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LEFFEST ’23 | Priscilla, a Crítica

Depois da estreia no Festival de Veneza, o novo filme de Sofia Coppola chega ao LEFFEST. “Priscilla” retrata a vida da personagem titular, focando-se na sua relação com Elvis Presley.

O ano passado, o “Elvis” de Baz Luhrmann foi um estrondoso sucesso, celebrando o Rei do Rock ‘n’ Roll em jeito de festa atravessada pelo gesto elegíaco. Além do estilo maximalista, a obra assenta nos padrões convencionais da cine-biografia, querendo fazer as honras da personagem sem questionar a mitologia associada. Não admira que a corporação que controla o património do cantor tenha apoiado a produção, concedendo os direitos das músicas e muito mais. O mesmo não aconteceu com “Priscilla” de Sofia Coppola, onde a realizadora se propõe a contar a história da mulher escondida na sombra dessa estrela.

Baseando-se na autobiografia “Elvis & Me”, Coppola vai contra a convenção cinematográfica e ainda rejeita o comercialismo do engenho. Tanto assim foi que o Património de Elvis lhe negou acesso às músicas e tenha, de forma absoluta, renegado a produção. Vendo a fita, dá para perceber a razão. Afinal, longe de se ficar pelo conto-de-fadas, a cineasta disseca a narrativa dos media e vê além das lantejoulas, procurando a escuridão e o transtorno, o terror inerente à lenda, as realidades domésticas que as relações públicas escondem. Não que “Priscilla” transborde moralismo. Muito pelo contrário.

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Mais do que qualquer filme de Coppola, esta última façanha recorda a austeridade de “Somewhere,” suas ambivalências sobre fama e o afeto sob o holofote. Há muita dessa frieza também, o eco de alguém preso dentro de uma caixa de joias e a asfixia da laca, do beijo, do amor tóxico. Acima de tudo, há uma abordagem peculiar ao estudo de personagem, definindo a figura central através da ausência e da capitulação. Em certa medida, é como esboçar o retrato de alguém, mas as únicas pinceladas incidem no espaço em volta, deixando um vácuo no meio. A caracterização negativa vive daquilo que não nos é dado, o gesto esquivo e a palavra que fica por dizer.

priscilla critica leffest
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Ou seja, percebemos a Priscilla de Coppola através dos modos como ela não se consegue expressar. Tanto assim é que, chegado o instante da libertação, a fita termina. É algo repentino, quase tão súbito como o ponto final num giallo de Argento. A câmara não tem interesse em prolongar a observação além do necessário, uma filosofia aplicada a todo o filme precedendo esse fim. Para isto, Coppola apoia-se no argumento que construiu com base no livro de Priscilla e Sandra Harmon, mas também num jogo de montagem. Na verdade, Sarah Flack é quase tão autora do filme quanto a sua realizadora.

A técnica de montagem faz com que duas horas passem num ápice, simultaneamente exaustivas e apressadas, como anos perdidos num transe de inatividade. Sabem aquele sentimento que temos ao recordar os anos altos da pandemia? Aquela sensação de que parecia como se o tormento nunca ia acabar, mas também agora parece que saltámos esses anos num abrir e fechar de olhos? O paradoxo domina “Priscilla,” para o qual uma melhor comparação poderá ser o limbo sôfrego de um relacionamento abusivo. O filme é o instante em que se ouve a porta de casa a abrir e o regresso dele, eterno e rápido demais ao mesmo tempo.




Sim, porque a relação entre Elvis e Priscilla é um exemplo de abuso doméstico, moralismos à parte. Coppola não vem denegrir o cantor, até terminando a fita com uma profissão agridoce de amor além da separação. Contudo, a força da estrela é como um buraco negro a sugar a vida de uma rapariga ainda no processo de se tornar mulher, aprisionando-a na promessa do sonho realizado. No primeiro encontro entre os dois, quando ela tinha só catorze anos, essa dinâmica já é aparente. A década que se segue só contorce a faca. Gradualmente, perde-se uma identidade e Priscilla reduz-se ao reflexo do homem que a ama enquanto uma boneca idealizada.

