Still de “Across the Andes”, filme de Henrik Dahlbring © Magsun Media

Festival Mental | Entrevista a Henrik Dahlbring e Hannah Currie

A MHD entrevistou em exclusivo os realizadores Henrik Dahlbring e Hannah Currie que apresentaram os seus filmes no Festival Mental 2019. 

Com o término do MENTAL – Festival da Saúde Mental, não é só tempo para a equipa da Magazine.HD fazer o balanço deste festival, como também partilhar convosco a tão interessante conversa que tivemos com os realizadores Henrik Dahlbring e Hannah Currie.

Estes jovens cineastas – ele sueco e realizador de “Across the Andes”, ela escocesa e realizadora de “We Are All Here” – venceram o Open Call do Mental graças a trabalhos inspirados nas Demências, no Burnout e no FoMO (Fear of Missing Out). Com esta iniciativa, os cineastas puderam mostrar o seu trabalho em Lisboa e no Porto a todos os espectadores que estivessem igualmente interessados em conhecer aquilo que se faz ao nível do cinema documental que esteja relacionado com a saúde e com os transtornos mentais.

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Henrik Dahlbring, o cineasta de “Across the Andes” © Festival Mental

Henrik Dahlbring nasceu em Estocolmo em 1995, mas apesar dos seus 24 anos já passou por situações traumáticas e extremamente complexas no seio familiar que envolveram o contacto próximo com a depressão, o abuso de álcool e o consequente suicídio do seu pai. É isso que nos revela em “Across the Andes”, documentário contado segundo a perspetiva do cineasta juntamente com a da sua irmã Anna Dahlbring. Ambos reuniram-se, sete anos depois do suicídio de Magnus Dahlbring, para repensar o impacto da figura paterna nas suas vidas.

Já a escocesa Hannah Currie, promotora musical, DJ e documentarista sempre esteve empenhada despertar o público para uma maior consciencialização sobre as doenças mentais e para as questões em torno do suicídio, que considera ainda um estigma juntos da sociedade, sobretudo os mais jovens. Hannah Currie trabalha como consultora na associação britânica Mental Health Foundation e a sua curta-metragem “We Are All Here” tem sido galardoada com diferentes prémios. Graças a ela, Currie recebeu o Mind Media Award em 2018, o Audience Award no Glasgow Short Film Festival 2019 e o prémio de Melhor Curta Documentário na SMHAF – Scottish Mental Health Arts Festival 2019, tendo também sido adaptado para a televisão, mais especificamente, para a BBC.

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A cineasta Hannah Currie, realizadora de “We are all here” © Festival Mental

Enquanto que o trabalho cinematográfico de Hannah Currie foi feito sobretudo do ponto de vista “social”, ou seja, em que a cineasta não tinha qualquer relacionamento prévio com as personagens que decidiu filmar, o trabalho de Henrik Dalhbring é mais íntimo e pessoal. Mesmo assim, ambos complementam-se porque transpõem perfeitamente as ideias e a temática do Festival Mental: é preciso um maior interesse do público e essencialmente dos governos na saúde mental, de forma a combater qualquer tipo de preconceito e eventual isolamento dos indivíduos.

Por mera coincidência ou destino, a nossa entrevista a Henrik Dahlbring e Hannah Currie ocorreu no momento em que “Joker” (Todd Phillips, 2019), filme da Warner Bros. Pictures baseado no famoso vilão da DC Comics do Universo Batman – começava a captar atenção no que respeita às questões que convoca em torno da saúde mental. Nessa obra, somos confrontados com as origens de Arthur Fleck, um comediante fracassado e solitário que eventualmente torna-se um criminoso criado pela sociedade cruel que o colocou de lado.

