© Monstra - Festival de Animação de Lisboa

MONSTRA 2023 | Entrevista com o Diretor Artístico

Fernando Galrito, diretor artístico da Monstra – Festival de Cinema de Animação de Lisboa, esteve à conversa com a Magazine.HD.

Criada em 2000, a Monstra é um festival português de cinema de animação que promove a exibição de curtas e longas-metragens, bem como a criação de retrospectivas de um país convidado, conversas com especialistas nacionais e internacionais do setor cinematográfico e ações de formação relacionadas com o tema. Este ano, o evento terá lugar entre os dias 15 e 26 de março, tendo o Cinema São Jorge como espaço central. Além disso, haverá exposições na Cinemateca Portuguesa, no Museu do Oriente e no Museu da Marioneta, sendo que muitos outros filmes serão apresentados no Cinema UCI – El Corte Inglés e no Cinema City Alvalade e em outros pontos da cidade. A programação completa pode ser consultada aqui.

A poucos dias de chegar até nós aquela que será a 22ª edição da Monstra – Festival de Cinema de Animação de Lisboa, a Magazine.HD esteve à conversa com Fernando Galrito, o diretor artístico deste projeto. Este cofundador do evento relacionado com os filmes de animação falou-nos do programa deste ano, dando-nos um panorama mais alargado das novidades que poderás encontrar neste Festival.

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MHD: Para quem não conhece, o que é o “Monstra”?

Fernando Galrito: A ‘Monstra’, porque nós pedimos que ela seja feminina [risos]. Na nossa mitologia, a luta entre o São Jorge e o Dragão, é uma dragoa, a Coca. Vem lá de cima do Minho, de Monção. Então, digamos, o nome ‘Monstra’ também acabou por ser inspirado nessa nossa mitologia da luta entre o São Jorge e a Coca. Neste caso, a ‘Monstra’ é um festival de cinema de animação onde pretendemos abarcar aquilo que são os três níveis que o cinema de animação tem.

Portanto, o ‘antes do ecrã‘, e quando falamos do ‘antes do ecrã’, estamos a falar das exposições e das conversas que temos com os realizadores das formações. Ou seja, tentar perceber tudo o que se passa antes do ecrã. E aí entram, especialmente, as exposições. E este ano temos quatro exposições muito importantes e muito fortes. Temos a exposição do Museu da Marioneta, onde temos dois filmes em estreia e também uma pequena retrospectiva de alguns filmes importantes da nossa história. Na Cinemateca Portuguesa temos também uma exposição dedicada a cem filmes de animação, por causa do centenário do primeiro filme de animação que se conhece, com originais desse filme de 1923 até aos nossos dias. No fundo, é quase uma viagem no tempo que já fala um bocadinho do futuro. E depois uma outra exposição do país convidado, que é o Japão, com o trabalho do Koji Yamamura, no Museu do Oriente. E temos uma também dedicada a um grande autor e artista alemão, que vai fazer uma exposição que nós pensamos que é sui generis, na Sociedade Nacional de Belas-Artes, onde vai haver um diálogo entre aquilo que é a sua arte que ele deixou nas suas pesquisas e nos seus rabiscos, com os traços efémeros, que vão ficar na parede da exposição. Portanto, Raimund Krumme vai fazer essa exposição, para além de uma exposição interativa no Cinema São Jorge, onde as pessoas, com o seu telemóvel ou tablet, podem olhar ilustrações que depois, através da realidade aumentada e através desse artífice do telemóvel, vão poder ver outras coisas para além daquelas que estão espelhadas no cartaz. Ou seja, esta é a parte do ‘antes do ecrã’ do Festival.

Depois temos a parte do ‘ecrã‘, que é dedicada ao cinema, onde temos muitos filmes. São 425 filmes que vamos passar durante estes doze dias de Festival, onde vamos ter muitas estreias mundiais de filmes portugueses, como “A Casa Para Guardar o Tempo“, de Joana Imaginário, “O Homem das Pernas Altas“, de Vitor Hugo Rocha, “Alento“, de Leonor Pacheco, etc. Temos o último filme do nosso querido amigo José Xavier. O André Ruivo também vai estrear o seu último filme na Monstra, Joan Gratz, uma Óscarizada também vai estrear na Monstra o seu filme. Para além das competições onde, naturalmente, se destaca a nossa competição portuguesa, com muitos filmes de animação portugueses, a maioria deles muito bons, onde podemos destacar o “Ice Merchants“, que está na corrida ao Óscar e que acabou de ganhar o Annie. Temos também “O Homem das Pernas Altas“, que é também uma estreia mundial e o filme, que também já referi, da Joana Imaginário, bem como Vasco Sá e David Doutel, “O Casaco Rosa“, o “Algo que Eu Disse” e muitos outros filmes portugueses. E as duas longas-metragens que também estamos a estrear aqui no nosso Festival – “Os Demónios do Meu Avô“, de Nuno Beato, e o “Nayola“, do José Miguel Ribeiro. Este lado português vai estar em diálogo com muitas outros filmes vindos de cinquenta países que vão estar aqui também nas nossas competições e nas nossas retrospectivas também.

