"O teu nome é" recupera um evento traumático ©Animais – AVPL/ AGÊNCIA

Festival Política | Sessão Corpos Políticos II

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No último Dia do Festival Política em Lisboa, 24 de abril, pelas 15h30, assistimos, na Sala 3 do Cinema São Jorge, à “Sessão Corpos Políticos II”. Nesta inserem-se quatro curtas-metragens bastante distintas, que em comum partilham o facto de abordarem temáticas LGBTI+. Passamos a refletir, de forma breve, acerca das suas especificidades. 

Outra particularidade importante que une os filmes é que todos se tratam de, pelos menos, co-produções nacionais, reforçando uma vez mais a preferência por obras portuguesas de que o Festival Política se serviu para a sua seleção de longas e curtas-metragens em 2022.

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SESSÃO CORPOS POLÍTICOS II – O BERLOQUE VERMELHO DE ANDRÉ MURRAÇAS (8′, PORTUGAL) 

O BERLOQUE VERMELHO DE ANDRÉ MURRAÇAS
©André Murraças/ Festival Política

Um homem recebe de um amigo um berloque em forma de coração para pôr ao pescoço. Quando a jóia desaparece, o homem entra em pânico e não consegue lidar com os sentimentos que o gesto e a perda do berloque lhe suscitam. Num ato louco e sangrento, fará o impensável.

Esta sessão de curtas no âmbito do Festival Política arrancou com “O Berloque Vermelho”, um conto do século XIX que é aqui traduzido para o cinema por Murraças. Com o realizador presente na sala, foi possível aos espectadores aprenderem mais acerca do contexto em torno da criação desta obra.

“O Berloque Vermelho” foi um conto escrito em 1875 por António José da Silva Pinto e considera-se ser uma das primeiras, senão a primeira, representação da homossexualidade na literatura portuguesa. Este conto situado algures entre os reinos do drama, do terror e do gótico, foi a forma escolhida para ilustrar um amor que nesta altura era criminalizado – uma forma de amor proibida. Como o realizador nos recorda, durante a sua apresentação do filme, só na revisão constituição de 1982 é que a homossexualidade deixou de ser assumida como um crime

Que influência tiveram contos e outras histórias como “o Berloque Vermelho” na construção da homofobia interiorizada ao longo de décadas? São-nos apresentadas várias perguntas pertinentes antes de finalmente nos confrontarmos com esta pequena curta deliciosa, maravilhosamente animada, com recurso a ilustrações do Metropolitan Museum of Art, N.Y., realização, argumento e direcção de arte de André Murraças e ainda música de Sergey Cheremisinov

O encenador e dramaturgo André Murraças está mais ligado ao teatro e é formado em  Realização Plástica do Espectáculo. Este seu passado é nítido numa primeira incursão ao cinema, extremamente teatral no seu gesto e que, contudo, é também profundamente cinematográfica na sua decisão de substituir os diálogos por intertítulos típicos das primeiras décadas dos filmes, antes de chegar o som. Continuando fiel a este registo de evocação do passado, o filme, que anima recortes em stop-motion, é pintado a preto e branco. Toda a sua estética nos remete para um passado perdido mas, também, de igual forma, para os riscos que a mensagem deste conto transporta para o presente. 

O filme passou pelo Queer Porto em 2021 e é com alegria que o recebemos em Lisboa. Em breve, ainda com o Festival Política e no âmbito desta sessão, ruma a Braga.

Classificação: 80/100




O OFÍCIO DA ILUSÃO DE CLAÚDIA VAREJÃO (6′, PORTUGAL) 

O oficio da ilusão Sessão Corpos Políticos II política
©AGÊNCIA – PORTUGUESE SHORT FILM AGENCY

A arte da ilusão é esculpida com imagens de um arquivo familiar dos anos 70 e 80 e clips de som de filmes. Madame Bovary é a heroína de Flaubert e abre os anfitriões deste exercício narrativo. Com base no diálogo de Ema Paiva com o seu amigo e confidente Pedro Lumiares no filme “Vale Abraão”, de Manoel de Oliveira, entendemos a identidade de género como uma caracterização fechada dos valores sociais.

“O ofício da ilusão”, pequena curta-metragem da autoria da aclamada Claúdia Varejão (“Ama-San”), caracteriza-se pela particularidade de conseguir exprimir muito sentido num curto espaço de tempo. O filme, que pode ser inclusive alugado na Filmin portuguesa, trabalha com o arquivo familiar, brincando com a composição gráfica, justapondo imagens ao texto do filme “Vale Abraão”, de Manoel de Oliveira, permitindo, através desta sobreposição de elementos, a construção de uma nova cadeia de significado.

É-nos apresentada uma mulher, numa existência patriarcal, opressiva. A protagonista, Ema, passa a problematizar a sua existência. Todavia, mal nos situamos no seu mundo, depressa a curta termina e leva consigo o seu universo de sentido. Temos a ideia de que esta mulher é uma lutadora, uma não-conformista. Como afirma a sinopse mais extensa do filme: “Graças ao bovarismo [alusão a Madame Bovary] integrante em cada mulher, a força da desobediência queimará o caminho que outrora fora idealizado para si.”

Apesar de sugestivo, no final da breve visualização, a totalidade de sentido deste “O Ofício Da Ilusão” alude quem procura respostas inequívocas.

