Ice Merchants ©Cinemundo

Ice Merchants, em análise

“Ice Merchants” é o candidato nacional ao Óscar de Melhor Curta-metragem de Animação, sendo uma obra do cineasta João Gonzalez!

ICE MERCHANTS…ON THE ROCKS…!

Ice Merchants
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Um destes dias dei por mim a passar uma vista de olhos pela THE COMPLETE UNABRIDGED SUPER TRIVIA ENCYCLOPEDIA, escrita por Fred L. Worth, cuja primeira edição foi publicada pela Warner Books em Dezembro de 1978. Trata-se, ao contrário do que pensava, de uma compilação nada negligenciável de informações muito diversas sobre factos da mais diversa proveniência e, aparentemente, sem lugar reservado nos meandros da circunspecta roda mediática. O autor, ou quem concebeu a capa do livro, resumiu assim o conteúdo: “INSIDE! All the things you didn’t know you wanted to know, but will be delighted to discover.” (NO INTERIOR! Todas as coisas que não sabia que queria saber, mas vai ficar encantado por descobrir). De acordo com a dita publicação, entre mil e um exemplos, refere-se a frase “Me Tarzan, You Jane” como sendo aquela que nunca foi dita por Tarzan em nenhum dos seus filmes. E no entanto muitos de nós estamos convencidos que sim, que foi Johnny Weissmuller, no papel do pouco verbal homem macaco, que finalmente assim falou para uma sedutora e pouco vestida Maureen O’Sullivan, num assomo de romantismo digno de um bom selvagem nas vésperas de se enrolar com a sua amada nas lianas, pois sim, da selva africana Made in Hollywood, USA. Tudo no filme TARZAN, THE APE MAN, 1932, de W. S. Van Dyke. Mas, e esta sou eu que vos digo, querem outro exemplo das falsas percepções geradas pela simples e continuada repetição de uma convicção baseada no erro, uma ideia feita e não sustentada na verdade, ou de uma memória baseada numa visão superficial do que realmente aconteceu? Recordam seguramente a sequência magistral do reencontro de Ingrid Bergman e Humphrey Bogart no Rick’s Café de Casablanca. E se não recordam, porque não viram o CASABLANCA, 1944, realizado por Michael Curtiz, deviam chumbar por falta de comparência. Seja como for, para gerar o necessário e precioso conflito dramático entre dois ex-amantes que conheceram dias felizes em Paris, Ingrid Bergman, no papel de Ilsa, encontra primeiro o pianista Sam, interpretado por Dooley Wilson, e pede-lhe para interpretar de novo o “As Time Goes By”, canção que ficara como o selo maior de uma relação anterior com Rick. Segundo muitos, ela diz: “Play it again, Sam”. Mas não, nunca o disse. As suas palavras foram: “Play it once, Sam. For old time’s sake. Play it, Sam. Play “As Time Goes By”. Pergunta número um, de onde surgiu então o “again”? Neste caso, vá-se lá saber por que carga de água, ficou na memória o “again” do filme PLAY IT AGAIN, SAM (O GRANDE CONQUISTADOR), 1972, de Herbert Ross, em que  Woody Allen interpreta um neurótico obcecado pelo filme CASABLANCA e pela “imagem de marca” do Humphrey Bogart. Pergunta número dois, porque estou eu a lembrar estes factos, relativas curiosidades, ou como lhe queiram chamar? Para desvendar a resposta não deixem de ler os próximos parágrafos.