Naturalmente, convém falar do nosso país convidado, que é o Japão, onde vamos fazer uma grande retrospectiva. São 96 filmes japoneses, entre 17 longas-metragens e muitas curtas. Vamos fazer um olhar sobre aquilo que é o passado da história do cinema de animação japonês, passando os grandes mestres da história da animação japonesa, onde ainda não havia muita influência do anime, digamos assim, daquilo que vem da banda desenhada. E depois, os grandes autores como Satoshi Kon, o Katsuhiro Ôtomo, com o filme fabuloso “Akira“, de Mamoru Hosoda, de quem já tivemos alguns filmes, como por exemplo “O Rapaz e o Monstro“, que vamos também ter neste retrospectiva. E depois, um olhar sobre aquilo que é a nova geração, mais independente do cinema de animação japonês, onde nós destacamos talvez o grande mestre e o grande impulsionador deste movimento, que é o Koji Yamamura, que é nosso convidado. E, para além de uma conferência e de uma exposição dos seus trabalhos e dos seus quatro últimos filmes, no Museu do Oriente, vamos também fazer uma retrospectiva de alguns dos seus filmes. Também um destaque, ainda que seja de um ocidental, dentro desta homenagem ao cinema de animação japonês, o filme “A Tartaruga Vermelha“, de Michael Dudok de Wit, que é o único ocidental, até hoje, apadrinhado pelos estúdios Ghibli e com eles produziu este filme famoso de uma poesia intensa, de uma relação com a natureza muito forte e que, infelizmente, nunca saiu nas salas portuguesas. Quem quiser, terá oportunidade de o ver não só ao vivo, como também depois de falar numa masterclass com o Michael Wit, sobre não só a sua realização, mas também sobre o que é fazer um filme de animação, especialmente ao nível da sua criatividade.

Aproveitando a masterclass, damos um pulo para outro lado, para aquilo que é o ‘depois do ecrã‘, onde apresentamos o futuro. A nossa Monstra Summit, por exemplo, vai dedicar-se um pouco àquilo que é o futuro do cinema de animação português com uma conversa entre jornalistas, realizadores, produtores, difusores e promotores do cinema em geral em Portugal. Vamos ter também um momento dedicado à apresentação dos projetos portugueses, que é sempre um momento muito interessante, onde vamos conhecer aquilo que serão os próximos filmes a serem apresentados na Monstra e noutros festivais. E vamos também ter a tal exposição da realidade aumentada. Temos a nossa aplicação, que é também muito interessante, que é uma aplicação de realidade aumentada chamada A Minha Monstra. Com ela podem fotografar e fazer vídeos em qualquer sítio do mundo com algumas das personagens do nosso Festival. É uma coprodução com uma empresa muito interessante, muito inovadora, muito criativa, de Braga, que são nossos parceiros há dois ou três anos e, com eles temos também olhado o mundo de uma forma diferente.

Portanto, aquilo que eu acho que atravessa praticamente estes três momentos do Festival é a Monstrinha, que é um festival quase dentro do próprio Festival Monstra, e que chega às escolas com uma coleção grande de filmes, também oriundos de muitos países. Fazendo com que as crianças e os jovens possam tomar contato com o cinema de animação de autor, que é menos representado, infelizmente, nas salas de cinema, e às vezes até mesmo nas televisões, que estão mais viradas para as séries de animação. E com esta vantagem que as crianças podem ver os filmes numa sala escura, numa verdadeira sala de cinema com um grande ecrã e com um bom som envolvente. É sempre uma experiência diferente de vê-lo em casa no ecrã pequeno de uma televisão ou do computador. A Mostrinha tem sido e é um espaço muito interessante, porque também tem sido um espaço de literacia cinematográfica. Muitos dos nossos atuais espectadores mais adultos, cresceram a ver a Mostrinha e ganharam um prazer com o Festival para os mais pequenos e para as famílias.

