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Linha Fantasma | Os figurinos subtilmente geniais de Mark Bridges

Rendas flamengas e sedas italianas sobrepõem-se em luxuriante beleza no último filme de Paul Thomas Anderson. Entre as suas seis nomeações para os Óscares, “Linha Fantasma” conta com uma indicação para o trabalho de Mark Bridges, o figurinista que há seis anos já ganhou o prémio pelos figurinos de “O Artista”.

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Podem bons figurinos ser deliberadamente convencionais, aborrecidos e até feios? Pode um filme sobre moda ter um bom guarda-roupa mesmo quando esse mesmo guarda-roupa é composto por designs estilisticamente entediantes? Apesar de Mark Bridges estar a ser um dos figurinistas mais celebrados desta Awards Season, já variados críticos apontaram para o seu trabalho em “Linha Fantasma” e denegriram o estilo conservador, rígido e pouco vistoso com que a maioria das personagens é vestida. O cúmulo desta reação simultaneamente adoradora e intransigente veio quando, após ter ganho o BAFTA, Bridges perdeu o prémio do seu próprio sindicato para Melhores Figurinos num Filme de Época. Noutro contexto, tal resultado podia ser ignorável, mas a alta-costura inglesa dos anos 50 de “Linha Fantasma” havia perdido para “A Forma da Água”, um filme passado nos anos 60 focado numa empregada de limpezas com um guarda-roupa extremamente limitado.

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A ostentação faustosa dos figurinos de “Linha Fantasma” não é um necessário indicador de qualidade, é claro. A qualidade do guarda-roupa do último filme de Paul Thomas Anderson devém da sua atenção ao detalhe, da sua luxuriante evocação de tatilidade, da recriação precisa de um tempo, local e sociedade, assim como da sua sagaz delineação da psicologia das personagens. Acima de tudo, é este último fator que se revela de maior interesse pois, ao contrário do que acontece na maioria dos filmes narrativos, Bridges não concebeu os vestidos e fatos mais vistosos de “Linha Fantasma” para refletir ou definir as mulheres que os vestem, mas sim o homem que desenhou as roupas e assim decidiu vestir essas mesmas mulheres.

Tal como é escrito por Anderson e interpretado por Daniel Day-Lewis, Reynolds Woodcock é um homem de hábitos, maniento, com rotinas ossificadas e um desdém agressivo por noções modernas do que é “chique”. Ele é também um costureiro inglês, sediado em Londres no início da década de 50 e cuja clientela é principalmente formada por membros da aristocracia europeia e mulheres de meia idade da alta-sociedade britânica. A alusão de Day-Lewis a Cristóbal Balenciaga como fonte de inspiração para a sua caracterização de Reynolds tem vindo a colocar os designs da Casa Woodcock em comparação direta com as criações do designer espanhol.

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No entanto, a falta de espetacularidade e a rigidez conservadora das roupas criadas por Reynolds Woodcock são um reflexo da sua personalidade, do seu método, das suas manias e do contexto em que ele se encontra. Seria absurdo para Woodcock ter o mesmo tipo de estilo de Balenciaga, ou o dramatismo da Dior ou mesmo a espetacularidade quase arquitetónica de um designer americano como Charles James. Apesar de ter assimilado as tendências francesas como o “New Look”, a moda inglesa do pós-guerra era ainda levemente marcada pela severidade conservadora dos anos de conflito e sua cultura de dever e sacrifício. Se vamos comparar Woodcock a outros designers, há que o fazer com nomes como Hardy Amies, Digby Morton, Michael Donéllan e um dos criadores preferidos da família Windsor, Norman Hartnell.

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Com essas referências sem conta, assim como o texto de Anderson e as opiniões de Day-Lewis, Bridges concebeu o estilo da casa Woodcock. Trata-se de uma estética meio conservadora, como já dissemos, onde justaposições de tecidos ricos e cores fortes marcam presença habitual. Rendas flamengas e zibelinas rijas aparecem em muitas criações, ao mesmo tempo que silhuetas sem mangas são uma raridade provocadora. As saias podem ser rodadas, mas quase nunca existem godés ou pregueados a exigir grandes quantidades de tecido.

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Como se vê logo na primeira criação de Woodcock em cena, um vestido de veludo e seda com uma gola de renda e capa de ombros armada, as mulheres vestidas por esta casa não vestem os vestidos, os vestidos vestem-nas a elas. Mesmo quando Reynolds pede à sua enaltecida cliente para caminhar pelo gabinete de prova e rejubila face à beleza imperiosa da sua criação, o espectador vê como o vestido é quase imóvel e sente o peso da cauda de veludo a arrastar-se atrás da aristocrata. Ela está tão bela como alienada, não parece tanto uma mulher elegante, mas sim um ícone intocável no altar de uma igreja. Assim apresentada, esta é uma figura para ser admirada à distância. Tais leituras não se refletem sobre a personagem da cliente, mas ajudam a pintar o retrato de Reynolds.

Por sua vez, a personagem de Day-Lewis nunca parece desconfortável nas suas roupas. A câmara documenta a criação da sua figura diária, a curadoria da sua aparência, desde o pentear do cabelo ao vestir do seu casaco de lapelas largas. Neste aspeto, a influência de Day-Lewis foi particularmente crucial, sendo que foi o ator que ajudou Bridges a decidir que tipo de laço Reynolds escolheria, que tipos de pijamas seriam ideais para o designer maniento e outros tantos detalhes da sua apresentação pública. Uma coisa é certa, ao contrário das suas modelos, Reynolds nunca parece estar a sufocar em golas de renda ou a ter dificuldade em caminhar em saias travadas e anquinhas escultóricas.

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Ao longo destas primeiras sequências, Anderson deixa-nos também perscrutar outros detalhes das criações de Bridges por meio de Woodcock. A sua câmara deleita-se com os pormenores da costura da nova coleção, desde o corte de moldes à aplicação final das etiquetas. Isto deu muitos problemas a Bridges que teve de organizar a construção do guarda-roupa de modo a que alguns dos figurinos feitos de raiz fossem sendo construídos em frente da câmara por uma equipa formada por mulheres que, há mais de cinquenta anos, trabalharam nas casas de alta-costura de Londres. Outros pormenores que o olhar de Anderson nos permite ver é toda a arquitetura de lingerie que dá às mulheres de Woodcock a silhueta ideal para envergarem os seus designs.

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Há que sublinhar que tudo isto acontece antes sequer de nos deparamos com a segunda protagonista do filme, Alma. Ao contrário das clientes de Reynolds ou da sua irmã Cyrill, que veste roupas simples de veludo escuro e linhas severas à la Judith Anderson em “Rebecca” de Hitchcock, Alma é-nos apresentada num uniforme impessoal de empregada de mesa. Nada disso detrai Reynolds de a convidar para jantar, contudo.

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Nesse jantar, note-se como Bridges vestiu Alma num figurino que denota a sua modéstia de posses, mas ao mesmo tempo sugere uma certa obstinação. É a primeira vez que vemos vermelho vivo em “Linha Fantasma” e a intensidade da cor quase que sangra do ecrã. Reynolds pode despir e vestir Alma à sua vontade e desenho, mas ela não se facilmente submete aos seus caprichos. Tal como o texto de Anderson, também o figurino de Bridges está a dar um aviso a Reynolds: “O que quer que faças, fá-lo com cuidado”.

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De regressa a Londres, a narrativa principal de “Linha Fantasma” pode realmente ter início e os figurinos de Mark Bridges tornam-se mais essenciais do que nunca. Algo de particular importância no seu feito enquanto figurinista é a delineação marcada de Alma enquanto musa de Reynolds. Isso manifesta-se de várias maneiras e nem é sempre com os delicados vestidos de renda e seda com que ele a veste para irem jantar aos restaurantes da elite londrina. Num desfile, por exemplo, Alma enverga dois vestidos, um dos quais é uma clara referência ao seu uniforme de empregada. A cor é semelhante, a gola tem a mesma forma, e uma aplicação de renda na frente da saia sugere o fantasma de um avental.

As criações de Reynolds tornam-se assim na sua autobiografia artística, assim como na documentação do seu relacionamento com Alma. Tudo isso é presente nas criações de Bridges, que faz a escolha sagaz de nunca deixar que Alma vista as roupas de Reynolds no contexto mais doméstico e casual da sua existência. Ela pode ser a musa do grande artista, mas de modo algum será ela mais uma das suas criações e, desde o início, que as suas palavras mostram quão ela desafia o gosto do seu companheiro. Ela não gosta de um vestido feito com um padrão floral escuro e faz-se ouvir, por exemplo.

E é aqui que o fantasma de outro dos seus figurinos marca presença. Referimo-nos ao vestido escarlate de decote assimétrico que ela usa para servir um jantar surpresa a Reynolds. A cor é como que um eco da sanguinidade explosiva da sua primeira noite passada juntos, mas a irregularidade torcida do design é como que uma provação obstinada. O vestido é claramente uma criação de Alma e não um desenho de Reynolds e nem é preciso a clarificação do texto para entendermos esse facto, ou a provocação a ele subjacente.

Roupas agem aqui como diálogo e como perfil psicológico. A sua beleza e glamour é secundária ao seu papel dramatúrgico e mesmo o vestido de noiva definido por Reynolds como “o único vestido do mundo” vale mais como um símbolo da sua insatisfação e intransigência de Reynolds, do que como uma chance para Bridges espantar o espetador com um design arrebatador. Este é o mais belo vestido do mundo? Não, mas nunca era suposto ser, só mesmo na mente ego-maníaca de Reynolds.

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Através do desapontante vestido de noiva e da severidade alienante das restantes criações da casa Woodcock, Mark Bridges edificou a sua própria crítica visual ao mito romântico do artista incompreendido e sua musa submissa. “Linha Fantasma” é um filme de dominância e submissão, de amor humano e paixão artística, de obscenidade decorosa e monstruosidade elegante e muita dessa alquimia tonal e temática depende da genialidade dos seus figurinos. Por isso, o feito de Bridges trata-se de um dos grandes trabalhos de figurinos cinematográficos dos últimos anos e merece todas as honras que poderá ainda vir a receber. Reynolds Woodcock pode não ser nenhum génio, mas Mark Bridges talvez seja.

 

Será que a qualidade de Bridges lhe irá valer um segundo Óscar? Se houvesse justiça no mundo dos prémios de cinema a resposta seria obviamente “SIM!”.

 

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