Pobres Criaturas, a Crítica | A nova colaboração de Emma Stone e Yorgos Lanthimos
Yorgos Lanthimos volta a reunir-se com Emma Stone para trazer às audiências mundiais a sua nova obra, “Pobres Criaturas”.
Há na mais recente incursão do grego Yorgos Lanthimos pela grande produção cinematográfica, intitulada “Poor Things” (Pobres Criaturas), 2023 (misto de comédia negra e bizarra fantasia especulativa e experimental, polvilhada por laivos de ficção científica ao estilo Vitoriano), um sem número de correntes interiores que circulam para lá e para cá num permanente redemoinho e num qualquer líquido amniótico primitivo e essencial, sendo algumas dessas correntes quentes e frias mais subliminares e secretas nos primeiros minutos, mais expostas e cruas quando sentimos que foi atingida uma espécie de velocidade de cruzeiro. Muitas vezes essas correntes empurram-nos para a costa e para praias sulfurosas infestadas de góticas e barrocas formas que parecem saídas de um sonho louco de um ainda mais louco mentor de ideias sobre a vida para além da realidade palpável.
BELLA BAXTER OU A TEORIA DA EVOLUÇÃO RÁPIDA
Mas há outras forças que nos arrastam para fora de pé e para uma estranha deriva no mar alto, passada a rebentação mais perigosa consubstanciada em sucessivos vagalhões ou inofensivas ondas ficcionais, em que a probabilidade mais segura de nos salvarmos será deixarmos que o nosso corpo e mente sigam flutuando sem resistência até que um pedaço de qualquer material perdido de um antigo cataclismo ou anónimo naufrágio nos permita vislumbrar a superfície do oceano e as suas profundezas misteriosas com outro ânimo e outros olhos. O mesmo será dizer, outro modo de encarar a continuidade existencial que ninguém no seu perfeito juízo colocaria em causa nem desejaria abandonar a um destino que não pudesse controlar, ou seja, o caminho mais curto para a noite escura e sem fim.
Neste caso, não a morte (vade retro, satanás) mas o vazio absoluto que mil e uma imagens acumuladas podem constituir se não existir modo de unir as pontas soltas da filigrana narrativa que à medida que avança se enreda mais e mais num novelo do qual a ponta final se arrisca a nunca encontrar a do princípio, a saber, a semente que deu origem a uma desejada, ou não, gestação de histórias, daquelas que gostamos de prefaciar com “era uma vez…”.
Mas como já somos veteranos destas coisas de ir ao cinema, aqui vos deixamos algumas pistas para introduzir o que “Pobres Criaturas” encerra de melhor e ainda de menos mal nas suas muitas vezes deformadas e distorcidas quatro linhas do enquadramento. Leia-se, no universo propositadamente criado pelo argumentista Tony McNamara a partir do romance do escritor e artista plástico escocês Alasdair Gray (1934-2019), na fabulosa partitura original do compositor inglês Jerskin Fendrix, no estilo visionário do realizador mas, infelizmente, não na paleta de cor nem na maioria da imagética esforçadamente barroca da responsabilidade do irlandês Robbie Ryan (nem parece o mesmo que nos deu a cristalina visão do pub “The Old Oak”, de Ken Loach, recentemente estreado).
Trabalho redundante e saltitante de escala em escala, onde os expedientes ópticos combinados com o CGI geram uma atmosfera excessivamente fechada sobre si mesma, opção ainda mais incompreensível quando na mesma sequência se usam objectivas grandes angulares e normais. Para melhor compreensão de quem sabe alguma coisa de fotografia, planos obtidos de forma quase fastidiosa entre a fish-eye e a normal (50mm).
Mas, seja como for, vamos ao princípio para assinalar, recordar e sublinhar o belo plano de abertura que prenuncia a vertigem do e no abismo que se vai desenrolar pouco depois. Era uma vez um médico, o Dr. Godwin Baxter (Willem Dafoe), que fora cobaia do seu pai em experiências de orgânica complexidade e, sejamos francos, visível crueldade. Ele vai salvar uma rapariga da morte para a fazer reviver e, com esse renascimento físico, demonstrar não só as suas capacidades no plano material da ciência mas também no plano espiritual. Renascer associado aos domínios da redenção e da valorização das virtudes do raciocínio ou daquilo que podemos chamar a verdade da condição humana que nos distingue dos restantes membros do reino animal. Era um génio, sem dúvida, mas nem mesmo o mais genial dos cientistas, aparentemente, seria capaz de despertar os sentidos de uma mulher sem que o seu cérebro passasse por uma fase evolutiva até atingir a idade adulta.
Tudo no interior de uma casa e no contexto de um mundo por ele dominado e de certo modo inventado (vejam-se os animais que por ali andam, fruto de cruzamentos da mais exótica imaginação) onde procurou proteger a jovem de qualquer influência exterior. Estamos aqui perante a revisitação do mito criador de um Dr. Frankenstein. Só que desta vez o médico parece o monstro e a criatura uma variante adulta da inocente criança que irá ver explodir uma premente, sistemática e podemos dizer natural busca do prazer sexual. De início, Bella Baxter (magnífica interpretação de Emma Stone) descobre as delícias da masturbação, a auto-satisfação que faz dela uma criatura feliz. Mas a partir do momento em que entra nesta equação um escroque aventureiro, o advogado Duncan Wedderburn (Mark Ruffalo), ela vai confrontar essa felicidade com a necessidade compulsiva de lhe dar continuidade, mesmo que o preço a pagar seja elevado e ela nem sequer esteja em condições de o avaliar.