O Festival está também cheio de ações de formação, como a de Koji Yamamura que vem do Japão para fazer um workshop na cidade de Lisboa, com a cidade de Lisboa como pano de fundo, e muitos outros. Ou seja, há aqui um conjunto grande de atividades, para além de muitos filmes de animação apresentados exclusivamente para o público mais jovem e para as famílias. Um destaque dentro da Monstrinha que é a Monstrinha Baby, dedicada aos mesmo muito pequenininhos. É muito interessante ver nas manhãs do fim-de-semana, a entrada do São Jorge, em vez de carros daqueles que fazem barulho e poluem, carrinhos de bebé, enquanto os mais pequeninos estão lá dentro deliciados com as imagens dos filmes que escolhemos para eles [risos]. Diria que é um leque, relativamente alargado, de filmes e de propostas que o Festival de Animação de Lisboa tem. Para voltar ao princípio da resposta, é, no fundo, este o seu berço, digamos assim, a sua origem, mas também a sua evolução. Apesar de tudo, todos os anos fazemos algo de novo mas, mantendo um objetivo que é mostrar muitos e novos filmes de animação.

Magazine.HD: Ainda existe muito o preconceito de que os filmes de animação são só para as crianças?

Fernando Galrito: Eu acho que, felizmente, não e, talvez a Monstra também tenha ajudado a contribuir para isso. Eu acho que esse preconceito vai-se acabando. Aliás, acontecia muitas vezes termos sessões às 19:00 ou às 20:00, que são sessões mais para adultos, e as pessoas trazerem os seus filhos, e isso é uma coisa que já não acontece. As pessoas já percebem que a partir de determinada hora, as sessões são mais para adultos, para os jovens estudantes de animação, para os jovens do secundário, mas já não são filmes para crianças. Eu acho que as pessoas já percebem que há essa diferença e que o cinema de animação começa a ser, ou sempre foi, mas talvez menos divulgado, um cinema muito importante para falar de questões da nossa realidade, das nossas relações, das preocupações que o mundo nos coloca e sobre as quais devemos estar bastante observadores e atentos. E o cinema de animação, também por causa da sua capacidade de síntese, da sua capacidade de contar as coisas de uma forma diferente, às vezes de uma forma mais aprofundada e até talvez poética, por um lado, mas ao mesmo tempo também mais aguda, e mais otimizada por outro, acaba por ser uma arte que, em muitos aspetos, às vezes consegue tratar de determinadas questões e determinadas problemáticas de uma forma mais profunda e mais chocante até que as imagens reais com que nos enchem diariamente os telejornais. Às vezes, o lado metafórico a que o cinema de animação recorre com muita frequência e com muita facilidade, ajuda-nos a ver as coisas de uma forma mais aprofundada. Por isso, eu acho que o cinema de animação e, neste caso, o Festival Monstra tenta ter também esse olhar de falar sobre aquilo que nos rodeia, porque sermos seres interventivos e pensantes sobre aquilo que é o nosso mundo atual é fundamental para ajudarmos a que o mundo futuro possa ser melhor do que aquele em que estamos a viver neste momento.

Magazine.HD: Recuando um bocadinho às origens do Festival, de onde é que vem esta necessidade de criar um Festival de Animação?

Fernando Galrito: Eu acho que começa pelas várias necessidades. Nós tivemos a sorte de crescermos num meio cultural muito abundante e rico. E tivemos a sorte de começar não só a ver filmes de grandes mestres, que não eram os mestres do blockbuster, ou seja, os filmes que vêm do Canadá, da Europa de Leste, etc. mas também de muitos experimentalistas. Aos oito anos, eu comecei a fazer as minhas primeiras experiências riscadas diretamente no filme, na película. Não era nenhum Norman McLaren, mas pronto [risos]. Ou seja, é essa necessidade que nós fomos tendo ao longo da nossa vida e por termos crescido muito ligados ao cinema e ao cinema de animação, especialmente. O facto de termos essa sorte fez com que desde sempre nós tentássemos também partilhar com os outros o saber e, por isso, nós fazemos algumas dezenas de formações, não só em Portugal, mas pelo mundo fora. Ao longo de dezoito anos tivemos na Fundação Gulbenkian a coordenar o Centro de Imagem e Técnicas Narrativas, onde foi, durante algum tempo, quase um espaço único, pelo menos aqui na capital, onde se podia experimentar cinema de animação de uma forma mais autoral e, ao mesmo tempo, aprender a fazê-lo. Isto foi-nos formando para esta necessidade de partilhar com os outros e de mostrarmos aquilo que tivemos a sorte de ir vendo ao longo dos anos. Portanto, de alguma forma natural, no ano 2000 nasce a Monstra, numa cidade onde não havia festivais de cinema de animação. Não deixa de ser interessante que os dois primeiros festivais da cidade de Lisboa são festivais das franjas, digamos assim. E esta necessidade surge por isto.

