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Leonora Addio, em análise

Paolo Taviani realiza “Leonora Addio”, uma obra protagonizada por Fabrizio Ferracane, Matteo Pittiruti e Dania Marino!

“É preciso que o tempo passe e nos leve embora, com todos os cenários da nossa vida. O meu, já o enrolei e pu-lo debaixo do braço”. Estas são as últimas palavras do romancista, poeta e dramaturgo Luigi Pirandello (28 de Junho de 1867–10 de Dezembro de 1936) que podemos ouvir neste filme intitulado LEONORA ADDIO, 2022, realizado por Paolo Taviani (nascido a 8 de Novembro de 1931). Um filme marcado pela morte. Morte do referido e consagrado autor, que vemos logo a abrir e em imagens de arquivo na atribuição do Prémio Nobel da Literatura, que recebeu em Estocolmo no ano de 1934. E o mesmo actor, Roberto Herlitzka, que interpretou com a sua voz as citadas palavras do fim, já ao início nos dera a ouvir os ecos do pensamento do escritor, entre eles a quase confissão, escutada sob uma imagem de um velho mas digníssimo Luigi Pirandello sentado na plateia durante a cerimónia do Nobel: “Nunca me senti tão só e tão triste. A doçura da glória não compensa a amargura do seu custo”. Dissemos um filme marcado pela morte, sim, a do autor e académico, assim como as sucessivas “mortes” a que os seus restos mortais foram submetidos a seguir ao seu “primeiro” funeral e cremação. Uma odisseia de regresso a casa, a luminosa Sicília, que o filme irá acompanhar de um modo muito particular. Mas um filme onde a morte está presente por outra razão, a saber, a morte de Vittorio Taviani (20 de Setembro de 1929-15 de Abril de 2018), a quem o seu irmão, Paolo Taviani, dedica esta primeira longa-metragem a solo. E, finalmente, pela morte ficcionada de uma menina provocada por um rapaz, imigrante siciliano nas primeiras décadas do Século XX, numa área abandonada de Brooklyn, Nova Iorque. Trata-se de uma adaptação para cinema de um dos derradeiros contos de Luigi Pirandello, IL CHIODO (O PREGO), capítulo final sob a forma de curta-metragem, intencionalmente integrado no corpo narrativo de LEONORA ADDIO.

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Leonora Addio
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É PRECISO QUE O TEMPO PASSE…

