13º IndieLisboa | Treblinka, em análise

Em Treblinka, Sérgio Tréfaut leva as suas audiências numa viagem pela memória do Holocausto num comboio fantasma, habitado por espectros indefinidos e vítimas de crimes meio esquecidos ou tornados perigoso abstrato.

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Desde os primeiros anos que se seguiram à vitória dos Aliados na 2ª Guerra Mundial, o Holocausto tem vindo a afirmar-se como um dos mais persistentes temas históricos nos anais do cinema internacional. Parte desta constante recorrência é, sem dúvida, o fruto do trauma que tal calamidade deixou na história da humanidade, mas também temos de ser mais frios na examinação de tal popularização de filmes com esta temática. De certo modo, Hollywood e não só, tornaram esta catástrofe humana numa comodidade económica e artística, banalizando esta cáustica realidade e tornando-a em algo abstrato, removido da nossa realidade e coberto pela inescrutável pátina do passado.

Mesmo o cinema documental é de culpar por esta banalização cinematográfica de algo que nunca deveria ser banal, e raros são os filmes que se atrevem a apresentar o Holocausto fora das convenções representativas que se foram padronizando e calcificando ao longo da história da sétima arte. O ano passado, O Filho de Saul, um filme ficcional sobre a experiência de um sonderkommando, teve a audácia de se propor a abordar este tema de modo visceral e violentamente sensorial, acabando por ganhar uma série de merecidos galardões na passada Awards Season. Um desses áureos prémios foi o Globo de Ouro, ocasião em que seu realizador, aquando do discurso de aceitação da honra para Melhor Filme Estrangeiro, lembrou que o Holocausto nunca se deveria tornar nesse abstrato em que o cinema inadvertidamente o está a condenar. Se por um lado as palavras deste autor húngaro e sua abordagem estilística são de admirável valor, existem muitas outras maneiras de fugir aos confins nebulosos do abstrato e do esquecimento.

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Exemplo disso mesmo é Treblinka, a nova longa-metragem documental de Sérgio Tréfaut que teve a sua estreia internacional no presente IndieLisboa. Nesta obra, a palavra escrita e lida é o veículo de exploração principal, revelando, a partir de relatos de reais sobreviventes dos campos de extermínios nazis, algumas horrendas histórias de abjeta desumanidade, e, obliquamente, traçando um retrato de como tais traumas ainda assombram o mundo atual. O Holocausto e seus horrores são como uma cicatriz, uma memória aguçada que esfaqueou a humanidade e cujas feridas ainda sangram, mesmo que muitos se estejam a esquecer da existência dessas mesmas feridas, ou tenham optado por ignorá-las.

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Como já apontámos, o relato textual é o principal mecanismo de comunicação de Treblinka, mas em termos visuais o filme está unicamente confinado a um espaço, um não-lugar transicional, um comboio. Mais especificamente, é um comboio do Leste da Europa, entre a Polónia, a Ucrânia e a Rússia. Esta localização devém dos comboios que levaram inúmeros judeus para os seus cruéis fins nos campos de concentração e morte na Polónia, mas também é uma tradução que Tréfaut fez de uma citação de Marceline Loridan-Ivens, uma sobrevivente do Holocausto, que disse que tinha a pavor comboios, sendo que, para ela, todos os comboios, independentemente do seu destino, iam dar a Auschwitz, a Dachau, a Treblinka. Por essa mesma razão, neste exercício de lembrança de alguns dos mais atrozes crimes contra a humanidade dos quais ainda existem testemunhos, as audiências encontram-se confinados ao espaço espectral de um comboio que mais que um mecanismo de transporte, se torna um cenário fora do tempo, um espaço de concentração humana, um fantasma e um veículo da memória.