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Recentemente, ouvimos e lemos que ICE MERCHANTS, 2022, uma curta de animação realizada por João Gonzalez, foi nomeada para, no próximo dia 12 de Março (lá em Los Angeles, por cá já vai ser a 13), disputar o prémio maior na sua categoria atribuído pela Academy of Motion Pictures Arts and Sciences, ou seja, o cabeçudo mas sempre cobiçado Óscar da Academia. E não foram poucos os que lançaram foguetes, justificadíssimos, mas acompanhados por erros mais ou menos graves ou, enfim, falhas grosseiras de comunicação, a saber, que era o primeiro filme português a alcançar uma posição nas nomeações finais no contexto de uma cerimónia que vale o que vale mas que não podemos ignorar no contexto geral da indústria e da actividade cinematográfica internacional, não obstante a forte inclinação que se faz sentir para o lado americano da balança. Pois bem, senhoras e senhores, isso não é verdade…! Sem retirar um milímetro ao valor do belíssimo exercício de animação que podemos encontrar em ICE MERCHANTS e ao facto, esse sim inédito, de ser a primeira curta de animação, cofinanciada por Portugal, nomeada para a corrida final ao correspondente Óscar, preciso aqui e agora de lembrar que o primeiro filme, que pode e deve ser considerado com o estatuto de produção nacional a concorrer a esse galardão, na altura na categoria de Melhor Filme de Língua Estrangeira, foi a longa-metragem BELLE ÉPOQUE, 1992, realizado por Fernando Trueba e coproduzida pelo próprio, pela LOLA FILMS, pela FRENCH PRODUCTION e pela portuguesa ANIMATÓGRAFO, do recentemente falecido António da Cunha Telles. Mais, o filme foi rodado em Portugal (Arruda dos Vinhos, Azambuja, Sobral de Monte Agraço e Estremoz), embora isso não conte para a nacionalidade da produção, conta sim a dos produtores. Na equipa podemos igualmente encontrar muitos nomes portugueses. E, para os mais distraídos, aqui vai a notícia mais suculenta. Sim, BELLE ÉPOQUE recebeu o Óscar a 21 de Março de 1994, que vi nas mãos do António da Cunha Telles, quando a estatueta andou a fazer o périplo dos coprodutores de Espanha, França e Portugal. Espero que nunca mais ninguém se ponha a dizer asneiras, umas vezes desculpáveis por serem ditas e escritas por quem não se apresenta como especialista das coisas do cinema, mas outras reprováveis quando são proferidas por supostos especialistas. Não fica bem, não fica mesmo nada bem. Desculpa-se a ignorância, desde que não se persista no erro. Mas há limites para a preguiça de se publicarem notícias sem a devida verificação e pesquisa e, pior, para o marketing rafeiro…! Finalmente, lançar foguetes por sermos nomeados duas vezes, enquanto país, após noventa e cinco anos de Óscares (porque no plano pessoal houve já portugueses ou luso-descendentes nomeados e até vencedores, como Carlos de Mattos, que recebeu o “Technical Achievement Award”, em 1983, e o “Scientific and Engineering Award”, em 1986), devia era fazer-nos pensar no que isso significa e a exagerada importância que damos a certas manifestações. Penso mesmo, a partir do contacto directo com profissionais nos diversos mercados da sétima arte, que muitos dos que se dedicam a estas matérias nos meios de comunicação nacionais dão-lhes mais importância do que nos próprios Estados Unidos, onde a cerimónia audiovisual, mesmo em horário nobre, perde espectadores há já alguns anos.

DO ALTO DA MONTANHA, NUM DIA CLARO PODEMOS VER O FUTURO…!

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Dito isto, irei de seguida pedir a vossa atenção para a mais do que justificada apreciação de uma obra que se irá bater com uma forte concorrência mas que pode, e assim espero que aconteça, sair de Los Angeles e regressar a Lisboa com um Óscar na bagagem. Fica para um segundo artigo, uma análise das potencialidades desta curta face aos concorrentes na sua categoria. E aqui fica uma dica: não vai ser fácil vencer o que se perfila como potencial vencedor, THE BOY, THE MOLE, THE FOX AND THE HORSE, 2022, de Charlie Mackesy e Peter Bayton.

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Para já, ICE MERCHANTS apresenta alguns pontos a seu favor. 1. Não possui uma só linha de diálogo, mas aquilo que as personagens, pai e filho, comunicam entre si não precisa ser ouvido para ser compreendido, ou seja, estamos perante um projecto iminentemente visual, onde a componente musical sobressai de forma eficaz na conjugação com a mistura dos efeitos sonoros. 2. Possui um grafismo delineado a cores fortes que combina um lado esquemático dos ambientes e grandes espaços circundantes com uma linha mais precisa quando se refere aos seres humanos que naquela casa, literalmente suspensa na encosta de uma montanha, desenvolvem as suas rotinas diárias. Produzem gelo, para ser vendido muitos metros abaixo e na aldeia que eles olham como se fossem pássaros empoleirados numa plataforma onde estão isolados do mundo mas, por isso mesmo, mais próximos um do outro. Para lá chegarem usam paraquedas, e a descida assim realizada constitui uma viagem cujo retorno se faz de um outro modo, por meio de roldanas e pesos que os empurram para o alto, montados numa motorizada. 3. Estamos assim num mundo de percepção imediata a um primeiro olhar, um “preto e branco” colorido, que não precisa de grandes explicações nem grandes manifestações filosóficas da parte de quem vê e de quem o produziu, apesar do lado simbólico de certas actividades e mesmo até da repetição minimalista de algumas acções que podiam desmobilizar os que esperassem outros caminhos ficcionais. Se o espectador não for cativado por esta prática quotidiana do fabrico do gelo, pela ritmada economia da montagem e pelas sonoridades musicais que ajudam a estruturar os espaços vitais do adulto e da criança, nada o poderá demover. Mas duvido que isso aconteça aos que procurarem olhar com a devida atenção para o que se passa nos vertiginosos mas pausados minutos e segundos desta animação. 4. Não sou fã da palavra, mas podemos usar o conceito de mensagem dando-lhe aqui um subjacente sentido ecológico, relacionado com o fenómeno das alterações climáticas, que irá provocar o desenlace final em que mergulhamos literalmente no abismo e, desta vez, para experimentarmos uma autêntica abstracção da realidade e da Natureza que irá pontuar a narrativa até ao último plano. 5. Percebo o que leva muitos a ver com grande simpatia esta obra. Faz lembrar a mesma adesão que há uns anos mereceu o muito apreciado e igualmente premiado ESTÓRIA DO GATO E DA LUA, 1995, de Pedro Serrazina. “Estória” simples e directa no delinear da sua mensagem interior, mas complexa no capítulo da criação de emoções, na dialéctica entre realidade e poesia, o objectivo e o subjectivo, a luz do dia e o silêncio da noite. ICE MERCHANTS situa-se nesse patamar, o da vertigem do sonho. Se formos lá só pela razão, pelo concreto, não nos arrependemos mas perdemos metade do gozo que o seu visionamento mais livre proporciona. 6. Trata-se esta curta de uma coprodução entre o COLA – Colectivo Audiovisual (Portugal), a WILDSTREAM (França) e o já experiente nestas andanças ROYAL COLLEGE OF ART (Reino Unido). Foi, aliás, nesta última instituição que o filme nasceu em 2020 como projecto de licenciatura do realizador, e não só, João Gonzalez. Será isso suficiente para arrecadar um Óscar? Logo se vê…! Entretanto, saudemos a sua estreia em sala (prevista para 16 de Fevereiro de 2023) pela mão da distribuidora CINEMUNDO.