Os políticos e o governo devem prestar mais atenção aos problemas que envolvem a saúde mental. Está a tornar-se num problema cada vez maior mesmo que lhe seja dada mais atenção agora. É bom que se fale cada vez mais da saúde mental, especialmente em cinema, porque esta arte consegue chegar a mais pessoas. Henrik Dahlbring

Na verdade, o cinema comercial de Hollywood tem um papel importante na sensibilização do público em torno de uma questão tão multifacetada como a saúde mental. Contudo, é certo que as histórias contadas por este pólo cinematográfico não podem continuar a perpetuar a ideia que os homens e as mulheres com histórico de personalidade anti-social tornam-se homicidas. Daí que exista o cinema independente e alternativo, que rompe com os seus dogmas, como mostraram os autores Henrik Dahlbring e Hannah Currie no Festival Mental. Como estes cineastas, acreditamos que é necessário haver um esclarecimento maior dos diferentes públicos, mas tudo deve começar pela tomada de decisões justas e eficazes dos diferentes governos mundiais.

Afinal, nem Henrik Dalhbring, nem Hannah Currie são os primeiros a abordar saúde mental no cinema, apenas não tem existido a sensibilidade dos governos e instituições governamentais em informar os seus públicos, sobretudo os mais jovens presos aos telemóveis. É, por isso, que nascem espaços de debate como o Mental – Festival de Saúde Mental, que contou incrivelmente com o apoio do Programa Nacional para a Saúde Mental promovida pela Direcção Geral de Saúde. Falamos sobre tudo isto e muito mais, e na realidade, tivemos mesmo uma das conversas mais interessantes dos últimos tempos.

Não percas agora a nossa entrevista com Henrik Dalhbring e Hannah Currie a seguir e conhece mais sobre o Mental!

MHD: Qual foram os vossos objetivos ao abordarem a temática do suicídio em “Across the Andes” e “We Are All Here”?

Henrik Dahlbring: Falar do meu pai em “Across the Andes”, nesse sentido, sempre foi difícil, tanto para mim como para a minha irmã Anna. Pessoalmente, tenho-me sentido envergonhado e receoso de contar a nossa história devido aos estigmas à volta de temas como o vício e do suicídio. Não queríamos que as pessoas pensassem mal do nosso pai, mas tínhamos de ser verdadeiros para connosco e para com a nossa história. Para mim sempre foi fácil expressar-me através do cinema, por isso, tornou-se óbvio que o filme teria de ser feito mais cedo ou mais tarde. Não só por mim, como também pelas pessoas com quem eu e a minha irmã nos relacionamos, por todas as pessoas que já viveram algo semelhante, e pelo público que merece conhecer esta história.

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Henrik Dahlbring e Anna Dahlbring em “Across the Andes” © Festival Mental

Hannah Currie: O suicídio é o maior assassino de homens com menos de 50 anos no Reino Unido – e é um problema mundial – por isso, acredito que existe uma urgência real em falar sobre este problema, particularmente junto dos jovens. O meu filme “We Are All Here”, conta a história de um jovem rapper que se suicidou aos 21 anos chamado Lumo. A sua história é trágica mas, incrivelmente poderosa, e a sua música é bastante profunda. Acredito que esta seja a chave para se conseguir falar sobre a saúde mental junto dos mais jovens, de uma forma nunca antes vista, ou sequer ouvida. Acredito que tenha o poder de os fazer considerar a sua própria saúde mental e a daqueles que os rodeiam. Com isso, poderão falar com as pessoas que não se sentem bem, e irão se aperceber que é normal enfrentarmos dificuldades e pedirmos ajuda.

MHD: Tendo em conta que “Across the Andes” é uma história tão pessoal, diria que os cineastas ainda têm receio de trabalhar questões simultaneamente tão pensativas e profundas como o suicídio?

Henrik Dahlbring e Anna Dahlbring
Henrik Dahlbring e Anna Dahlbring em “Across the Andes” (2019) © Magsun Media

Henrik Dahlbring: De uma forma geral sim, penso que é normal quereres-te distanciar de experiências dolorosas, em vez de as confrontares e lidares com elas. Mas também começo a ver uma mudança a acontecer, uma em que os cineastas se atrevem a ser mais íntimos. Eu gostava de ver mais documentários sobre a saúde mental, por isso, vejo o Festival Mental como um festival importante que se foca em histórias tão comuns mas que raramente são contadas ou, então, são ignoradas completamente.

