'O Corno'. © Via Festival de San Sebastián

‘O Corno’ e ‘Un Amor’: Em San Sebastián as cineastas afirmam-se no cinema espanhol

A basca Jaione Camborda (‘O Corno’) e a catalã Isabel Coixet (Un Amor’), representaram ontem o cinema espanhol, nas candidaturas à Concha de Ouro, 2023, com duas histórias muito fortes e sensíveis, protagonizadas por mulheres, vítimas ou heroínas de si próprias.

‘O Corno’, a segunda longa metragem da realizadora basca radicada na Galiza, Jaione Camborda — co-produzida pela Bando à Parte, do produtor e realizador português Rodrigo Areias — aborda à primeira vista um tema bastante explorado no cinema: o tema da fuga ou melhor da fuga fora-da-lei. ‘O Corno’, entronca também naquilo que são as constantes referências estéticas do chamado Novo Cinema Galego (Oliver Laxe, Eloy Enciso, Alberto Gracia, Lois Patino, Angel Santos, Víctor Hugo Seoane, Xurxo Chirro), em que a paisagem é um dos protagonistas e de enquadrar as personagens nessa paisagem bruta, telúrica e sensorial, retirando-lhe o lado pitoresco, de região sub-desenvolvida, reconhecida infelizmente há décadas, por fenómenos como, o contrabando, tráfico de droga e prostituição fronteiriça. Este filme, transporta-nos assim para a Galiza dos anos 70, com uma carismática mulher-solteira de uma aldeia entre o campo e o mar, da Ilha de Arousa, na costa de Pontevedra, que é apanhadora de marisco, parteira e outras coisas, quando é preciso, como protagonista, a quem um dia as coisas correm mal e tem de fugir.

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Cinema espanhol
‘O Corno’. © Via Festival de San Sebastián

Filmado quase sempre de noite, mesmo nos interiores ou em tons cinzentos é um filme extraordinariamente bem fotografado pelo nosso compatriota Rui Poças, um dos directores de fotografia portugueses, mais requisitados da actualidade. Quanto, a esse estranho título ‘O Corno’, remete-nos para uns ‘corninhos pretos’, que crescem entre as espigas de centeio e que são utilizados de uma forma bastante obscura e com uma utilidade com efeitos proibitivos: os desmanchos ou abortos clandestinos, então proibidos por lei e causa de morte de muitas mulheres e jovens raparigas. Porém, desde a sequência inicial — um longo e bem filmado parto natural — que a realizadora parece querer deixar bem claro, que não é um filme apenas sobre uma fuga clandestina, são os corpos femininos, que sopram e agitam como o vento e como o mar da Galiza, o grande foco deste filme algo frágil mas belo, imerso de uma carnalidade, que vai muito mais além do erotismo. E quem melhor representa isso, é sem dúvida a sua protagonista a coreógrafa e bailarina Janet Novás, que se estreia de um a forma notável e brilhante como actriz, expressando-se através do corpo e de um tremendo olhar. Ela é o melhor do filme! 

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Em ‘Un amor’, a realizadora catalã Isabel Coixet (A Minha Vida Sem Mim) adaptou um romance, com o mesmo título, da escritora Sara Mesa — está editado em português pela Relógio de Água —, mais uma história no feminino, num filme protagonizado por Laia Costa (‘Victoria’), uma atriz e uma personagem que dir-se-ia, enquadra-se na perfeição no seu imaginário como realizadora. O filme em síntese é um retrato sobre a obsessão e os desejos femininos de uma mulher comum. Nat (Laia Costa) é uma tradutora que chegou recentemente a uma localidade na zona rural da Espanha.

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‘Un Amor’. © Via Festival de San Sebastián

Quer mudar de vida, mas tem de se adaptar a uma nova realidade de um meio pequeno e promíscuo, cercada por estranhos vizinhos, entre eles o perturbador Andreas (Hovik Keuchkerian), que se propõem a reparar-lhe o telhado da casa, em troca de algumas contrapartidas pessoais. Esta Nat é uma tradutora que precisa de curar as suas feridas, os seus traumas pessoais, resultado do seu trabalho esgotante com os refugiados. Mas o seu comportamento vai-se tornando cada vez mais desconcertante, a medida que vai ganhando alguma estabilidade.

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Também à medida que o drama vai avançando, o espectador vai sentindo uma certa inquietação, muito semelhante ao que imaginamos, que ela está a sentir, com tudo o que a rodeia. As personagens de Coixet, são normalmente mulheres que carregam pesados fardos do passado, de maus tratos pelos homens, medo, dor ou de tudo junto e que geram geralmente personagens tristes e pouco luminosas, que só são amados e compreendidos quando a cineasta as ilumina. A paisagem e a atmosfera de La Escapa, uma pequena vila sem charme localizada na árida Espanha rural é também uma imagem constante do cinema de Coixet. Ela é uma especialista em retratar aqueles ‘não-lugares’ remotos, isolados, dos quais sabe captar uma energia quase telúrica e onde as personagens parecem desligadas do mundo exterior, muitas vezes também de si próprias. Em ‘Un amor’, não há um único personagem que que se aproveite. Excepto talvez, um vizinho idoso, que cuida de sua esposa com Alzheimer e a veterinária da cidade. E depois há perturbado personagem do Andreas (Keuchkerian), carregado de um passado, que o torna mais empedernido, do que qualquer outro habitante daquela localidade, onde todos parecem esconder alguma coisa.

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‘Un Amor’. © Via Festival de San Sebastián

Reconhecemos sob o olhar de Coixet um artista de vitrais (Hugo Silva), um arrogante, pedante e sexista, uma ‘dondoca’ da cidade (Ingrid García-Jonsson), educadamente malvada e cínica, um abusivo senhorio (Luis Bermejo), que precisa de exercer sua pequena parcela de poder com as mulheres, sempre que tem oportunidade. Coixet consegue fazer com que, esta história e personagens não criados por ela — embora seja autora do roteiro junto com Laura Ferrero —, seja absolutamente reconhecível e típico de seu imaginário e dos seus filmes anteriores: todos os homens são uns cabrões! Desta vez, porém, o seu olhar é talvez menos lírico que o habitual e a paisagem seca e empoeirada, da vila, com as pedras da montanha em fundo, parecem dar mais sentido à narrativa e a estes personagens.

JVM, em San Sebastián

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