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Nos seus confins, apenas vislumbramos uma presença humana nítida, a atriz portuguesa Isabel Ruth, enquanto outras visões vão passeando pelo espaço em diferentes níveis de indefinição. Essas aparições são corpos nus, como que imagens virtuais, meio esquecidas, que remetem para os corpos desnudos das vítimas das câmaras de gás. Na sua apresentação há uma peculiar beleza, mas também uma irrealidade desconcertante que é apenas exacerbada pela distorção da imagem, que salienta essa condição destes corpos como algo que não pertence ao nosso presente, mas é mais uma memória personificada em fragmentada visão de uma humanidade vitimada pelo mal. A única outra pessoa que vemos no comboio é também bastante nebulosa, a do principal narrador do filme, apenas vislumbrado em reflexos nas janelas do comboio, como se tratasse duma memória do próprio objeto, e não uma pessoa física no seu interior. Esse narrador é como que uma visão estilizada e ficcionada de Chil Rajchman, cuja documentação do seu aprisionamento em Treblinka é base textual para quase todo o filme.

Voltando assim ao caso do texto e sua predominância sobre todo este edifício cinematográfico, o uso da palavra como exclusivo indicador do passado do Holocausto não é novidade, sendo que, com o seu uso dessas imagens do comboio e dos corpos desnudos, Tréfaut até se mostra ainda um pouco dependente da ilustração, mesmo que bastante opaca na sua intencionalidade. Olhe-se, por exemplo, para a grande opus de Claude Lanzman, Shoah, aquele que é o indiscutível píncaro de qualquer exploração cinematográfica do Holocausto em cinema. Também nesse filme, o realizador se recusou a ilustrar as palavras dos sobreviventes, sendo que aí o mecanismo não era a leitura mas sim a entrevista. A genialidade de tal ausência de imagem devém do modo como retira o conforto à audiência.

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Quando somos apresentados com uma mera descrição falada dos horrores, somos forçados a imaginar na nossa mente a realidade que é aí proferida e conjurada. Sendo assim, a relação entre a informação e o espetador é uma de ativa participação da parte do observador presente, algo que raramente acontece com recriações ilustrativas, em que é oferecido ao espetador uma interpretação pré-fabricada. Esta abordagem, que se poderia chamar de minimalista, retira a perniciosa pátina do passado a tais relatos, forçando o observador a se tornar ativo participante na conjuração destas realidades e, assim o passado ganha uma qualidade presente que não se encontra de outro modo.

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Essa condição imediata na transmissão e assimilação de informação é um dos maiores problemas de cinema sobre o Holocausto e a solução apresentada, ou a abordagem presenteada por Tréfaut com Treblinka é uma curiosidade imensa e de grande valor. Poder-se-ia assumir que com o seu quase lirismo visual e ênfase na dramatização vocal de textos de autores falecidos, o realizador português estivesse a contribuir para a criação desse temeroso abstrato que acima referimos, mas não. Ao construir em simultâneo um abstrato do Holocausto e um documento que força a audiência a participar na criação de imagens mentais para complementar a simplicidade do filme diante delas, Tréfaut criou um híbrido entre documentário e drama que é mais fantasma que filme, mais um espectro em busca de alma para possuir com as suas ideias que um usual objeto para ser passivamente apreciado. E é necessário que haja essa participação coletiva na lembrança e na avaliação e examinação crítica dos crimes do passado pois, tal como é sugerido pela contemporaneidade das imagens, estas catástrofes humanas são quase cíclicas. Hoje em dia, horrores quase genocidas estão a ocorrer enquanto leem este texto, e não podemos deixar que o exemplo do passado seja oculto pelas ações de seus criminosos que tentaram queimar e reduzir a cinzas os indícios do seu extermínio. Há que lembrar, que interiorizar e que pensar sobre o Holocausto e não o deixar cair no oblívio ou nas profundezas da indiferença.

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O MELHOR: O modo como confronta a audiência com o seu minimalismo e carga textual.

O PIOR: O uso de russo para os diálogos, cujas origens literárias foram registadas em iídiche é uma escolha tão inexplicável como frustrante.


 

Título Original: Treblinka
Realizador:  Sérgio Tréfaut
Elenco: Isabel Ruth, Kiril Kashlikov
Documentário | 2016 | 61 min

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