"Mambar Pierrette" | © Tândor Films

Mambar Pierrette, a Crítica | Rosine Mbakam faz regresso glorioso ao IndieLisboa

Rosine Mfetgo Mbakam é uma das grandes cineastas dos Camarões, um estatuto que “Mambar Pierrette” vem confirmar. A estreia da realizadora em longas-metragens de ficção tem lugar na secção Silvestre do IndieLisboa.

Muitos são os realizadores que começam no mundo do documentário antes de fazerem a transição para um cinema mais narrativo, apoiado na ficção que não será, por isso, menos verdadeira que a realidade sem filtro. Assim foi o caso de Rosine Mbakam, cujo trabalho documental incidiu muito no filme-retrato, trazendo histórias de mulheres para o grande ecrã. De facto, foi com uma dessas obras que a cineasta dos Camarões ganhou o Prémio Cidade de Lisboa no IndieLisboa 2021. “Les prières de Delphine” considerou um retrato entre a jovem titular e a câmara, enveredando por um cinema feito confessionário, onde se discutem temas como a emigração e o trabalho do sexo.

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Olhando para trás com o benefício de conhecimento presente, “Delphine” foi um culminar da realizadora, como que resumindo as suas melhores qualidades em registos de não-ficção. Não se acredita na fita como um ponto final no percurso artístico, mas é certamente o augúrio de uma transição. Diz-se isso porque os esforços seguintes de Mbakam têm incidido num registo em que as técnicas documentais de outrora se refazem à imagem da narrativa, um estilo algures entre um Neorrealismo de herança Europeia com a expressividade especial de um estudo de personagem Africana. Assim nasce “Mambar Pierrette,” a maior obra-prima que a realizadora até agora assinou.

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© Tândor Films

Filmado com gente conhecida, familiares e tudo, o filme considera uns dias atribulados na vida de uma costureira em Douala, capital dos Camarões. Logo de início, sabemos que um novo ano escolar está prestes a começar, suscitando novos gastos para muitos pais incluindo a própria Pierrette. O material para o menino mais novo é preocupação constante, representando um investimento de peso na vida da família de patriarca ausente. Além disso, a altura do ano também traz consigo eventos sociais, levando muitas senhoras a procurarem o trabalho de Pierrette. Longe de ver isso como uma futilidade, o filme considera as modas enquanto ferramenta da autoconfiança, seu papel na imagem própria das pessoas, significados sociais e tanto mais.

Num nível puramente formal, os figurinos que o elenco enverga e outras criações em jeito de adereço trazem cores fortes a uma paleta dominada pelo realismo de câmara ao ombro e luz natural. Apesar da sua realidade enquanto artifício puro e duro, os estampados em cera e outros têxteis garridos complicam noções miserabilistas do dia-a-dia no continente Africano dos nossos dias. São como que um repelente do cliché, despertando teatralidades cénicas sem quebrar o registo natural. O mesmo acontece mais tarde na fita, quando um ator de rua remexe os tons do filme, ou quando Mbakam usa a alvura de um manequim como remate cómico perto do fim.


Mas além de costureira, Pierrette é quase conselheira para as clientes, tornando-se num pilar da comunidade sem que a dramaturgia ressalte em demasia essa qualidade. Ela faz mais do que roupas. Dito isso, tal ideia não atenua o lavoro físico, muitas horas curvada sobre a máquina de costura que, certo dia, decide parar de trabalhar. Trata-se do primeiro de muitos percalços, uma disrupção rítmica num quotidiano que a câmara observa com graciosidade digna de ballet. O problema lá se resolve, mas atrasa as encomendas, e o esforço para por tudo em ordem sente-se na espinha. Ao mesmo tempo que há beleza no movimento repetido, também há a visceralidade da exaustão.

Através do ecrã, conseguimos sentir o cansaço da heroína, o peso das responsabilidades e a necessidade constante de resistir às desgraças comuns de cada dia. Vêm assaltos e cheias destrutivas, produtos destruídos pela chuva forte e boleias mal planeadas, uma desgraça amorosa aqui e mais uma deceção acolá. Perante tudo isso, Pierrette persiste e o filme acompanha-a através da adversidade. Não há martírio nem sofrimento bonito no retrato, somente um pragmatismo direto que exige mais respeito que simpatias piedosas. Para todo o problema, há solução, e a possibilidade do melodrama será subvertida quando se começa a assumir.

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© Tândor Films

Essa decisão, essa recusa da exploração gratuita das personagens, marca a diferença e eleva o trabalho de Mbakam acima de tantos outros filmes sobre temas semelhantes. Sente-se o fulgor de um humanismo cinematográfico, a vontade de celebrar o indivíduo ao invés de salivar para com um festim de azares. Veja-se, por exemplo, o interlúdio festivo que ocorre quando Pierrette acompanha uma amiga, sua cliente, numa saída noturna. Dança-se para esquecer e dança-se para apoiar os outros, fazendo de apoio num momento de necessidade. Novamente, não é altruísmo em jeito de santa moderna. É uma irmandade forte e feminina, uma forma de salientar quanto a nossa existência se faz de conexões e companhias. Ninguém é uma ilha.

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Quando chove, cai a potes, e a água reaparece ao longo de “Mambar Pierrette” tão regularmente quanto o detalhe vivido. O elemento traz noções de ciclo primordial à fita, uma repetição de abalo e renovação, um renascer que vem com cada alvorada. A franqueza do filme jamais impede que um raio de esperança irrompa pelo ecrã, brilhando como sol de abraço quente. Além do mais, passada a luta, o que fica são os prazeres mais pequenos, o bom humor e a beleza, o afeto e a partilha de dores em camaradagem. Idealizações postas na rua e melodramas evitados, “Mambar Pierrette” mostra-nos um realismo social feito à imagem e medida da sua heroína – uma das grandes personagens do ano cinematográfico. É, sem sombra de dúvida, grande figura no IndieLisboa deste ano.

Mambar Pierrette, a Crítica
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Movie title: Mambar Pierrette

Date published: 25 de May de 2024

Duration: 93 min.

Director(s): Rosine Mfetgo Mbakam

Actor(s): Pierrette Aboheu Njeuthat, Marguerite Mbakop, Duval Franklin Nwodu Chinedu, Léonce Sonia Bangoub, Chamard Yotchou, Chimène Aboheu, Claire Hiencheu, Marie Noël Nimendeu

Genre: Drama, 2023

  • Cláudio Alves - 90

CONCLUSÃO:

Utilizando os idiomas audiovisuais que desenvolveu em documentários, Rosine Mbakam propõe um Neorrealismo africano para o século XXI. “Mambar Pierrette” é uma lufada de ar fresco e um gesto de resiliência radical, filme simples, mas muito poderoso onde se denota a mestria de uma cineasta em plena forma. Além de tudo o mais, a personagem principal é escrita com magnífica compaixão, sem simplificação indevida ou qualquer tipo de martírio moralista. Que tremenda estreia enquanto realizadora a solo de cinema narrativo. Mal podemos esperar para ver o que Mbakam faz a seguir.

O MELHOR: O interlúdio de prazeres noturnos, a qualidade balética da costura, e aquele apontamento cómico mesmo antes dos créditos finais.

O PIOR: Nada a apontar.

CA

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