TIFF ’24 | O cinema lusófono marcou presença em Toronto
Entre coproduções internacionais e a glória brasileira de “Ainda Estou Aqui,” o TIFF teve presença do cinema de expressão lusófona. Muito se ouviu falar português em Toronto.
Uma das grandes histórias a sair do Festival de Toronto em 2024 foram as pressões políticas que convergiram no evento. Já se referiram, em artigos anteriores, a confrontação entre protestos em prol das ações do governo Israelita enquanto outros manifestantes se declaravam na defesa do povo Palestiniano a meio de um genocídio sem precedentes no século XXI. Dito isso, também se falaram dos direitos dos animais, com a PETA em acesa discussão, e os conflitos na Ucrânia vieram ao barulho. Estes últimos levaram à repressão de um título programado e uma intervenção da câmara municipal da cidade canadiana.
Na sua busca por imparcialidade, os dirigentes do TIFF abrem as portas a uma multiplicidade de expressões artísticas e políticas. O que interessa é a discussão e o debate, o confronto controlado. Por isso mesmo, tanto incluíram trabalhos de ucranianos como de russos na sua programação. Entre esses segundos, “Russians at War” de Anastasia Trofimova recebeu especial atenção mediática, sendo o retrato de soldados do lado do Kremlin que, em muitos casos, nem sabem pelo que lutam ou estão cientes das forças globais para que as suas vidas foram consignadas enquanto carne para canhão.
O passado da realizadora enquanto trabalhadora da máquina propagandista de Putin foi muito criticado, pondo-se em questão a sua legitimidade enquanto artista. Para muitos, “Russians at War” seria só mais uma tentativa de simpatizar com um inimigo. As pressões foram suficientes para que os governos locais de Toronto impusessem o seu poder sobre o Festival, levando ao cancelamento de várias projeções. Críticos ultrajados vieram defender a fita, indo contra a narrativa que o definia enquanto propaganda sem valor. No fim, só quem ficou em Toronto além das datas do festival é que pode ver com os seus próprios olhos, tendo o TIFF remarcado as suas projeções.
Enfim, toda a arte é política e é saudável para uma instituição tão poderosa como este festival estar no meio do diálogo. Isso é especialmente saliente numa conjetura entre arte e interesses económicas que leva o TIFF a fazer celebrações abertas ao direito dos povos indígenas do Canadá ao mesmo tempo que recebe patrocínios de algumas companhias cujas ações têm vindo a erodir os direitos da população nativa. Muitos artistas usaram o seu tempo em palco para trazer a política ao TIFF e alguns até fizeram dos seus filmes um argumento poderoso. Um exemplo disso mesmo será aquela fita que marca o regresso de Walter Salles ao grande ecrã – vencedor de um prémio na Bienal de Veneza!
“Ainda Estou Aqui” luta contra o esquecimento.
Baseado no livro homónimo de Marcelo Rubens Paiva, “Ainda Estou Aqui” relata a história verídica do desaparecimento de Rubens Paiva durante o auge da ditadura militar no Brasil e o modo como a sua família viveu as décadas seguintes, desde a autocracia até a uma nova era democrática. Longe de centrar a experiência de Rubens ou seu filho – o autor cujo trabalho serviu de base ao filme – Walter Salles focou-se na experiência de Eunice Paiva, tornando a matriarca feita ativista numa âncora para a narrativa épica. Através dela, o cineasta considera a História de uma família e de uma nação, articulando um autêntico manifesto contra o crime do esquecimento.
Apesar de convencional na sua forma, “Ainda Estou Aqui” envereda-se por caminhos e argumentos que muito cinema tem medo de abordar. Faz-se o apelo a uma História viva, sempre lembrada e revivida para que os horrores do passado não se repitam, para que a nostalgia não se torne veneno e que o fascismo jamais volte ao poder. Não há papas na língua nem subterfúgios no drama histórico que Salles propõe, somente a franqueza e a urgência do cinema feito para um mundo em crise. Mesmo assim, louva-se a elegância no engenho e o fulgor emocional da obra, daquelas que até as pedras da calçada faz chorar.
E no meio de todo o triunfo estão mãe e filha, Fernanda Torres e Fernanda Montenegro. Ambas interpretam Eunice Paiva em diferentes fases da vida e oferecem-nos uma das grandes caracterizações do cinema brasileiro recente. Elas são titânicas e, no caso de Montenegro, conseguem sê-lo só com o olhar.
Guiraudie questiona o significado de misericórdia.
De romancista a realizador, o percurso artístico de Alain Guiraudie é um fascínio, especialmente quando comparamos a dimensão desmesurada do trabalho literário com a brevidade sucinta dos seus filmes. Sente-se grande disciplina quando este autor está atrás da câmara, quer seja em composições elegantes e deliberadamente limitadas ou na desafetação absoluta dos atores. Dito isso, a economia do contador de histórias não se reflete num texto seco, nem tem que seguir os preceitos da razão sem sentimento. Pelo contrário, há uma grande compaixão nas loucuras narrativas que Guiraudie deslinda em cinema. No caso de “Miséricorde,” uma coprodução com Portugal, o amor do cineasta pelas suas personagens faz-nos questionar o próprio significado da mercê.