Nós já fazíamos muitas coisas um pouco ao longo do país e já fazíamos muitas coisas em que criávamos diálogos entre artes. Aliás, o Festival quando surge é feito por mim e mais quatro amigos muito heterogéneos. Havia um antropólogo, havia uma professora, havia um membro da Gulbenkian, havia um artista plástico, essencialmente escultor. É este grupo heterogéneo, que fazia coisas de encontro entre as nossas artes, que decide fazer um Festival. E qual é a arte que mistura todas as artes e, ainda por cima, mais uma que é a arte do movimento? E aí começou o Festival juntando estes três pilares, que são as exposições, a formação e o cinema, mas também aquilo que são as transversalidades, o diálogo entre o cinema de animação e todas as outras artes, porque elas todas cabem e bebem do cinema de animação. muito. Hoje em dia não é uma novidade, mas cada vez mais qualquer coisa que nós vemos em movimento sobre um ecrã, não importa o tamanho, pode ser o do telemóvel ou o do cinema, eu digo que 90% dessas imagens têm uma incorporação do cinema de animação. Não há nenhum efeito especial que não seja animação. Não há nenhuma publicidade que não tenha um bocadinho de animação em cima, não é verdade? Naturalmente, que haverá documentários e filmes de imagem real onde praticamente a animação não existe. E se olharmos para os blockbusters vemos isso. São filmados num mês e depois levam dois anos a fazer a pós-produção, porque é o tal tempo de produção que o cinema de animação precisa e que é sempre maior que o da imagem real.

Magazine.HD: Para terminar, o Fernando falou que o Japão é o país convidado deste ano para a Monstra. Como é que se faz esta seleção do país que é convidado a participar no Festival de Animação?

Fernando Galrito: Portanto, esta é uma característica que vem desde o primeiro Festival. Em 2000, a Wikipédia começava a ser uma ferramenta muito utilizada e nós dizemos assim, nós não queremos fazer um ‘Festival Wikipédico’, queremos fazer um ‘Festival Enciclopédico’, onde vamos com profundidade ao fundo das questões. E então, anualmente, desde sempre, temos um país convidado, do qual fazemos uma profunda retrospectiva. E não lhe vou dizer nada de inverdade, muitas das retrospectivas que nós já fizemos de países, nunca no seu próprio país, ela tinham sido feitas como nós fizemos, com a profundidade e a quantidade com que foram apresentadas aqui no Festival. Tentamos que o país convidado tenha sempre alguma coisa a ver com as com a nossa história e com a história do cinema de animação. Naturalmente que o Japão fazia todo o sentido, no ano em que se comemoram 480 anos da chegada dos primeiros ocidentais à Costa Japonesa, que eram portugueses e eram marinheiros. E esse foi o mote para fazermos esta retrospectiva do Japão em 2023.

E fazemos com muito prazer, dado que, para além do grande cinema que toda a gente conhece, nós vamos ter a possibilidade também de partilhar de forma alargada muitos outros filmes que as pessoas nunca tiveram hipótese de ver até agora. E mesmo os filmes que as pessoas têm casa no DVD, ou que já viram numa numa plataforma qualquer online, há uma diferença entre vê-los num ecrã como os que temos em casa e  vê-los no ecrã de cinema. Portanto, mesmo os filmes que toda a gente já viu num pequeno ecrã, eu convidava-os para rever e para os ressentir de uma forma plena num grande ecrã, com um bom som envolvente, e numa sala escura, onde antes e depois nós podemos ter esse lado de poder discuti-lo com os nossos amigos, com quem viemos ver os filme ou com as outras pessoas que estavam na sala ou fora dela.

TEASER | A MONSTRA REGRESSA A 15 DE MARÇO DE 2023

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