Duncan cruzara-se com Bella subvertendo a até ali apertada segurança e vigilância que o Dr. Baxter impunha. Mas, que fazer? Na verdade, aquela mulher irá morder o isco e ficar sujeita a desempenhar o papel de objecto de luxúria, facto que a não incomoda porque ser seduzida pela manha deste homem significava atingir horizontes que em muito contrastavam com os do seu improvável noivo, o pupilo do médico e professor, o singelo Max McCandles (Ramy Yussef). Tratava-se de uma oportunidade de ouro para se libertar das grilhetas que a confinavam na casa onde se sentia prisioneira, a mansão daquele que era o seu “pai e mãe” e a quem ela chamava GOD (Deus).
Dá-se então e a partir dali um salto qualitativo na sua percepção da realidade circundante. Munida de uma arguta compreensão das interacções humanas que observa com a mesma ingenuidade e inconveniência com que diz pela boca fora o que lhe vai na alma, passo a passo, rua a rua, desde os salões burgueses até ao mais prosaico e mundano bordel, paulatinamente irá aprender o ABC de como sobreviver por entre personagens que comparadas consigo são mais robóticas do que ela parecia ser na primeira metade do filme. Digamos que Bella Baxter vai sofrer as consequências do que ironicamente batizei de Teoria da Evolução Rápida. Facto que encostaria até o próprio Charles Darwin (1809-1882) ao muro da dúvida metódica se ele estivesse vivo e disposto a pagar para entrar numa sala de cinema.
No périplo encantado que numa fase inicial Duncan lhe proporciona, Bella vai passar por Lisboa, que veremos representada graficamente como se fosse uma cidade arrancada a uma amálgama de gravuras românticas combinadas com a estilização esboçada de aguarelas de bairros populares, uma cidade apimentada com uns quantos palácios e salões de pretéritos e decadentes aristocratas onde Bella aprende a dançar e a namorar com outros homens que não apenas com o seu enviesado “protector” e amante. Na verdade, este mostra-se demasiado exigente na frequência sexual com que ataca a sempre disponível e insaciável rapariga.
Pelo meio, e para elevar os níveis de açúcar no sangue, não faltam uns quantos pastéis de nata que ela vai devorar (felizmente, ninguém se lembrou dos inenarráveis pastéis de bacalhau com queijo da serra que dariam cabo do colesterol da pequena). Em contrapartida e como complemento musical, em rota de colisão com a generalidade da banda sonora, lá aparece a nossa Carminho a cantar e a dedilhar uma guitarra portuguesa. Plim, plim, plim, e adeus até ao meu regresso. Entretanto, Duncan não está para brincadeiras nem para apreciar um fado bem sincero, e como profissional do ciúme decide embarcar com Bella num navio que podia figurar em “Les Voyages Extraordinaires”, descritas por Jules Verne (1828-1905), através de mundos conhecidos e desconhecidos, magnificamente ilustrados por uma série de artistas visionários.
Próximo porto de abrigo ou desabrigo, vá-se lá saber, Alexandria no Egipto, onde a sorte cada vez mais atormentada de uma relação que se degradava a olhos vistos se irá confrontar com os azares da fortuna e, neste caso, com a derrocada das boas intenções de Bella Baxter relativamente aos pobrezinhos e ao sofrimento dos países com moscas, como diriam alguns dos contemporâneos imperialistas e racistas da época retratada nesta ficção. Depois de muitas reviravoltas e sempre acompanhados por uma Direcção Artística que esmaga qualquer veleidade de conceder um mínimo de espaço fílmico para as personagens respirarem.
Duncan ficara sem dinheiro e Bella cai nas malhas de uma madame sibilina, vendo-se obrigada a encarar essa fonte de rendimento que alguns apelidam como a mais antiga profissão do mundo. Nas horas vagas deambula com uma amiga africana por Paris, ambas já maiores e vacinadas por mil e uma noites de sexo, antes de regressar a Londres com pleno domínio da sua vida, do seu destino e com a consciência já não de ser uma pobre criatura mas sim a abençoada dona e senhora do seu nariz, melhor ainda, do mundo de que será plena e legítima herdeira. Teoria da Evolução Rápida, e viva a liberdade…!
Pobres Criaturas, a Crítica
Movie title: Poor Things
Director(s): Yorgos Lanthimos
Actor(s): Emma Stone, Mark Ruffalo, Willem Dafoe, Ramy Youssef, Christopher Abbott
Genre: Drama, 2023, 141min
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João Garção Borges - 75
Conclusão:
PRÓS: Mesmo nos excessos, o filme conquista a nossa simpatia e seguimos a sua burilada narrativa com expectactiva e interesse. Todavia, a minha grande objecção vai para a imagética adoptada. Já disse o que dela pensava, mas acrescento uma coisa: se há filme que merecia um ecrã IMAX e uma versão 3D, este era um deles.
Seria interessante ver até que ponto seria possível estabelecer dialécticas entre os planos próximos e recuados, com interferência na nossa percepção do devir narrativo e no posicionamento das personagens no interior do plano. Mas, não sendo assim, analisemos aquilo que se encontra entre as quatro linhas do enquadramento, e ponto final.
Por incrível que pareça, ou não, o Júri do Festival de Veneza de 2023 ficou embeiçado por ele (ou foi pela Emma Stone?) e atribuiu-lhe o galardão máximo, o Leão de Ouro.
Recebeu já este ano o Globo de Ouro para Melhor Comédia/Musical e ainda o de Melhor Actriz de Comédia/Musical, escusado será dizer, para a composição cinco estrelas da excelente Emma Stone.
CONTRA: Não obstante o que disse, nada de muito significativo. Trata-se de um filme curioso que merece uma visão atenta.