Na localidade de Saint-Martial, Jérémie aparece para prestar respeito depois da morte do seu antigo patrão, o padeiro lá do sítio. O regresso desperta desejos e muita tentação, e culmina em violência, quando Jérémie mata Vincent, filho do defunto e seu antigo amigo. Perante esta premissa, outros cineastas fariam o jogo do suspense, mas Guiraudie prefere uma abordagem alternativa, mais próxima de uma comédia de costumes onde a estranheza no comportamento das personagens leva o espetador a dissecar as razões que levam a esse mesmo estranhamento. Afinal, por que razão é que a misericórdia nos parece tão despropositada? O que é que isso diz sobre o contrato social e a leveza com que idolatramos a ideia de punição?
“Vermiglio” mereceu a prata em Veneza.
Quando chegou a altura de repartir os prémios na Bienal de Veneza, muitos críticos e ditos peritos estavam de olhos postos nos títulos mais chamativos da seleção, sempre com o brilho de Hollywood a cegar a gente. Contudo, o júri presidido por Isabelle Huppert fez algumas escolhas que fugiram à expetativa, incluindo na atribuição do segundo maior prémio do festival. O Leão de Prata, grande prémio do júri, foi para “Vermiglio,” longa-metragem de Maura Delpero que alguns pensavam ir ser ignorada perante espetáculos mais chamativos. Ainda bem que esse fado triste não se concretizou porque, afinal, este drama histórico é um dos melhores filmes do ano.
Dividido em quadros sazonais, “Vermiglio” considera a vida numa aldeia montanhosa na Itália do pós-guerra, retratando o quotidiano pacato e as crispações familiares no domicílio do professor local, homem mais erudito da comunidade. Com fotografia esplendorosa e um olhar quase antropológico, Delpero faz recordar a glória de Ermanno Olmi e outros retratos da ruralidade italiana. É muito belo, certamente, mas também se sente candura e uma honestidade tão pronta a admitir as facetas mais bucólicas do dia-a-dia como seu lado mais doloroso. De facto, há grande franqueza na observação de Delpero e ainda maior disciplina.
Note-se, por exemplo, a calma absoluta da câmara, sempre serena em composição estática, até um momento fulcral, uma despedida que irá alterar o destino das personagens. Aí sim, move-se a imagem e é como um murro no estômago. Não sabemos o que vai acontecer, mas sentimos a sua magnitude no âmago. Assim se faz grande cinema!
O legado de Ken Loach perdura em Português.
“O Pub de Old Oak,” estreado em competição na Cannes do ano passado e chegado aos cinemas portugueses há uns meses, será o último filme realizado por Ken Loach. Essa autoridade do cinema realista social britânico está de despedida, mas só da cadeira de realizador. Acontece que, em 2002, o cineasta fundou a Sixteen Films enquanto companhia produtora. Até agora, a empresa havia se dedicado quase exclusivamente aos filmes de Loach, mas agora alarga os seus horizontes e está a apoiar cineastas em ascensão. É esse o caso de Laura Carreira cujo “On Falling,” conta com o apoio de Loach enquanto produtor executivo.
O filme é um lacerante estudo sobre solidão no mundo moderno, incidindo o seu olhar sobre o dia-a-dia penoso de Aurora, uma imigrante portuguesa no Reino Unido que ganha a vida num grande armazém para empresas de compras online. Através da câmara de carreira, descobrimos um estilo de vida onde o lavoro tanto consome que não deixa espaço para mais nada, levando à sede por companhia, à fome dolorosa que torna até uma visita ao supermercado num grande evento. Franco no que se refere às condições económicas das suas personagens, “On Falling” é também um filme generoso, a transbordar de empatia.
Com pessoas como Carreira atrás das câmaras, o legado de Ken Loach fica assegurado e o cinema ganha uma nova voz de relevância. Além disso, também se ganha um par de grandes prestações com origem portuguesa. Num papel secundário, Inês Vaz continua a afirmar-se uma atriz capaz de elevar qualquer projeto em que entra, enquanto Joana Santos entrega-se ao papel principal e dele emerge com uma caracterização comovente. Só a coreografia mecânica do trabalho de armazém é interessante de se ver, mas Santos é ainda melhor quando a convicção da mulher fraqueja e ela se confronta com a realidade que, além de uma engrenagem na máquina do capital, nem mesmo a própria Aurora sabe quem é.
Nicole Kidman na busca do Óscar nº 2.
No mesmo dia em que Almodóvar ganhou o Leão de Ouro e Delpero levou a Prata em Veneza, também Nicole Kidman foi galardoada. Ela ganhou a taça Volpi pelo seu trabalho em “Babygirl” da realizadora holandesa Halina Reijn, não estando presente para receber o prémio porque a sua mãe morreu no mesmo dia. Sem rodeios ou mais demoras, fica aqui uma afirmação forte: este é um dos melhores trabalhos na carreira da estrela. De facto, não a achamos tão extraordinária desde o “Birth” de 2004. Trata-se de uma visão cândida da sexualidade feminina, a fome por humilhação numa posição de poder e as permutações dessa mesma autoridade através das várias dimensões da vida – pública, privada, profissional, doméstica, íntima. Raramente o cinema mainstream aborda o sexo e a natureza do fétiche com tanta complexidade, mas “Babygirl” está aqui para quebrar as regras e para surpreender.