Classificação: 70/100




O TEU NOME É DE PAULO PATRÍCIO (24′, PORTUGAL) 

Curtas Vila do Conde 2021
“O Teu Nome É” ©Curtas Vila do Conde

O olhar sobre o caso de homicídio de Gisberta Salce Jr., transexual, hiv-positiva, sem-abrigo e toxicodependente que foi brutalmente torturada e violada durante vários dias seguida por um grupo de 14 adolescentes no Porto, Portugal, em 2006. Centrado em temas como a memória, o estatuto social, a violência, a discriminação e a identidade de género, “O Teu Nome É” explora o relato preocupante de dois dos adolescentes condenados, agora jovens, e as memórias das amigas transexuais de Gisberta, confrontando diferentes perspetivas e dimensões da condição humana.

“O Teu Nome É”, que teve a primeira exibição pública por ocasião do 29° Festival Internacional de Curtas-Metragens de Vila do Conde, a 18 de julho do ano passado, onde tivemos oportunidade de descobrir o filme – uma obra que merece ser descoberta mas de difícil digestão. Recorrendo à animação para recuperar os relatos das amigas de Gisberta e também para dar vida às palavras de dois dos jovens parcialmente responsáveis pelo seu brutal homicídio, esta curta-metragem coloca em diálogo um conjunto de contradições.

A obra diz-nos muito sobre miséria, sobre dependência, sobre a vida que levam os que se encontram à margem da sociedade. Gisberta foi torturada e violada durante vários dias antes de ser morta e o seu caso tornou-se célebre pelas piores razões. Neste documentário animado, dois dos seus agressores aceitam finalmente falar frente a uma câmara. Todavia, o seu relato, embora muito pouco gráfico, é preocupante e difícil de assimilar. Enviados para o reformatório depois deste fatídico evento ocorrido nos anos 90, os dois jovens parecem agora quase recusar responsabilidade no ato, recordando Gisberta com carinho e procurando uma desculpabilização ao responsabilizar um outro que, naturalmente, não é mencionado por nome. “Os outros rapazes”…

Como em “Corpos Políticos I” se constatava a existência de um antes e um depois de “Alcindo”, também o crime horrífico perpetuado contra Gisberta obrigou a cidade do povo a refletir sobre como são tratados os mais frágeis, como lidamos com toxico-dependentes, com os sem-abrigo e, claro, de que forma encaremos as pessoas trans. Gisberta foi tratada como menos, como menos que humana, como menos que animal. O que lhe aconteceu foi profundamente trágico e alguns dos perpetradores deste crime hediondo nunca foram responsabilizados. A revolta transparece nos testemunhos das amigas entrevistadas, na sua maioria outras mulheres trans. Todavia, estas parecem reconhecer uma pequena mudança nas atitudes, uma melhoria no trato, um maior respeito.

Será que o ser humano só coloca a mão na consciência quando confrontado com a tragédia? “O Teu Nome É” é a obra cinematográfica mais chocante desta “Sessão Corpos Políticos II”, mas tal só a torna mais necessária. Com uma animação simples mas belíssima, este filme transmite uma mensagem de tolerância e pinta uma quadro pleno e rico de um evento impensável e irrepetível.

Classificação: 85/100




TRACING UTOPIA DE CATARINA DE SOUSA E NICK TYSON (20′, PORTUGAL E ESTADOS UNIDOS) 

Portugal Film tracing utopia
©Portugal Film/ Festival Política

Uma viagem virtual pelos sonhos e desejos de um grupo de adolescentes queer de Nova Iorque, uma Geração Z que vê o mundo com olhos diferentes e esperança no futuro. Um filme que ilustra a importância e o poder de encontrar uma comunidade.

No Minecraft e recorrendo a videochamadas, uma comunidade de adolescentes da Geração Z – a Geração Q (queer), procura lidar com com o isolamento e manter a coesão social. Pelo meio, edificam um manifesto próprio, um manifesto queer rumo a um mundo mais inclusivo e tolerante. Rumo a um mundo onde a educação sexual seja um garante e onde a educação de género esteja também associada a esta educação, que deverá começar “tão cedo quanto possível”.

Os cativantes intervenientes que vemos nesta pequena experiência filmada  – Asher, Chase, Mars, Jay, Raphael, Julia e Lindsey – são enternecedores, sonhadores, utópicos como o nome indica, sempre a sonhar com um amanhã melhor e onde possam viver a sua queerness abertamente e sem medo. “Tracing Utopia” é tão elementar quanto simplesmente filmar um conjunto de adolescentes a comunicar via dispositivos móveis e a jogar Minecraft online.

Porém, os autores Catarina de Sousa e Nick Tyson captaram esta comunidade de adolescentes suburbanos de Nova Iorque de forma inovadora, criando um look futurista e reforçando este seu manifesto com uma grande dose de dinamismo adicional.Existem até efeitos visuais, criados por Catarina Aguiar e Nick Tyson, que conseguem assim fazer mais com muito pouco e elevar este simples tratado sobre aceitação, numa nota de otimismo em tempos de pandemia e que fica no baú da memória desta estranha época para a Humanidade. A montagem permite ainda justapor imagens de protesto, apelando ao lado mais cívico da Geração Z para quem se faz este filme e para quem se prepara o mundo.

Classificação: 78/100

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O Festival Política parte para Braga depois da sua passagem por Lisboa, onde esta ” Sessão Corpos Políticos II” repete no dia 6 de maio pelas 23h00. 

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