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Finalmente, recordo que o recentemente premiado O HOMEM DO LIXO, 2022, de Laura Gonçalves, Prémio para o Melhor Filme de Animação da Competição Internacional no Festival de Curtas-Metragens de Clermont-Ferrand, França, o maior e mais concorrido festival e mercado do género no mundo, chegou igualmente longe nas paragens californianas e foi a segunda produção com financiamento português a integrar e atravessar o limbo da short-list da Academia, penúltima etapa do percurso de candidatura que lhe permitia ser igualmente nomeado para o decisivo combate final. Deste filme voltaremos a falar num próximo artigo a publicar em breve, mais perto dos Óscares. Diga-se em abono da verdade que, para muitos profissionais e programadores de cinema nos quais me incluo, repito, sem qualquer demérito para as visíveis e louváveis qualidades do ICE MERCHANTS, o prémio de Clermont-Ferrand para O HOMEM DO LIXO pode ser considerado mais importante do ponto de vista da carreira e, muito, mas mesmo muito mais importante nos meandros do mercado global da curta-metragem, do que um Óscar atribuído por uma instituição que há anos ameaçou acabar com diversas categorias de nomeação, entre elas as destinadas a curtas-metragens.




Ice Merchants, em análise
Ice Merchants

Movie title: Ice Merchants

Director(s): João Gonzalez

Genre: Curta-Metragem, 2022, 14min

  • João Garção Borges - 80
80

Conclusão:

PRÓS: Todas as razões apontadas neste artigo.

CONTRA: Nada contra o filme. Todavia, já se me levantam dúvidas sobre o modelo de exibição que, salvo melhor informação ou decisão, prevê a estreia isolada do ICE MERCHANTS no circuito comercial em sala. Pode ser um lindo sonho húmido pensar que a mobilização dos espectadores se vai fazer para ir ver ao grande ecrã uma curta com 14 minutos e 29 segundos. Mas estes orgasmos, fruto de desejos e ambições legítimas, revelam-se geralmente secos e sem grandes consequências para as partes envolvidas. Não seria preferível reunir esta animação a um conjunto de outras com uma duração, mais minuto menos minuto, que rondasse as duas horas de uma sessão num contexto similar ao das longas-metragens? E estou só a pensar nas mais recentes obras inscritas no catálogo da AGÊNCIA DA CURTA METRAGEM que, desde há muitos anos, vem desenvolvendo um inestimável papel no domínio da promoção e distribuição de curtas no contexto nacional e internacional. Se ainda estivesse na RTP com o meu ONDA CURTA garanto-lhes que era o que faria, ou seja, os possíveis e os impossíveis para exibir, por exemplo, os candidatos que vão concorrer com o ICE MERCHANTS, inclusivamente alguns dos que não alcançaram as nomeações finais e que, nalguns casos, bem mereciam. Nem sequer esperava pelos Óscares. Mas posso estar enganado e a exibição em sala resultar em pleno. Se for o caso, ainda bem…!

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