Na verdade, a dialéctica das relações humanas, o cinema, a literatura e a História, as grandes questões que fazem a diferença no contexto da vida e da morte na sociedade que nos molda ou que ajudamos a moldar, foram sempre matéria-prima dos filmes da dupla Paolo e Vittorio Taviani desde que em 1960, após uma passagem pelo jornalismo, se dedicaram ao mundo da sétima arte com uma determinação que não seria apenas cinematográfica mas igualmente política. No primeiro confronto fílmico com a realidade nua e crua do seu país foram acompanhados pelo já veterano cineasta militante Joris Ivens, que com eles e Valentino Orsini realizou L’ITALIA NON È UN PAESE POVERO (A ITÁLIA NÃO É UM PAÍS POBRE), 1960. No entanto, foi só em 1967 que assinaram o primeiro filme como realizadores de corpo inteiro, I SOVVERSIVI (OS SUBVERSIVOS). Depois, para a História do Cinema, os seus nomes ficarão para sempre associados a uma Palma de Ouro e ao Prémio FIPRESCI que receberam no Festival de Cannes por PADRE PADRONE, 1977, assim como, no mesmo festival mas em 1982, ao Grande Prémio do Júri para LA NOTTE DI SAN LORENZO (A NOITE DE SÃO LOURENÇO). Numa carreira que comportou outros galardões de similar importância, destaque ainda para o Urso de Ouro e o Prémio do Júri Ecuménico atribuídos no Festival de Berlim de 2012 a CESARE DEVE MORIRE (CÉSAR DEVE MORRER). Deste modo, será imperioso compreender que uma filmografia assim assumida ao longo de vários anos como a de um colectivo, quando se vê amputada de um dos seus membros não podia deixar de gerar no membro sobrevivo um sentimento de perda. Isso parece evidente em cada fotograma de LEONORA ADDIO, e fica claramente expresso na dedicatória caligráfica que Paolo destaca no genérico inicial, dirigida ao seu irmão: “a mi fratello Vittorio”. Mas não se enganem aqueles que receiam ir ver um filme soturno, deprimente, acusando o peso da morte que por ali paira. Não, Paolo Taviani procura sempre por entre as sombras encontrar uma chama vital que ilumine as áreas mais cinzentas de uma Itália, ela sim, deprimida pelos anos da ditadura fascista e pelas dificuldades imediatas que se seguiram após a derrota na Segunda Guerra Mundial. Tudo somado aos pedaços de esperança que foram sendo acumulados, não obstante as contradições geradas pela ocupação e presença dos aliados vencedores, a arrogância dos mais fortes e bafejados pelo poder do dinheiro, em especial a dos militares americanos que olhavam para o país que ajudaram a libertar como um exemplo do subdesenvolvimento na Europa do Sul. Mal sabiam alguns que os seus antepassados embarcaram para o outro lado do Atlântico pelas mesmíssimas razões subjectivas, embora as deles fossem radicadas na mais objectiva das análises que se pode fazer, aquela que determina, na maior parte dos casos, as opções mais difíceis de sustentar. Mesmo as mais violentas. Será pois através de um país dividido entre ricos, menos ricos e pobres de asas cortadas que a urna com as cinzas de Luigi Pirandello, ao contrário do que deixara escrito, irá viajar de Roma (onde a encaixaram na parede de um cemitério na era de Benito Mussolini, um autêntico buraco onde permaneceu ao longo de dez anos) até Agrigento na Sicília. Restaurada a democracia, o novo poder decidiu retirá-la dali. Devolvo a palavra ao homem de letras que assim escreveu a propósito do que queria para o seu destino pós-morte: “Que passe em silêncio a minha morte. Enrolem-me, nu, num lençol. Usem um carro da menor categoria, dos pobres. Queimem-me. E que o meu corpo acabado de queimar seja espalhado para que nada, nem mesmo as cinzas, reste de mim. Mas se não for possível, que a urna cinerária seja levada para a Sicília e emparedada dentro de uma rocha do campo onde nasci”. Ouve-se claramente na banda sonora o nome dado a essa pedra natural siciliana, “rosa pietra”. No filme, cabe ao actor Fabrizio Ferracane o papel de fiel depositário da urna e o périplo que imaginara, simples e directo, acaba por ser um percurso sinuoso e algo acidentado. Primeiro, num avião cedido pela força aérea americana que não levanta voo devido a superstições antigas que determinam que não se pode, ou melhor, não se deve viajar com um morto. Logo de seguida, vemo-lo num comboio apinhado de gente e mercadorias, homens e mulheres, mais a urna, pessoas e bens que se instalam onde calha, sem qualquer conforto ou, digamos assim, dignidade. Entretanto, na cidade de Agrigento, uma procissão será realizada com a possível pompa e circunstância, mas será num caixão de criança que enfiam a urna, porque não havia outro disponível, e isto para permitir que a igreja possa abençoar não uma cerâmica profana, um vaso grego onde as cinzas haviam sido depositadas, mas um qualquer vulgaríssimo caixão, que provavelmente até Jesus Cristo rejeitaria. Depois, não contentes com os sucessivos atropelos ao que Luigi Pirandello deixara expresso e por escrito, as cinzas vão sair da helénica cerâmica e ser calcadas numa caixa de ferro, o mais horrível recipiente que se possa imaginar. E as cinzas que sobraram do pedaço de lata vão ser recolhidas em segredo pelo escultor que fora convidado a descobrir a desejada rocha “funerária”. Finalmente, depois de encerrar a caixa com parte das cinzas no monumento, sozinho e sem nenhuma burocrática cerimónia, o artista acaba por prestar uma singela, dir-se-ia rotineira, mas condigna homenagem, no fundo a que mais se aproximou do prescrito por Luigi Pirandello, lançando o remanescente das cinzas ao vento e do alto de um penhasco junto ao azul intenso do Mar Mediterrâneo. Nesta altura, a fotografia que até ali fora a preto e branco, excepto num belo plano que se refere ao momento da cremação, nasce para uma outra realidade polarizando a intensidade das cores da Terra, do Céu e do Mar, e só então se dá a passagem para o derradeiro episódio, a ficção O PREGO.