MHD: Já “We Are All Here” é uma história o jovem rapper Lumo (a.k.a. Calum Barnes) que cometeu suicídio…

Hannah Currie: O termo correto é “morrer por suicídio” e não “cometer suicídio” porque a última sugere que um pecado foi cometido, e eu vejo o Calum Barnes como vítima de uma doença mental. Não acho que os cineastas sentem medo de se aprofundarem nestes temas – dos documentários que tenho visto nos últimos anos, muitos tratam grandes temas como a saúde mental, o assédio sexual, a corrupção, a guerra… Para mim foi importante contar esta história porque estamos a perder muitas pessoas sem necessidade, e isso tem de mudar. A minha determinação é a de contribuir para que essa mudança se supere sempre às reservas que tenho pessoalmente em trabalhar um tema tão difícil.

MHD: Que momentos gostariam de destacar das filmagens e da pós-produção dos seus filmes?

Henrik Dalhbring: Falar da última vez que vimos o nosso pai vivo foi a coisa mais difícil e mais dolorosa que tivemos de fazer. Há muitos sentimentos de culpa quando se trata desse tópico, um sentimento de que poderia ter feito alguma coisa para o salvar, de que ele se matou por minha causa, e não importa quantas vezes me digam que a culpa não foi minha, não consigo abandonar esse sentimento. Penso que a culpa é algo muito natural quando perdemos alguém para o suicídio, mesmo que não seja lógico. Outra cena que teve um grande impacto na altura, e que ainda me marca, é a cena final no cemitério. Sem revelar o que acontece, posso dizer que foi como um sinal do nosso pai, uma onda vinda do outro lado. Ele terminou o filme como queria, mostrando-nos que era livre.

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© Festival Mental

Hannah Currie: Para mim, definitivamente foi testemunhar o impacto devastador que o suicídio tem nos entes queridos deixados para trás. Sou uma pessoa bastante empática que consegue sentir a dor das outras pessoas e conforme fui falando com a mãe, a irmã e os amigos do Calum, senti que a aquela perda foi muito pesada no meu coração.

MHD: Hannah, diga-nos que impacto terão as imagens de arquivo na construção de uma memória coletiva em “We Are All Here”?

Hannah Currie: Essa é uma grande questão! Este é um filme predominantemente de arquivo, o que me surpreendeu, pois só percebi isso depois de o terminar. O Calum deixou três álbuns de música e vários diários em vídeo, por isso, ele conta a sua própria história, na sua voz, através do filme, usando arquivo. De certa forma, ele é trazido de volta à vida para partilhar uma mensagem importante. Assim, o filme torna-se numa parte do arquivo. Os amigos e a família podem ver o filme e manter viva a memória do Calum mas, acima de tudo, a sua mensagem pode alcançar as pessoas. Ele falava bastante sobre a saúde mental quando estava vivo e com este filme, ele tem uma plataforma mundial para o fazer – é pena que não possa estar aqui para o ver. Acredito que o modo como as pessoas irão entender o filme é inteiramente pessoal. Gosto apenas de acreditar que, no final, será algo positivo que as ajudará.

MHD: Que impacto terão as imagens que o Henrik utilizou em “Across the Andes”? Além disso, que percepção terá o público sobre aquela que é, afinal, a sua realidade?

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Henrik Dahlbring, Anna Dahlbring, e Magnus Dahlbring em “Across the Andes” (2019)© Magsun Media

Henrik Dalhbring: Para nós, foi importante mostrar como o nosso pai era visto pelos outros. No início do filme, ficas com uma ideia de como ele era na maioria do tempo: feliz, infantil e brincalhão. Éramos nós, que o conhecíamos melhor, que sabíamos da sua luta com a saúde mental. A depressão nem sempre é vista por quem está de fora, pode acontecer a qualquer um. Mesmo ao meu pai que parecia não ter preocupações na vida. Depois de falar com muitos dos colegas dele, todos me diziam algo como “não tinha ideia de que estava doente” ou “não sabia que ele estava assim tão mal”. O meu pai também guardava muito da sua dor e acho que não queria ser visto como alguém doente ou que precisava de ajuda. Ele queria resolver os seus próprios problemas, o que era impossível.

