"High & Low - John Galliano" | © Condé Nast Entertainment

High & Low – John Galliano, a Crítica | O rei da moda e das controvérsias no Doclisboa

Da fama à infâmia e o reverso também, a história de John Galliano é recontada em “High & Low,” um novo documentário de Kevin Macdonald que marcou presença na secção Heart Beat do Doclisboa.

Há maneira de separar a arte do artista? Nos últimos anos, essa questão tem vindo a dominar muito do discurso em torno de transgressões sexuais na indústria do entretenimento. De facto, transcende esse contexto e ofensa. Além do mais, até a nível institucional se tem vindo a levantar o problema, com o sistema em reflexão autocrítica ou quiçá uma mera procura pela polémica. Basta pensar no recente trabalho de Hannah Gadsby enquanto curadora de uma exposição sobre Pablo Picasso para entendermos quanto estas ideias se enraizaram na cultura e o modo como o público se relaciona com a arte.

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Mas devemos separar a arte do artista? Quando tanto do trabalho artístico parte da expressão pessoal, uma despersonalização da mesma parece irresponsável. Em artes cujo objeto final devém da colaboração entre muitos indivíduos, é mais fácil dizer que os crimes de uma pessoa não devem invalidar o esforço das outras. Faz-se esse argumento em cinema e teatro, mas pode-se aplicar a muito mais. Dito isso, não há resposta fácil a nenhuma destas incógnitas e presumir a certeza é um ato dúbio. Por isso mesmo, devemos admirar um projeto que reconhece a falta de resposta e se problematiza a si mesmo. Um projeto como “High & Low – John Galliano.”

Um retrato do artista em crise mediática.

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© Condé Nast Entertainment

O filme de Kevin Macdonald constrói-se com base e em torno de uma entrevista conduzida pelo realizador e seu tópico de interesse numa propriedade às margens do Mediterrâneo. É um ambiente luxuoso, mas a câmara raramente se perde na beleza cénica. Pelo contrário, fica-se pelo retrato sem glamour ou pudor do designer titular. John Galliano passa muito tempo a mirar a objetiva, com ar cansado, talvez um pouco derrotado, em claro pedido de misericórdia para com o seu mau comportamento. Mas, antes de ponderar a raison d’être do documentário, há que prestar homenagem e vassalagem às convenções deste tipo de perfil biográfico.

Com muitas imagens de arquivo e entrevistas com os amigos e colaboradores habituais do estilista, “High & Low – John Galliano” começa por detalhar as origens do artista na sua infância. Testemunhamos o nascer de um interesse em moda, na História do vestuário e o modo como estas ideias se desenvolvem e florescem em ambiente académico. O primeiro clímax da biografia acontece no final desse percurso, quando John Galliano faz a sua estreia nas passerelles com uma coleção-tese, “Les Incroyables.” O projeto terá nascido da obsessão com o “Napoleão” de Abel Gance, épico do cinema mudo cujas passagens dão estrutura temática ao documentário.


Em certa medida, a história de um rei da moda que atingiu a glória de um imperador antes da queda em desgraça e subsequente regresso ao poder reflete o arco de Galliano. Não é uma narrativa perfeita, mas assenta bem e quase pressagia o fim da misericórdia institucional para com o artista. Certamente, poucas descrições refletem a ascensão de Galliano ao longo dos anos 90 e princípio do novo milénio como “napoleónica.” Mas também se fazem referências aos “Sapatos Vermelhos” de Powell e Pressburger, sua história de mecenato sinistro e tragédia do artista. Será Galliano a bailarina que dança até morrer em sapatos enfeitiçados ou o sapateiro que a condena a esse fado?

Longe de tentar minimizar o génio do protagonista, Macdonald faz-lhe a festa merecida e deixa-se levar pela majestade do seu trabalho. Não há como negar o esplendor das coleções que Galliano fez para a Givenchy e seu império de beleza sem limites na Dior. A outra face desta moeda é que, quanto mais alto é o píncaro e a glória, maior é a queda. Os indícios de algo sinistro notam-se rapidamente, com a arrogância do Imperador do Estilo a manifestar-se tão fortemente como sua supremacia e celebridade. E nem se fala de Steven Robinson, maior colaborador de John Galliano, que o documentário não sabe se deverá retratar como vítima ou vilão.

Propaganda ou crítica, sonho ou pesadelo.

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© Condé Nast Entertainment

Algo é certo, os entrevistados querem por culpa no cartório de Robinson que, tendo morrido tragicamente, não tem modo de se defender. Dito isso, não há trauma que justifique as ações de Galliano, seu racismo e antissemitismo, seu ódio gritado para as câmaras. Depois de vídeos circularem a mostrar esse lado do artista, caiu o Carmo e a Trindade e lá ele perdeu tudo o que tinha conseguido. Fez-se da redenção uma missão, com o auxílio de figuras públicas da comunidade judaica e outras vozes em defesa. Demorou, mas um novo contrato com a Maison Margiela fez renascer John Galliano e “High & Low” é a última peça nessa história.

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Ou, pelo menos, essa será a intenção dos produtores, incluindo a Condé Nast cujo papel no regresso de Galliano à ribalta não pode ser subestimado. Só que Macdonald concebeu o seu documentário de modo certeiro, subvertendo o propósito da peça enquanto roldana na máquina mediática a favor do designer. Não se invalida o mérito de Galliano, mas há uma noção bem forte de remorso artificial, projetado sem estribeiras para reganhar o amor das massas. Isso deixa o filme a sentir-se meio incerto, um trabalho com os seus balanços tonais fora de ordem e conclusões meio contraditórias. No entanto, essa mesma incerteza demonstra a maturidade do trabalho e faz de “High & Low – John Galliano” um trabalho de cinema valioso, mesmo que muito maculado.

 

Doclisboa '24 | High & Low - John Galliano, a Crítica
high low john galliano critica doclisboa

Movie title: High & Low - John Galliano

Date published: 28 de October de 2024

Country: EUA, Reino Unido, França

Duration: 116 min.

Director(s): Kevin Macdonald

Genre: Documentário, 2023

  • Cláudio Alves - 65
65

CONCLUSÃO:

Kevin Macdonald faz tudo para subverter os ditames corporativos que definem a existência de “High & Low – John Galliano.” Contudo, os seus esforços tiram algum brilho à celebração da moda e não conseguem suplantar o projeto de relações públicas a que a fita pertence. Dito isso, há muito mérito no trabalho final, desde as entrevistas com a figura titular até ao encontro do designer com as suas criações de outros tempos. Há um teor napoleónico em tudo isto, uma tragédia do poder.

O MELHOR: As ligações feitas entre o cinema de outrora e a vida tornada espetáculo de John Galliano. Nesse sentido, sabemos que o designer aprovaria a teatralidade que a montagem traz à sua vida.

O PIOR: O modo como Steven Robinson é retratado deixa um sabor amargo na língua e parece-nos especialmente notório num trabalho tão investido na ideia de segundas oportunidades, mercê e uma busca pelo entendimento.

CA

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