredores vazios de lojas vazias.

Festival de Clermont-Ferrand 2024 Cul de Sac
©Festival de Clermont-Ferrand

Leia-se, vazias de clientes. Passados uns cinco minutos, o filme passa a um outro registo e ensaia um princípio de narrativa, mas aquilo que se ouve numa conversa a dois, que se destaca da acção geral que decorre num plano recuado, está longe de garantir a referida atenção e subitamente dá-se um salto qualitativo para outro nível de percepção. Uma cabeça de leão realista mas com movimentos deliberadamente falsos parece dizer-nos que a partir daqui nada parece impossível, ou melhor, nada parece estranho. Felizmente, os autores resistem a seguir um caminho sem controlo, e o que vemos até ao final passa por um curioso e sempre seguro exercício fílmico e estético concebido a partir de elementos que fazem parte do nosso quotidiano. Basta só vê-los com os olhos de quem se recusa a olhar para a mera funcionalidade redutora das coisas. Muito importante, sempre com a consciência de que nada faz o mesmo sentido sem a participação da componente humana.

Lê Também:   Os Delinquentes, a Crítica | A surpreendente obra do cineasta Rodrigo Moreno

Um dos problemas da curta-metragem são os orçamentos, que nunca dão para nada. Filmar assim prova que se aproveitarmos o que já existe e que não nos custou um cêntimo, e se soubermos aproveitar ao máximo as potencialidades da montagem e do digital, a única coisa que precisamos será carregar no pedal da imaginação, da competência e do engenho para atingir a meta desejada. (70/100)




Segunda aposta, “2720”, 2022, co-produção entre Portugal e a Suíça (Batalha Centro de Cinema e Arquipélago Filmes), realizada pelo já “veterano” Basil da Cunha. Se no filme que analisei anteriormente existia um evidente cuidado com o espaço sonoro, aquilo que mais gosto neste, e mais uma vez logo a abrir, passa pela mestria da Direcção de Fotografia (Vasco Viana) em construir um espaço fílmico baseado no pressuposto de concentrar sobre a personagem protagonista do momento o foco no local e minuto certos, subtraindo da equação a profundidade de campo que seria o mais “normal” mas o menos adequado para nos fazer entrar e fazer sentir dentro do plano e do ambiente retratado. Magnífico. Mas desenganem-se aqueles que possam pensar que a dialéctica som e imagem fica comprometida num exercício meramente virtuoso ou decorativo.

Festival de Clermont-Ferrand 2024 2720
©Festival de Clermont-Ferrand

Não, bem pelo contrário. Tudo o que se ouve no som, planificado ou não, pertence ao espaço fílmico, incluindo a continuidade, fabricada ou não na pós-produção, de sonoridades musicais precisas e identificadoras de uma cultura euro-africana que está por detrás da proto-narrativa. No momento em que esta dá lugar ao princípio de uma história – uma menina procura o irmão, narrativa que vai ser cruzada com outras que nos fazem divergir e embalar até ao final sem qualquer esforço de maior – os planos sequência extremamente bem coordenados no plano das localizações, e ainda mais bem concebidos ao nível da entrada em cena dos mais diferentes moradores do Bairro da Reboleira (onde o filme foi rodado e onde certamente a maioria dos actores não são profissionais da representação) asseguram uma crua mas quase hipnótica viagem pelo labirinto de ruas e becos degradados onde pessoas vivem sem queixumes ou choradinhos desnecessários, dizendo sem dizer o que entra pelos olhos dentro.

Lê Também:   A Zona de Interesse, a Crítica | Um drama inesquecível do realizador Jonathan Glazer

Eles são o lado B de uma sociedade que os não soube ou não quis integrar. Repito, magnífico filme e magnífica prova de que Basil da Cunha merece ser apoiado na continuidade da sua relativamente longa e sólida carreira. Não parecia um homem do cinema quando o Luís Urbano dele me falou nos idos de 2006-2007, numa altura em que ambos davam os primeiros passos, um como produtor e outro como realizador. Todavia, logo que vi os filmes do cineasta luso-suíço, não hesitei em programá-los no Onda Curta. Mas, se ele conhece a marginalidade social como ninguém, pode-se dizer em contrapartida que ocupa um lugar central e de pleno direito no moderno e mais radical cinema de curta-metragem a nível internacional. (100/100)




Terceira aposta, “Quase Me Lembro”, 2023, produção portuguesa da BAP – Animation Studios, realizada por Dimitri Mihajlovic e Miguel Lima. Trata-se de uma animação que me diz muito, porque a defendi com unhas e dentes no júri do ICA que lhe atribuiu o subsídio em 2019. Tenho o maior apreço pela produção de animação, por gosto pessoal de quem antes de se inscrever acertadamente na Escola de Cinema pensou seriamente matricular-se em Belas-Artes, mas igualmente pelo facto de ser aquela que comporta um maior investimento pessoal que não se concretiza num dia nem numa semana de rodagem. Prolonga-se por meses e anos que passam a fazer parte integrante e inequívoca da experiência existencial de quem assume a responsabilidade das suas diversas componentes autorais. Mais ainda quando a animação em causa recorre a processos orgânicos que, não sendo incompatíveis, não se filiam apenas na computação digital. No primeiro minuto, uma voz feminina questiona o avô. Parece claro, sem ser escancarado ou redutoramente explícito, que o seu familiar se enquadra num passado colonial.

Festival de Clermont-Ferrand 2024 Quase me Lembro
©Festival de Clermont-Ferrand

Os sinais e as máscaras estão lá para nos darem a informação que nos ajuda a organizar na nossa memória a eventual revelação da memória alheia. Neste percurso pelos meandros de um pretérito recalcado em confronto com a curiosidade e os episódios ocasionais do presente veremos como os sentimentos são voláteis, como ligeiro e belo se apresenta um pássaro de penugens pintadas de um branco e de um amarelo luminoso, o verdadeiro protagonista do quase invisível fio condutor que passa muitas vezes a esvoaçar de um lado para o outro no interior dos planos cuja evolução pictórica acompanhamos. Extraordinária ideia a de o fazer esbarrar contra a vidraça, a ilusão de liberdade.

Lê Também:   Kubrick por Kubrick, a Crítica | A história de Stanley Kubrick num documentário vencedor de um Emmy

Já antes o víramos numa situação limite mas de que saíra ileso, porque a respiração gráfica que desponta do seu voar precisava de uma conclusão mais natural e simultaneamente mais suave apesar de dramática. Porventura mais dramática do que o destino da casa de que saberemos o fim, precisamente, lá mais para o fim desta belíssima curta. Estamos aqui no domínio daquilo que apelido de verdadeiro cinema experimental, e se o júri de Clermont-Ferrand no ano passado soube descobrir e premiar a excelente qualidade da animação que ganhou o prémio nessa categoria, “O Homem do Lixo”, 2022, de Laura Gonçalves, produzida por Rodrigo Areias (Bando À Parte), esta que agora se apresenta não possui menos argumentos do que a citada. (100/100)

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *