© Maus da Fita Film Production

Festival Política | Sessão Corpos Políticos – Alcindo

O Festival Política regressou a Lisboa, desta vez num regime presencial pleno, entre os dias 21 e 24 de abril de 2022, com a desinformação como temática principal. Depois de termos descoberto a “Sessão Refugiados” no dia 22, 23 de abril permitiu-nos visionar o dilacerante documentário “Alcindo” – programado no âmbito da “Sessão Corpos Políticos”. 

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No Cinema São Jorge e pelas 17h00, pôde ser vista, na Sala 3 do Cinema São Jorge, a Sessão Corpos Políticos, composta por “Bustagate” de Welket Bungué (12′) e “Alcindo” de Miguel Dores (79′). Em comum, estes filmes partilham a afirmação inequívoca de um racismo sistémico que Portugal recusa categoricamente confrontar, como dito país “brando” e acolhedor.

Festival Política Bustagate
Performance-Cleo Tavares e Isabél Zuaa| Kussa Productions ©ALL (CIVIL) RIGHTS MUST BE (P)RESERVED, 2020

A sessão arrancou com “Bustagate”, uma curta-metragem breve que, assente na lógica da intervenção filmada, tem por objetivo ilustrar, com demarcada raiva e revolta, a desigualdade social que assola Portugal. O espelho das desigualdades faz-se filmando a Amadora, mas acima de tudo expondo imagens prévias que ferem e que falam por si. Incidentes de violência policial no Bairro da Jamaica ou, com maior incidência, o incidente em que Cláudia Simões, uma cidadã negra que se esqueceu do passe de autocarro da filha em casa, acabou por ser agredida de forma cruel por parte de um agente das autoridades chamado ao local. Neste filme-intervenção, corrosivamente e ao mesmo tempo esperançosamente dedicado aos portugueses, são expostas e trabalhadas, uma e outra vez, imagens assombrosas e cruéis, que mostram um país muito menos tolerante do que se possa querer fazer assumir.

O realizador deixa claros os seus objetivos na nota de intenção partilhada com o Festival Política:

Temos de entender quais são as questões sociais fraturantes da nossa sociedade. Somos brandos, e por isso acreditamos que a colonização de África, da América do Sul (…) foi uma missão importante que uniu a humanidade. Hoje grande parte da nossa riqueza deriva dos ganhos do nosso passado de violência, portanto devemos muito a esses povos agora ex-colonizados. LIVRES.Bustagate é um filme híbrido, que mistura textualidade e três narrativas visuais para contar e asfixiar o público, fingindo colocá-los no mesmo lugar que a nossa defraudada Sociedade”.

A curta experimental é dedicada à memória do jovem Luís Giovani Rodrigues, estudante caboverdiano, brutalmente assassinado por um grupo de homens em Dezembro de 2019.

Estas imagens desoladoras são um preliminar perfeito para a longa-metragem que se segue: “Alcindo”, um documentário ágil, com uma montagem e uma banda-sonora fenomenais, que fazem tremer o espectador que assiste aos eventos imperdoáveis que culminaram no brutal linchamento do jovem Alcindo Monteiro em 1995. Há um antes e um depois de Alcindo, como o filme deixa transparecer. Em 2020, perante o assinalar dos 25 anos desde a morte deste jovem luminoso de 27 anos, oriundo de Cabo Verde, o assunto voltou à ordem do dia, mas como o filme deixa bem claro – a sua atualidade, infelizmente, nunca esmoreceu.

Alcindo no Política abril de 2022
©Festival Política/ Maus da Fita Film Production

A certa altura da obra, em contexto de entrevista, a irmã de Alcindo afirma que o irmão lhe tinha garantido que um dia seria famoso. Hoje, quem pesquisa Alcindo Monteiro no Google encontra até uma página de Wikipedia dedicada ao jovem. Contudo, o seu ato mais célebre é ter estado no dia errado, à hora errada. Sozinho na Rua Garrett, em Lisboa, à mercê de um grupo de neo-nazis que aterrorizava o Bairro Alto e violentava todo e qualquer cidadão negro que encontrasse pelo caminho. Alcindo veio a morrer dois dias depois das agressões, mas a sua história não deverá nunca deixar de ser contada até porque, para mal de Portugal enquanto suposta nação ultra-tolerante, não é caso único.

Miguel Dores desconstrói um conjunto de conceitos essenciais, num documentário inteligentíssimo que se recusa a explorar a morte violenta de Alcindo de forma a atingir um qualquer valor de choque. Nunca são os detalhes da agressão os protagonistas. Há valores mais importantes a defender. Antes, é evidente um claro e forte trabalho de investigação que permitiu construir um filme que procura examinar à lupa os eventos que culminaram na morte de Alcindo Monteiro. Eventos esses que têm origens prévias até ao seu nascimento.

Numa entrevista ao Projeto de Jornalismo de Investigação Setenta e Quatro, Miguel Dores deixa bem clara a tese defendida em “Alcindo”, afirmando que existe uma negação profunda do racismo associado a projetos celebrativos. Nesta longa-metragem documental, explora-se como o Dia de Portugal, 10 de Junho, visto como o “Dia da Portugalidade”, é uma data marcada pelo profundo luto das comunidades que recordam os crimes raciais perpetuados em Portugal. Foi a 10 de junho de 1995 que, depois do Sporting ganhar excepcionalmente a Taça de Portugal e com as celebrações do dia de Portugal como pretexto, um grupo de etno-nacionalistas saiu à rua, no Bairro Alto, para atacar brutalmente todas as pessoas negras encontradas pelo caminho. Foram no total 11 os atacados, mas apenas Alcindo teve o azar de se encontrar a caminhar uma rua praticamente vazia.

Para além de realizador, Miguel Dores é antropólogo e foi no âmbito do seu Mestrado em Antropologia e Culturas Visuais na NOVA/FCSH que realizou este seu “Alcindo”. A obra já foi previamente exibida no DocLisboa, em 2021, então com a presença da família de Alcindo na sala e por lá venceu o Prémio do Público. Não é motivo para menos – “Alcindo” faz tudo da forma mais correta, sem ser um documentário que procure reinventar a roda. É inteligente na sua abordagem, metódico – explorando as implicações que o Estado Novo e a sua herança têm nos valores coletivos que orientam o povo português e a sua cultura.

Para lá de ouvir a família de Alcindo, bem como os seus antigos colaboradores na oficina em que trabalhava no Barreiro, traçando um retrato muito humano e uma homenagem carinhosa à memória deste jovem que nunca teve o direito a envelhecer, Miguel Dores vai mais além e injeta neste filme a conjuntura. Magistralmente musicado, o filme dá espaço a alguns artistas, falando com rappers e outros jovens que partilham a mágoa e a frustração perante a impunidade dos gangues de extrema-direita no Portugal dos anos 90. Condena também os media da altura, embebidos de uma narrativa que preferia fantasiar sobre gangues negros (que nunca existiram na qualidade das entidades organizadas sobre as quais se escrevia) ao invés de confrontar algumas das piores heranças na cultura nacional (e nacionalista).

Festival Política em Lisboa e Braga Miguel Dores

As matérias de diálogo expostas previamente nesta sessão, em “Bustagate”, estão também elas de volta. O brutal ataque a Luís Giovani Rodrigues, os protestos organizados em sua honra, as manifestações americanizadas que honraram George Floyd, o abuso policial sofrido por Cláudia Simões, entre muitos outros incidentes referidos, compõem um mosaico que o realizador não pode (e bem) ignorar. Logo de início, “Alcindo” reflete sobre a necessidade de ser também um filme sobre o “aqui e agora” e não apenas acerca de uma memória. Recorda adicionalmente a importância das manifestações e da participação cívica, não tivesse o início das gravações sido surpreendido pela vigília em honra de Giovani. Não tivesse Bruno Candé sido brutalmente baleado assassinado à queima-roupa, em plena luz do dia, numa rua movimentada, por um antigo combatente do Ultramar. No meio de um frenesim de raiva adiada, Miguel Dores e a sua equipa, apoiados pela SOS Racismo, acompanharam as manifestações e tudo o que fervilhava no agora, sem nunca deixarem para trás o seu cuidado mapeamento do passado.

“Alcindo” é um pedaço de cinema duro, mas necessário – honesto, munido de uma intenção intervencionista e que dá voz a ativistas políticos. Pertence a esta edição do Festival Política e está imbuído do mesmo ADN e da mesma missão nobre: mitigar a desinformação, procurar compreender os fenómenos, examiná-los com cuidado e relembrar o que não pode ser esquecido.

TEASER TRAILER | ALCINDO: UMA PRODUÇÃO MAUS DA FITA COM O APOIO DA SOS RACISMO

 

O “Festival Política” esteve em Lisboa entre os dias 21 e 24 de abril de 2022. No início de maio ruma de novo ao Centro de Juventude de Braga. “Alcindo” volta a exibir, em conjunto com “Bustagate”, a 6 de maio de 2022. 

Alcindo, em análise
Poster Alcindo no Festival Política

Movie title: Alcindo

Movie description: A 10 de Junho de 1995 um grupo de nacionalistas sai às ruas do Bairro Alto para espancar de forma organizada pessoas negras que encontram pelo caminho. O resultado oficial do evento foram 11 vítimas, uma destas mortal, Alcindo Monteiro. Cruzando relatos de familiares, amigos e militantes, com arquivos audiovisuais e experiências de luta contemporâneas, Alcindo é a etnografia de uma noite longa - uma noite do tamanho de um país.

Date published: 25 de April de 2022

Country: Portugal

Duration: 79'

Director(s): Miguel Dores

Genre: Documentário

[ More ]

  • Maggie Silva - 90
  • Emanuel Candeias - 96
93

CONCLUSÃO

“Alcindo” é um estudo etnográfico complexo, que a partir do homicídio deste jovem cabo-verdiano examina à lupa os costumes portugueses que, ainda hoje, perpetuam um racismo sistemático que teima em ser negado. Miguel Dores recupera as raízes no Estado Novo e na Guerra do Ultramar de forma a confrontar o surgimento e a parca punição enfrentada pelos extremistas brancos.

Pros

  • O estudo etnográfico completo e cuidado;
  • A banda-sonora envolvente e diversificada;
  • Uma montagem que eleva o material de origem;
  • Uma homenagem bela;

Cons

  • Nada relevante a apontar;
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