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Leonora Addio
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Tudo o que se descreveu não se deve entender senão como a coluna dorsal de uma estrutura fílmica que vale bem a pena uma deslocação ao cinema, preenchida que vai ser com a carne e o sangue de um projecto organizado com um ritmo e uma densidade adequados a uma abordagem que percorre diversos sentimentos, só na aparência contraditórios: a nostalgia, a crítica, o olhar que nos revela o humor que invade as situações mais concretas ou desvairadas, difíceis de qualificar, por vezes mesmo a caminho do surreal, que se depreende das vicissitudes, os altos e baixos do dia a dia. Muito divertida e cáustica a sequência do comboio, um autêntico auto-retrato da Itália que procurava esquecer o passado sem saber com segurança qual seria o seu futuro. Um breve mas curioso ensaio de antropologia social e cultural que não quer ser mais do que uma forma de abordar as mil e uma faces da natureza humana. Luigi Pirandello seguramente gostaria de assistir, se fosse vivo, a um grupo de cidadãos a jogar cartas, sem o saberem, na caixa de madeira onde estava a urna de um morto. Paolo Taviani, enquanto argumentista, demonstra saber a dose certa para equilibrar o grotesco com o sério, a simbiose do que realmente aconteceu com aquilo que imaginou. Mesmo quando filma personagens que não lhe são queridas, fá-lo com elegância. Por exemplo, o modo como retrata as personagens que representam a hierarquia da igreja católica, quando estas falam do escritor dirigindo-se aos mais jovens que, por sua vez, exalam uma sulfurosa ignorância como se nada da sua obra fizesse alguma diferença nas suas vidas.

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Leonora Addio
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Muito interessante no campo da montagem a inserção na narrativa global de excertos de outros filmes que, de uma forma ou de outra, dão consistência ao contexto histórico e ao diferenciado pulsar da ficção principal. Por lá andam imagens e sons de PAISÀ (LIBERTAÇÃO), 1946, de Roberto Rosselini, ESTATE VIOLENTA (UM VERÃO VIOLENTO), 1959, de Valerio Zurlini, IL SOLE SURGE ANCORA, 1946, de Aldo Vergano, IL BANDITTO (O BANDIDO), 1946, de Alberto Lattuada, AMORE ROSSO, 1952, de Marianna Sirca, AMORE DIFFICILE (episódio L’AVVENTURA DI UN SOLDATO), 1962, de Nino Manfredi, L’AVVENTURA (A AVENTURA), de Michelangelo Antonioni, e até KAOS, 1984, de Paolo e Vittorio Taviani, cujo argumento foi escrito a partir de cinco contos de Luigi Pirandello.

Trata-se LEONORA ADDIO de um filme corrosivo? Sim, mas até certo ponto simpático para quem sai corroído. Uma acutilância assumida no meio de uma vivacidade de propósitos que contrasta com aquela que podia ser, e nunca será, a atmosfera fúnebre relativa a uma acidentada viagem para a eternidade.




Leonora Addio, em análise
Leonora Addio

Movie title: Leonora Addio

Director(s): Paolo Taviani

Actor(s): Fabrizio Ferracane, Matteo Pittiruti, Dania Marino, Nathalie Rapti Gomez

Genre: Drama, 2022, 92min

  • João Garção Borges - 70
70

Conclusão:

PRÓS: De um ponto de vista global, podemos apontar este projecto a solo de Paolo Taviani, o primeiro de uma carreira que sempre partilhou com o seu irmão Vittorio Taviani, falecido a 15 de Abril de 2018, como um depoimento sincero sobre a morte de um homem notável, memória e reflexão sobre o percurso existencial de Luigi Pirandello a partir do seu exemplo e das suas palavras, sobretudo as que deixou escritas sobre o modo como desejava encarar a sua condição de mortal, precisamente após a sua morte.

Recebeu o Prémio FIPRESCI no Festival de Berlim de 2022.

CONTRA: Nada. Não obstante, não resisto a deixar um pequeno reparo. Preferia que a Direcção de Fotografia fosse mais “suja”, menos digital, mais analógica. Num filme em que o preto e branco se impunha do ponto de vista da realização como sinal cromático do luto, faz falta essa verdade orgânica que a imagem electrónica não produz, ou melhor, não confere com a mesma intensidade. Enfim, seria hipócrita se não referisse este, repito, pequeno aspecto que não retira em nada o valor maior que confiro ao filme, incluindo o da Direcção de Fotografia de Paolo Carnera e Simone Zampagni.

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