Num mundo justo, Nicole Kidman estaria já na frente da corrida para o Óscar de Melhor Atriz. Decerto seria mais merecido do que o prémio da Academia que ela ganhou em 2003 por “As Horas.” Infelizmente, o tema principal da fita poderá ser um obstáculo para tal aclamação. Mas, enfim, nunca se sabe e a esperança é a última a morrer.
Canta-se o fim do mundo.
Até agora, Joshua Oppenheimer era maioritariamente conhecido pelos seus documentários, o díptico de “O Ato de Matar” e “O Olhar do Silêncio” sobre a violência anticomunista na Indonésia. Agora, ele faz o salto para o cinema narrativo, mas os interesses são os mesmos. Admitimos que, à primeira vista, essa afirmação pode parecer um tanto ou quanto estapafúrdica. Afinal, “The End” é uma ficção-científica sobre o fim do mundo, passado num bunker luxuoso escavado no meio de uma mina de sal, onde o que resta de uma das famílias mais poderosas e ricas de sempre vive os seus últimos dias. É colorido e teatral e um musical, ainda para mais.
É também uma continuidade na pesquisa de Oppenheimer sobre a natureza do mal e o modo como o ser humano mente a si mesmo para tornar a vida mais suportável. Neste caso, o artifício do género é mais uma fuga, assim como todo o mecanismo audiovisual que puxa além da realidade e na direção do sonho. Há algo febril neste cinema da evasão, como se Oppenheimer tivesse esticado um dos episódios kitsch de “O Ato de Matar” e o tivesse esticado por mais de duas horas. No fim, “The End” será daqueles projetos ambiciosos cujas ideias são mais valiosas que a experiência da narrativa. Muitos espetadores ficaram desapontados, mas nós daremos sempre mais valor ao caos cheio de ideias do que a mediocridade cautelosa, seca, desvestida de qualquer ambição. Além disso, Tilda Swinton e Moses Ingram estão impecáveis nos papéis mais difíceis do pesadelo.
As maravilhas da secção Wavelenghts.
Todos os anos, uma secção do TIFF se eleva acima de todas as outras. Será o programa Wavelenghths, onde se privilegia cinema de cariz experimental e arriscado, propostas audazes que desafiam espetadores e cineastas, testando os limites da forma. Este ano não é exceção e alguns dos melhores filmes do festival foram programados no âmbito desta seleção. Já aqui se fez o elogio ao “Grand Tour” de Miguel Gomes, mas há muito mais além dessa glória lusitana. “Pepe” de Nelson Carlo de Los Santos Arias, por exemplo, merece aplausos pela loucura total. Trata-se de um retrato pós-morte do hipopótamo de estimação de Pablo Escobar, traçando as origens dos seus pais e o momento da morte. Faz-se apelo à técnica experimental e, pelo meio, dá-se forma a uma tese assombrosa sobre o comércio esclavagista transatlântico.
Numa esfera muito politizada, também tivemos os dois últimos capítulos na saga “Juventude” de Wang Bing. Com quase dez horas, o tríptico faz uma reportagem sobre as condições de trabalho na indústria têxtil, focando-se na falta de esperança e de futuro das gerações mais novas na China atual. “Exergue – On Documenta 14” é ainda mais comprido, com catorze horas de duração, todas dedicadas à preparação da exposição de arte moderna documenta, entre Atenas e Kassel. Este monumental esforço realça as muitas interseções de interesses políticos e comerciais no mundo das artes plásticas, encontrando humor e até alguma hipocrisia no discurso dos seus putativos protagonistas.
Em “Lázaro at Night,” o mexicano Nicolás Pereda mostrou-nos novas vertentes do desejo, enquanto o hipnótico “Perfumed with Mint” anuncia Muhammad Hamdy como o Pedro Costa do Médio Oriente. Essa fita sobre traumas insuperáveis foi dos trabalhos mais visualmente memoráveis de todo o festival, tudo vegetação inusitada a florescer nas sombras profundas do cinema digital. “Viet and Nam” de Minh Quý Trương também trabalhou muito a sombra, essa escuridão nas minas de carvão do Sudeste Asiático, que tanto pode ser prisão como paraíso. A sombra da História da nação abate-se sobre duas personagens queer, enquanto a tentativa de fugir ao fado nacional os leva desde os confins da terra escavada até à perdição em alto mar. É daqueles filmes que nos arrebatam e, mais do que fazer chorar, levam-nos ao ponto da transcendência.
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Já só falta mais um capítulo neste diário do TIFF 2024. Há que discutir os prémios do festival, mais umas quantas grandes estreias e fazer o ponto de situação sobre toda esta odisseia cinematográfica.