'Io Capitano'.© via Biennale di Venezia

Festival de Veneza | Io Capitano, dos Migrantes

O tema dos migrantes entrou na Competição de Veneza 80, com duas perspectivas diferentes: ‘Io Capitano’, do italiano Matteo Garrone, leva-nos através de uma épica viagem de dois jovens entre Dakar e a costa da Sicília e a polaca Agnieszka Holland, em ‘Green Border’, viajamos até à vergonhosa fronteira de arame farpado, entre a Bielorrússia e a Polónia.

Este dois dias de Competição trouxeram-nos momentos de grande emoção, com filmes fortes e políticos no mais nobre e autêntico sentido da palavra. Embora estejam longe de ser obras-primas, são filmes necessários e bastante oportunos. O tema dos migrantes entrou em Veneza 80 em força e numa nova perspectiva, aliás duas, capazes de agregar pontos de vista e motivos de debate, para uma melhor compreensão da opinião pública, de um dos grandes dramas do nosso tempo: as migrações. O primeiro filme intitulado Io Capitano, o muito aguardado épico do realizador italiano Matteo Garrone, sobre os jovens, Seydou Sarr e Moustapha Fall, numa viagem, que em uma boa parte é feita com as cores da camisola da Selecção de Portugal, (não estou a brincar, até porque há um lado de simbólico relacionado com o mar e até com o CR7). Este filme vem confirmar que o realizador de ‘Gomorra’, sabe usar como ninguém essa ficção, impregnada de realidade, para chegar a verdades submersas, incómodas e inacreditáveis, para uma sociedade civilizada, do século XXI.

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VÊ TRAILER DE ‘IO CAPITANO’




‘Io Capitano’, está apesar de tudo, idealmente ligado aos filmes anteriores de Garrone, mesmo que pelo meio tenha feito a fantasia ‘Pinóquio’. Aqui em ‘Io Capitano’ também há algo de poético, quando os dois rapazes senegaleses, apaixonados por música, decidem partir para uma Europa, imaginada como a terra prometida, onde os seus sonhos artísticos podem tornar-se realidade. Matteo Garrone acompanha os rapazinhos desde casa da família em Dakar, leva-os a atravessar o deserto do Sara, a sofrer a violência dos campos de concentração líbios, até à travessia do Mediterrâneo, por sua conta e risco e com uma enorme responsabilidade, nas costas.

Io Capitano
‘Io Capitano’. © Biennale di Venezia




É uma viagem épica, uma ‘Odisseia’ moderna, vivida entre a esperança e o sofrimento, que acaba por se tornar universal, metafórica e que serpenteia, pelas contradições e pelas incríveis crueldades do ser humano, que toda a gente parece olhar para o lado. ‘Io Capitano’, este inspirado e emocionante filme de Matteo Garrone, narra de uma forma extremamente realista essa jornada de esperança da África Negra em relação à Europa, que muitas vezes é esquecida nos media — existe uma agenda mais forte, que orienta para outras coisas como por exemplo a Guerra da Ucrânia, que rende mais — que é a tragédia diária de milhares de migrantes, que morrem entre o deserto africano e o Mar Mediterrâneo, às mãos dos novos traficantes de escravos e extorsionários de todo o tipo; e ainda sujeitos a todos os tipo de perigos, que vão além da fome, sede e tortura. Para tal, o realizador move-se, conscientemente numa fronteira muito ténue entre a retórica e a sinceridade, conseguindo mais ou menos permanecer na zona desta última e completando, com um filme particularmente emocionante. No entanto, o mérito tem de ser dado a Seydou Sarr, o jovem protagonista estreante, que tem uma interpretação muito convincente, que vai adquirindo intensidade em sintonia com o crescimento emocional da sua personagem. Seyoud é uma espécie de Pinóquio migrante, em busca de uma terra dos brinquedos e dos sonhos, que descobrirá rapidamente, que é tudo menos isso. O filme termina onde com as imagens de ‘Io Capitano’, a oferecerem-nos uma perspectiva inversa ao que vimos nos telejornais e às quais, não conseguimos ficar indiferentes.

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VÊ TRAILER DE ‘GREEN BORDER’




Por sua vez, a veterana realizadora polaca Agnieszka Holland, em ‘Green Border’, levou-nos à fronteira entre a Polónia e a Bielorrússia, para nos mostrar outra história incrível e cruel, vista de três pontos de vista: uma família de migrantes sírios, uma grupo de activistas polacos, que tentam ajudar os migrantes com os poucos meios que têm e com sacrifício pessoal e um polícia de fronteira polaco, indeciso entre o cumprimento do seu dever e a sua consciência. Porém Holland, quer-nos é falar do cinismo da Europa, das políticas de migração dos países da UE e de um drama que ocorre a pouco mais de 1000 quilómetros de distância do centro de decisões em Bruxelas. Um tema, que se consome, no silêncio (ensurdecedor) dos grandes meios de comunicação social, que informam todos os dias e por todos os lados, sobre tudo e mais alguma coisa, esquecendo que homens, mulheres e crianças como nós, morrem da forma surreal, empurrados violentamente, para um lado e para outro das fronteiras da Europa do Leste. Enquanto isso, uns políticos, sem memória, dos grandes conflitos do século XX na Europa, assobiam para o lado, propondo estratégias de paz enfumaçadas e ofensivas presumidas e decisivas, que não vão a lado nenhum. Neste filme, a polaca Agnieszka Holland, não manifesta nenhuma ideologia ou se põe do lado de alguém, inclusive do seu próprio país.

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Pelo contrário, mostra-nos, uma triste visão da história contemporânea da humanidade, que pode acabar numa grande tragédia a nível mundial. ‘Green Border’, não é um filme perfeito nem quer ser, mas o seu principal objectivo é lembrar-nos que o cinema é um meio extremamente poderoso, para confrontar mais uma vez realidades demasiado dramáticas para serem ignoradas. O filme faz perguntas para as quais não temos as respostas, porque não está nas nossas mãos, mas somente questionando, podemos tentar dar um pouco mais de sentido ao mundo. Holland e Garrone também (em ‘Io Capitano’), fazem exatamente isso com os seus filmes, levando o espectador a questionar-se, com o que é mostrado porque as histórias tendem a repetir-se silenciosamente, com a cumplicidade dos media. É a partir de filmes como estes que, abalados na alma, podemos começar a procurar respostas a estas questões, que os dois realizadores, não querem que de forma alguma fiquem por esquecidas e por resolver. É incrível, que ninguém queira acabar com isto!

JVM, em Veneza

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