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Filhos de Ramsès, em análise

Clément Cogitore dá a conhecer a sua mais recente obra, “Filhos de Ramsès”, protagonizada por Karim Leklou.

Filhos de Ramses
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No original, a longa-metragem GOUTTE D’OR (estreada em Portugal sob a designação FILHOS DE RAMSÈS, 2022, realização de Clément Cogitore) localiza antecipadamente o espaço primordial onde decorre a acção, ou seja, o bairro de Paris onde podemos encontrar mais depressa uma população oriunda das regiões do Norte de África e subsarianas do que cidadãos nascidos em França. Também por ali residem e circulam homens e mulheres de outras nacionalidades, entre outros, indianos, malaios, chineses e paquistaneses. Mas não se pense que aquele espaço fica longe dos grandes circuitos que, dia após dia, chamam a Paris milhares de visitantes. Por exemplo, os muitos concorridos Montmartre e Pigalle ficam ao lado, e um passeio pelas suas ruas vale sobretudo pela descoberta da diversidade que a população imigrante (a recém-chegada e flutuante e a mais ou menos instalada e de segunda geração) empresta ao ambiente geral de La Goutte d’Or. Panorama multicultural que se mostra visível na oferta gastronómica, na organização de algumas iniciativas no campo cultural, na presença de lojas com vestuário não coincidente com os padrões normalizados para a moda europeia, entre outros motivos de maior ou menor interesse. Reverso desta medalha, a prostituição, a droga e outras actividades pouco recomendáveis. Já do ponto de vista arquitectónico, nada de especial a assinalar por comparação com outras áreas que os fluxos das agências de viagens costumam privilegiar na capital do hexágono. De facto, este bairro sofre de uma crónica má reputação, que o filme GOUTTE D’OR não contraria, antes pelo contrário, amplifica quando logo de início se vê um camião a despejar um monte de lixo num estaleiro de obras como se fosse a descarga intestinal da gigantesca cloaca de um monstro urbano capaz de ameaçar a integridade de quem por ali passasse na altura. E mais para a frente iremos descobrir como nesse monte de matéria suja e orgânica se pode esconder o corpo sem vida de um adolescente. Mas antes de lá chegarmos o realizador quis que ficássemos a saber quem era o protagonista do seu filme. Para isso irá fazer o retrato muito claro e sem filtros do perfeito vigarista, um mestre dos expedientes que dá pelo nome Ramsès (segura interpretação de Karim Leklou). Este pretenso vidente ganha a vida a enganar o próximo, extorquindo dinheiro a pessoas que em momentos de grande fragilidade emocional acreditam nas mais inverosímeis histórias da carochinha relacionadas com o além, na esperança de receberem sinais e mesmo mensagens dos familiares ou amigos entretanto falecidos. Podemos compreender a sua falta de rigor analítico quando se submetem sem grandes críticas a uma autêntica palhaçada de contornos místicos, diga-se, muito bem encenada por Ramsès.

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UM FARAÓ DE PACOTILHA NO REINO DA VIGARICE…!

Enfim, até podemos aceitar que algumas das vítimas de Ramsès e dos seus cúmplices, o caucasiano Michael (Malik Zidi) e a asiática Grace (Yilin Yang), vivem sob pressão numa metrópole que os segrega mesmo quando se pretende inclusiva. Porque muitas vezes a integração faz-se pela via do superficial e do folclore étnico, por aquilo que surge diferente aos olhos de certas mentes liberais que, uma vez satisfeita a curiosidade pelo exotismo do outro, no fim do dia regressam aos bairros mais condizentes com o seu estatuto e condição socioeconómica. Não serve de atenuante, mas podemos conceder que uma boa percentagem das pessoas oriundas dos quatro cantos do mundo, deslocadas da sua cultura natal, sentindo na pele o racismo e no quotidiano a ausência de referências culturais sólidas que pudessem funcionar como alternativas ao seu modo de ser e estar no novo contexto geográfico, sentem no campo espiritual dificuldade em abandonar certas práticas proto-religiosas disseminadas em meandros mais ou menos marginais dos seus países de origem. Rituais que demasiadas vezes sobrevalorizam as mezinhas e o sobrenatural. Esse facto ajuda a que o modelo de negócio levado a cabo por Ramsès, leia-se, a persistente actividade criminosa de ludibriar o próximo, seja uma próspera fonte de rendimento que alimenta mais do que uma família no seio de uma estrutura mafiosa que, aliás, se irá confrontar com outras de igual cariz e que, sem papas na língua, chegam ao ponto de assumir que não estão dispostas a partilhar as ruas de Barbès, onde se situa o apartamento e consultório de Ramsès, nem sequer a generalidade do bairro La Goutte d’Or, com aquele que acusam de querer abocanhar a maior fatia dos lucros gerados pelos diferentes estratagemas manhosos que por ali circulam. Nem vale a Ramsès a memória do seu pai de quem herdou, digamos assim, a profissão, personalidade aparentemente respeitada pelos fora-da-lei. Não obstante a sua notória ausência, a partir de certa altura o dito patriarca será contactado pelo filho, e a sua influência renasce acabando por desempenhar um papel com algum peso no desenvolvimento dos posteriores conflitos ficcionais, numa fase em que a “dinastia” herdada por Ramsès começava a desmoronar-se. Na verdade, o poder de Ramsès vai ser posto em causa pela intervenção algo inesperada de um grupo de rapazes magrebinos com larga experiência nos caminhos da delinquência juvenil. Ramsès vai ser pressionado para demonstrar os seus dotes de vidente quando o gang juvenil o desafia a encontrar um membro desaparecido, ou seja, o rapaz que referimos ao início.