Certamente, ele trata-a como um brinquedo, com roupas escolhidas qual Barbie de carne e osso, sempre fechada numa casa-de-bonecas chamada Graceland. A cenografia de Tamara Deverell reconstrói esse fausto em tons pasteis a nível parcial, retirando algum do detalhe para acentuar o espaço cavernoso da casa. “Priscilla” é um filme dominado por vazios emocionais e estéticos, com a fotografia de Philippe Le Sourd a conspirar para tornar o reino Presley ainda mais inóspito. Trata-se de um registo digital, com muitas sombras e pouca luz, até que toda a imagem parece uma missanga oxidada. A ideia de brilho está lá, mas a realidade é fosca.

priscilla critica leffest
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Os figurinos são outro golpe de génio, com assinatura de Stacey Battat e uma preocupação com noções de controlo e rebeldias internas. O guarda-roupa das personagens é um plano de combate, cada escolha uma investida militar. A maquilhagem e os cabelos seguem o exemplo, tirando agência à protagonista antes de lhe revelarem a personalidade no ato final. De novo, há glamour, mas é mais intelectualizado que sentido na plenitude. Ninguém se vai deixar inebriar pelo estilo de “Priscilla” enquanto editorial de moda porque a sensação suscitada por tudo isso, no contexto da fita, é o desassossego puro e duro.

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Verdade seja dita, poder-se-ia escrever um livro sobre todos os elementos que tornam esta cine-biografia inortodoxa num dos grandes feitos de Sofia Coppola. Como não há tempo para tais exuberâncias, ficamo-nos por uma nota final dedicada aos atores. Todo o elenco está de parabéns, mas as duas almas perdidas no centro do drama merecem atenção especial. Como Elvis, Jacob Elordi assusta sem, no entanto, desvendar todos os segredos de um homem que vemos ir de ídolo a monstro, de rapaz chorão a marido impotente, crente new age a mulherengo beligerante. Como Priscilla, Cailee Spaeny vai além do colega, engendrando uma prestação de superfícies estilhaçadas, sempre apoiada na reação silenciosa e numa passividade insidiosa. Graças ao seu trabalho, quando chega o fim da narrativa, sentimos um suspiro de alívio em cumplicidade com a mulher em cena. Spaeny ganhou a Taça Volpi para Melhor Atriz no Festival de Veneza e é difícil discordar com a decisão do Júri.

“Priscilla” estreia no circuito comercial a 1 de Fevereiro do ano que vem, com distribuição da NOS Audiovisuais.

Priscilla, a Crítica
priscilla critica leffest

Movie title: Priscilla

Date published: 13 de November de 2023

Director(s): Sofia Coppola

Actor(s): Cailee Spaeny, Jacob Elordi, Ari Cohen, Dagmara Dominvzyk, Tim Post, Lynne Griffin, Dan Beirne, Rodrigo Fernandez-Stoll, Dan Abramovici, Matthew Shaw

Genre: Drama, Biografia, Música, 2023, 113 min.

  • Cláudio Alves - 95
95

CONCLUSÃO:

Mesmo para quem detesta cine-biografias, “Priscilla” revelar-se-á um objeto especial. Ou, quiçá, este filme seja mesmo para esse tipo de audiência e não quem busque algum reconforto nostálgico. Diz-se isso porque, nesta Graceland de Sofia Coppola, todo o sonho é pesadelo e não se pode ficar descansado, nem mesmo quando o idílio nos sabe doce na língua. Depressa amarga e revela veneno. É claro que, para os fãs mais extremados de Elvis Presley, este será um sapo difícil de engolir.

O MELHOR: A montagem de Sarah Flack é sublime, nunca nos deixando respirar até ao último instante. Há tantos pormenores brilhantes como a montagem staccata de um sucesso televiso, a alucinação ácida, os diálogos que cortam demasiado em cima do acontecimento, etc.

O PIOR: Nada a apontar.

CA

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