MHD: Muitos filmes contemporâneos, do cinema comercial, assim como do cinema independente e até amador, abordam os transtornos psicológicos. Um dos casos mais recentes, bastante discutido pelos media é o de “Joker” (Todd Phillips, 2019). Podem estes filmes servir como entretenimento para o espectador, ou deverão ser mais um alerta para as instituições governamentais e políticas?

Henrik Dahlbring: A resposta mais curta e simples é sim. Os políticos e o governo devem prestar mais atenção aos problemas que envolvem a saúde mental. Está a tornar-se num problema cada vez maior mesmo que lhe seja dada mais atenção agora. É bom que se fale cada vez mais da saúde mental, especialmente em cinema porque consegue chegar a mais pessoas. Este não é um problema que se vá resolver sozinho e não podemos apenas esperar que os nossos políticos resolvam fazer alguma coisa se não querem saber, ou se não conhecem os problemas. Devemos votar e eleger os políticos e os partidos que, de facto, falam sobre a saúde mental como um problema em crescimento e naqueles que têm propostas para começar a resolvê-lo. Fala abertamente sobre a saúde mental, sobre a depressão e o suicídio, junto daqueles que te rodeiam. Pergunta-lhes como se sentem verdadeiramente e nunca envergonhes alguém que decida falar sobre estes temas.

Joker
Joaquin Phoenix em “Joker” | © NOS Audiovisuais

Hannah Currie: Não posso deixar de sublinhar que realmente o governo e os políticos têm de se debruçar seriamente sobre a saúde mental com urgência. Têm de investir na pesquisa e investir em serviços que garantam que ninguém fica de fora. Estar doente mentalmente é uma coisa assustadora e isoladora (sei disso por experiência própria). Temos de ver mais humanidade e empatia por parte do governo para ajudarmos as pessoas a sobreviverem e a melhorarem. Se não fizermos nada, a depressão irá tornar-se numa doença mundial até 2030 (estatística da Mental Health Fundation).

MHD: Como se sentiram ao vencerem o Open Call do Mental – Festival de Saúde Mental? Que importância teve para os vossos percursos profissionais?

Henrik Dahlbring: É uma honra ser premiado pelo meu trabalho. É uma boa afirmação de que fizeste algo em que alguém acreditou o suficiente para te premiar. Para mim, é suficiente saber que as pessoas conseguem ver o filme, por isso, estou muito agradecido ao festival por o ter exibido. Ser premiado também facilita ser aceite em outros festivais de cinema.

Hannah Currie: Fiquei muito contente com a notícia, pois prova que a história do Calum continua a ter um efeito global. A irmã dele e eu estamos tentadas a continuar a tour do filme pelo mundo e a continuar a falar de saúde mental com os mais novos, num esforço de reduzir o estigma e diminuir as taxas de suicídio. O filme foi recentemente mostrado no Indie Memphis Film Festival no Tennessee, e em fevereiro será mostrado no Singapore Mental Health Film Festival.

That Joke Isn’t Funny Anymore
“That Joke Isn’t Funny Anymore”, o próximo filme de Hannah Currie © Hannah Currie Film

Este filme já teve um impacto enorme na minha carreira e projetos futuros. É exatamente o tipo de filme que quero continuar a fazer – um filme que se dirige aos sentimentos e que fala sobre problemas de uma forma humana, com muita empatia e um toque de humor. Ser reconhecido com um prémio leva as pessoas a perceberem que existe valor neste tipo de projetos. Eles não têm de ser grandes blockbusters para serem alvo de investimento. Às vezes, o valor de um filme vai além do ganho financeiro e eu sei disso mais do que ninguém, afinal ainda não fiz um cêntimo com os documentários. Já pensei em abrir uma produtora de cinema e de lhe chamar Lumo Films, em honra ao protagonista do filme. Ele foi uma pessoa maravilhosa e sinto-me grata por ele, pela sua família e pelos seus amigos me terem permitido partilhar a sua história com o mundo.

Em colaboração com Ângela Costa

O que acharam da nossa conversa com o Henrik Dahlbring e a Hannah Currie? A 3ª edição do Mental – Festival de Cinema Mental começou a 1 de novembro e terminou a 23 de novembro de 2019. 

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