© Festival do Rio 2019

Festival do Rio 2019 | A Força dos Espectadores

O Festival do Rio 2019 encerrou ontem, com um grande sucesso de público, e uma experiência de financiamento salvadora, resultado em boa parte das contribuições de última hora do público-cinéfilo. Pedro Costa e vários filmes portugueses estiveram nas várias secções e nas salas do Rio de Janeiro (RJ). 

O 21º Festival do Rio esteve quase para não se realizar devida a uma quebra nos apoios oficiais e de grandes patrocinadores como a Petrobrás — e até mudou as suas datas para 9-19 de Dezembro, quando habitualmente é em finais de Setembro/Outubro — e só aconteceu graças a uma acção de crownfunding com o público e, à insistência e determinação de uma equipa liderada há vários anos por Ilda Santiago. Foram 11 dias de sessões cheias, espalhadas por várias salas num RJ, — o festival não se concentra apenas numa grande sala, o que à partida pode parecer um inconveniente — onde apesar do calor as temperaturas estão ainda longe de um verão escaldante.

Lê Também:   European Film Challenge | Desafio: ‘Frankie’ Goes to Sintra…

TRAILER DO VENCEDOR ‘FIM DE FESTA’

Efectivamente ao lado da Mostra de São Paulo, o Festival do Rio é sem dúvida um dos mais importantes eventos cinematográficos do Brasil e da América do Sul, que seria obviamente danoso se não se tivesse realizado ou fosse interrompido. Valeu o bom senso e sobretudo a resistência dos espectadores fiéis. Quem ficou a ganhar foi o cinema brasileiro, e a Première Brasil, que teve mais oportunidade de se mostrar ao seu público, com as suas mais diversificadas estreias, da ficção ao documentário. Quanto aos prémios e começando pela Première Brasil, o vencedor do troféu Redentor foi a longa-metragem ‘Fim de Festa’, de Hilton Lacerda (‘Tatuagem’) mais um filme protagonizado pelo incontornável actor Irandhir Santos, um símbolo do cinema pernambucano. Ele interpreta o delegado Breno Wanderley que volta antecipadamente de férias, depois do período carnavalesco, para investigar o assassinato de uma jovem turista francesa e, vai encontrar semelhanças com a sua própria e complicada história de vida. Entre a quarta-feira de cinzas e o domingo a seguir ao Carnaval, o detective procura desvendar o crime, ao mesmo tempo que vê no seu filho, (também chamado Breno), uma oportunidade de dar a volta à vida.

TRAILER DO DOCUMENTÁRIO ‘A RESSACA’

O prémio de Melhor Documentário foi para ‘Ressaca’, de Vincent Rimbaux e Patrizia Landi, um filme que acompanha o corpo artístico do Theatro Municipal do Rio de Janeiro quando os seus salários foram suspensos devida à falência e esgotamento das finanças públicas cariocas. ‘Ressaca’ é um registo angustiante sobre os dias que decorreram para os artistas sem salários, que mostra ao mesmo tempo a sua resistência, criando e trabalhando, apesar de terem de lutar pela sua sobrevivência diária. A dupla ganhou também o troféu de Melhor Realização em documentário, enquanto Maya Da-Rin foi escolhida como a Melhor Realização de ficção, com ‘A Febre’, um filme que passou no Festival de Locarno (Melhor Ator e Prémio FIPRESCI). ‘A Febre’ conta a história de Justino, indígena do povo Desana, que é vigilante do porto de cargas de Manaus. Enquanto sua filha se prepara para estudar medicina na capital, Justino é tomado por uma febre misteriosa. A veterana e uma das maiores actrizes do cinema brasileiro Reginá Casé (‘A Que Horas Ela Volta?) foi eleita a Melhor Actriz, pela sua interpretação em ‘Três Verões’ um filme feito através do olhar de uma empregada e de um velho patriarca, ambos vítimas do sonho neoliberal, e um retrato dos altos e baixos do Brasil contemporâneo: todos os verões entre o Natal e Ano Novo, o casal Edgar e Marta recebe amigos e familiares na sua espectacular casa à beira-mar. Em 2015 correu tudo bem, mas em 2016 a festa foi cancelada. O filme na verdade é uma parábola sobre o que acontece aos que gravitam em torno dos ricos e poderosos quando a vida deles se desmorona. Fabricio Boliveira, ganhou o Prémio de Melhor Actor em ‘Breve Miragem de Sol’, um filme que conta a história de Paulo, um recém divorciado e desempregado, que começa a trabalhar como taxista para sobreviver e pagar a pensão do filho. Enquanto trabalha à noite pelas ruas do Rio de Janeiro, esperando dias melhores, Paulo ouve histórias dos passageiros que se assemelham com a sua e, que vivem numa cidade em decadência, que se reinventa para sobreviver, tal como a maioria dos seus habitantes.