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Filhos de Ramses
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Ramsès, no meio de numerosos dilemas, acossado por uns e cada vez menos apoiado pelos que antes pareciam estar a seu lado, no decorrer de uma das suas sessões de vigarice organizada para uma plateia onde alguns se fazem passar por clientes para melhor enganar o pagode, pressente, e nós com ele por causa de um curioso efeito na banda sonora, que foi bafejado por uma premonição sobre onde encontrar o jovem ladrão. De facto, pouco antes víramos como ele havia roubado o colar e amuleto que Ramsès usava para se proteger. Depois deste presságio (e o mistério permanecerá até ao fim sobre a consistência verdadeira ou falsa do mesmo, se bem que a realização pareça gostar da ideia de que essa visão foi de algum modo a chave para um enigma que prevalece sobre o futuro do que a seguir vai ou não acontecer), Ramsès encontra o cadáver no meio do lixo, e os companheiros de rua rendem-se ao que julgam ser um autêntico dom de clarividência. Está assim restaurado o poder e as regras do jogo defendidas pelo rei dos embustes com nome de Faraó, mas os improváveis “filhos” de Ramsès acabam por sair por cima quando lhe atribuem o cognome de Goutte d’Or e lhe entregam um fio onde está pendurada a gota de ouro, a goutte d’or de uma passada e fátua protecção.

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Filhos de Ramses
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Para dar corpo a esta ficção, Clément Cogitore apoia-se na La Goutte d’Or definição nua e crua das atmosferas e localizações do bairro que dá nome ao filme, num elenco credível e compatível com a multiculturalidade que ali se vive, assim como num conjunto de sequências estruturadas para nos fazer o retrato, sem rodriguinhos politicamente correctos, dos motivos que levam o protagonista e alguns secundários, a larga maioria, a enveredar pelo crime organizado. Fá-lo sem excessos de subjectividade ou demonstrações racionais que pudessem limitar a percepção das responsabilidades que podemos atribuir ao conjunto de personagens de um submundo parisiense, maioritariamente desenraizado dos valores gauleses ou europeus, aliás, situação comum a outras comunidades que não habitam apenas o perímetro existencial de La Goutte d’Or . Na Direcção de Fotografia de Sylvain Verdet, sobretudo nos interiores e exteriores nocturnos, sentimos as camadas de negrume e insalubridade que se entranham nas ruas e vielas de costas voltadas para a lampejante luminosidade das grandes avenidas daquela a que ainda chamam, precisamente, a cidade luz. Na montagem encontramos o nome de Isabelle Manquillet, cuja preocupação foi retirar as gorduras desnecessárias ao processo narrativo de modo a contar-nos a história do rude confronto entre marginais. Um combate pela hegemonia entre iguais do mesmo ofício que ali se desenrola como se fosse a arte de sobreviver por entre as areias movediças de uma sociedade de classes onde as armadilhas interiores e as montadas a partir do exterior se foram acumulando ao longo de anos e anos de segregação.

Filhos de Ramsès, em análise
Filhos de Ramses

Movie title: Goutte d’Or

Director(s): Clément Cogitore

Actor(s): Karim Leklou, Malik Zidi, Elsa Wolliaston, Jawad Outouia

Genre: Drama, 2022, 98min

  • João Garção Borges - 65
  • José Vieira Mendes - 85
75

Conclusão:

PRÓS: Prestação global do elenco. Especial destaque para a sempre nervosa e acossada personagem de Ramsès, interpretada por Karim Leklou. Um argumento estruturado para acentuar o desequilíbrio existencial de um bairro multicultural, La Goutte d’Or, onde a marginalidade criminosa actua sobre o colectivo das relações humanas, mesmo as mais improváveis, mantendo a atmosfera pesada e bafienta que o subdesenvolvimento de certas áreas urbanas não parece contrariar, antes pelo contrário.

CONTRA: Nada.

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