TRAILER DE ‘BOMBSHELL: O ESCÂNDALO’

Quanto às produções estrangeiras, embora mais racionadas, acabaram por estrear alguns dos filmes mais importantes da temporada: ‘Bombshell: O Escândalo’, de Jay Roach, com Charlize Theron, Nicole Kidman, John Lithgow e Margot Robbie, um filme baseado num escândalo mediático mundial, o primeiro grande caso de assédio sexual antes do movimento #MeToo; ‘Jojo Rabbit’, de Taika Waititi, uma sátira passada na II Guerra Mundial que acompanha um solitário miúdo alemão solitário, que oscila entre os ideias nazistas e o humanismo de sua mãe que esconde uma jovem judia no botão de casa; ‘O Farol, do norte-americano Robert Eggers, que estreou recentemente no LEFFEST’19 em Lisboa, sobre dois faroleiros (Robert Pattinson e William Dafoe), um jovem e outro mais velho, que estão presos e isolados por causa de uma tempestade que parece interminável. Ao mesmo tempo que nasce uma tensão e conflito entre os dois, forças misteriosas reais ou parecem fazer evoluir os acontecimentos; ‘O Jovem Ahmed’, dos belgas Jean-Pierre e Luc Dardenne, — Prémio de Melhor Realização no último Festival de Cannes — sobre um jovem muçulmano de 13 anos que vive na Bélgica que seguindo ingenuamente as palavras de um imã local, e inspirado nos passos do primo extremista, começa a rejeitar a autoridade da mãe e decide assassinar a sua professora para impressionar os líderes religiosos; por último o palestiniano Elia Suleiman, apresentou a sua maravilhosa fábula ‘It Must Be Heaven. Em um dos melhores filmes do último Festival de Cannes’19, Suleiman viaja de Paris a Nova York, e encontra sempre algo que lhe faz lembrar a sua terra natal. A promessa de uma nova vida transforma-se numa comédia de enganos e situações inusitadas com a polícia, a modernidade e o preconceito, assente numa cómica viagem que explora as questões de identidade, nacionalidade e o pertença, questionando o fundamental para todos nós: onde é exactamente o lugar que podemos chamar de lar?

TRAILER DE ‘VITALINA VARELA’

Os filmes portugueses estiveram também em destaque sobretudo com a presença mais ilustre de Pedro Costa, que esteve no Festival do Rio’19 numa colaboração com o Instituto Moreira Salles, uma espécie de Fundação Calouste Gulbenkian, que tem uma sala de cinema programa pelo cineasta Kléber Mendonça Filho e onde recentemente houve uma retrospectiva da obra de João Pedro Rodrigues. Costa apresentou no Festival do Rio’19, duas das sua obras memoráveis: ‘No Quarto de Vanda’ (2000) e ‘Vitalina Varela’ (2019), em sessões completamente cheias, sendo que o seu último filme vai continuar em cartaz na sala do Moreira Sales. Além disso e apesar de muita gente me perguntar por ‘Variações’ e ‘A Herdade’, estrearam aqui no Festival do Rio’19 alguns dos melhores filmes portugueses recentes e quase todos produzidos pela ‘O Som e a Fúria’: ‘Campo’, de Tiago Espanha (este é por sinal da Terratreme), ‘O Filme de Bruno Aleixo’, de João Moreira e Pedro Santo, ‘Technoboss’, de João Nicolau, além de ‘Frankie’, do nova-iorquino Ira Sachs, filme todo rodado em Portugal e fotografado por Rui Poças, um técnico português muito requisitado e apreciado aqui no Brasil.

Festival do Rio 2019
Patricia Niedermeier, na peça ‘François Truffaut, o cinema é a minha vida’ | ©José Vieira Mendes

Apesar de pessoalmente nunca ter acompanhado o Festival do Rio, — mesmo desta vez foi como público individual e não como acreditado — ficou-se com a sensação (e foi comum ouvir) que esta edição foi, compreensivamente, mais fraca do que em anos anteriores pelo menos no que diz respeito às produções estrangeiras, apesar do seu lema ‘aqui vê-se o mundo’. Mas ganhou-se em contactos profissionais, pessoais e disponibilidade para outras coisas como o teatro — enquadrado também na programação — e sobretudo a pequena, e excelente peça: ‘François Truffaut, O Cinema é a Minha Vida’, uma parceria do produtor e realizador carioca Cavi Borges e do crítico e argumentista Rodrigo Fonseca, com uma magnifica interpretação quase solitária da actriz Patricia Niedermeier, que personaliza e viaja pela vida e obra do grande cineasta francês. Esta razoável e inteligente gestão feita pelo Festival do Rio’19 com recursos no limite, acabou por ser eficaz e resultar, evitando inclusive, aquilo que acontece na maioria dos festivais de público: uma programação intensa e megalómana, que cria muitas vezes indecisões e dificuldades aos espectadores em acompanharem tantas sessões e causando às vezes algumas sessões com pouca afluência de público. O que não foi o caso, no Festival do Rio’19.

José Vieira Mendes (no Rio de Janeiro)

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *