© Legendmain Filmes

O Que Vemos Quando Olhamos Para o Céu?, em análise

Lisa e Giorgi embarcam numa história de amor à primeira vista com “O Que Vemos Quando Olhamos Para o Céu?”, a nova obra cinematográfica de Aleksandre Koberidze.

NA TERRA COMO NO CÉU…!

O Que Vemos Quando Olhamos Para o Céu
© Legendmain Filmes

Título de conotações religiosas? Não, não pensem que me deu alguma crise mística ou que venho agora descrever o resultado de alguma epifania cinéfila. Não, nem por sombras. O que realmente aconteceu foi sair de um recente visionamento com uma sensação algo estranha, um sentimento a meio caminho entre o entusiasmo de quem gosta das matérias cinematograficamente manipuladas de forma vincadamente criativa, e um outro que vai crescendo ao longo de quase duas horas e meia de cinema e que gera, sequência após sequência, uma certa resistência face ao processo de estruturação narrativa que na franca valorização do olhar subjectivo acaba por desviar o olhar objectivo do espectador para aspectos exteriores aos que podiam e deviam ser os principais focos da sua atenção: a história dos encontros e desencontros entre um rapaz e uma rapariga servida por um argumento que nos mergulha numa atmosfera com um não sei quê de mágico e que combina doses generosas de realismo e fantasia, o “era uma vez” da nossa inocência infantil que muitos adultos gostam de recordar. Estou a falar de um filme experimental, que provoca igualmente uma inegável e saudável experiência pessoal, intitulado RAS VKHEDAVT, RODESAC CAS VUKUREBT? (O QUE VEMOS QUANDO OLHAMOS PARA O CÉU?), co-produção entre a Alemanha e a Geórgia, realizada por Aleksandre Koberidze. Escusado será dizer que estamos aqui no domínio da produção de autor que exige uma disponibilidade muito para além da nossa zona de conforto intelectual e das nossas referências culturais. Projecto inserido nos circuitos alternativos que há uns anos designaríamos de forma combativa por Circuito de Arte e Ensaio e que, contra a corrente dominante, acabava por estrear e valorizar filmes com maior ou menor impacto e sucesso por esse mundo fora. Digamos, uma marca de exigência a que a atribuição do Prémio FIPRESCI (Federação Internacional da Imprensa Cinematográfica), como sucedeu a esta obra no Festival de Berlim de 2021, acrescentava um valor suplementar. Filmes como este, passados os anos gloriosos do combate pela diferença no circuito comercial em sala, jogam hoje as suas cartas no campeonato da diferença que ainda faz a sua estreia no grande ecrã e na pitada de exotismo geográfico, cultural e até linguístico capaz de seduzir os que ousam, e bem, navegar por mares cada vez menos navegados. Muitas vezes os cantos de sereia dos seus mentores seduzem primeiro os programadores dos múltiplos festivais de cinema onde esperam notoriedade através da exposição ao cosmopolitismo cinéfilo, e após esse circuito ficam reduzidos ao mercado dos supermercados da cultura ou aos canais especializados, quer nas redes de cabo quer nas plataformas de streaming. Este moderno paradigma de reconhecimento das obras fílmicas está patente, voluntária ou involuntariamente, na atitude de muitos produtores, distribuidores, exibidores e naturalmente segmentos do público que aceitam passivamente esta realidade, mesmo os que estão mais atentos a propostas diferentes para os nichos de mercado de um circuito comercial muito condicionado pela grande indústria, sobretudo norte-americana, a que encara os seus “produtos” como mercadoria passageira e até descartável. E é pena que assim seja porque, para nos concentrarmos apenas no caso presente e na influência dos pergaminhos históricos que sentimos incidir na base conceptual de O QUE VEMOS QUANDO OLHAMOS PARA O CÉU?, penso ser importante referir que da República da Geórgia, quer no passado soviético quer nos meios caminhos do presente, vieram bons e mesmo excelentes exemplos de cinema com C grande que se inscrevem, sem qualquer favor, no livro de ouro da História Mundial da Sétima Arte. Podemos dizer que a herança desse passado pesou na formação pessoal e profissional de Aleksandre Koberidze. Basta lembrar a cristalina memória de nomes como Tengiz Abuladze e Rezo Chkheidze, que em 1956 receberiam a Palma de Ouro no Festival de Cannes por O BURRO DE MAGDANA (1955). Para já não falar de Mikhail Kalatozov, realizador de mais uma Palma de Ouro em Cannes, o QUANDO PASSAM AS CEGONHAS (1957), ou Otar Iosseliani, se bem que este último seja mais conhecido pelos frutos da sua carreira internacional. Mas sobretudo, diria mesmo, acima de qualquer dos seus compatriotas, o genial Sergei Paradjanov, georgiano de origem arménia. Realizador do magnífico SAYAT NOVA (1969), A LENDA DA FORTALEZA DE SURAMI (1984), ASHIK KERIB (1988), entre outras obras-primas de grande fulgor plástico. Um cineasta único, um poeta e um visionário que ousou quebrar os laços com os espartilhos da linguagem de um certo realismo dito socialista, um gigante que soube como poucos recuperar o património histórico e lendário dos países e culturas que mais amou e a que pertencia, integrando-o na sua arte e no seu modo de encarar a vida. Um homem e um mestre com quem estabeleci fortes laços de amizade, interrompidos apenas pela sua morte no início dos anos 90.

Lê Também:   A Mão de Deus, em análise
O Que Vemos Quando Olhamos Para o Céu
© Legendmain Filmes

Mas afinal que propostas encontramos num filme como O QUE VEMOS QUANDO OLHAMOS PARA O CÉU? Desde logo uma proposta estética. Aleksandre Koberidze, com o seu Director de Fotografia, Faraz Fesharaki, usa uma paleta cromática onde sobressaem as cores de um país e de uma antiga cidade, Kutaisi, como se a luz velada de um Verão frio contaminasse o espaço material habitado por homens e mulheres nas suas mais diversas actividades, incluindo a luz reflectida no corpo e pele dos actores deste moderno conto de fadas, onde não faltam ressonâncias etnográficas do passado. De uma forma sistemática, a composição das personagens faz-se no confronto das escalas de cada plano. Um rosto em grande plano pode dar lugar a um plano de conjunto de uma janela para o exterior onde se percebe uma paisagem que sugere um plano geral que está para vir. Há uma procura deliberada da fragmentação no interior do plano. Há igualmente a concentração da posição ocupada nele pelo actor, quando se quer polarizar a sua importância no fluir narrativo. Em suma, há mil e um caminhos que o espectador será convidado a desbravar, para isso servindo-se da informação visual que a partir de um pormenor ou de um movimento possa levá-lo a uma leitura mais fina da acção. Logo ao início podemos constatar um bom exemplo de como, sem mostrar mais do que a parte inferior das pernas e os movimentos para cá e para lá dos protagonistas, rapaz e rapariga, Lisa (Oliko Barbakadze) e Giorgi (Giorgi Ambroladze), o choque dos corpos e a queda de um livro provocam um então provável e futuro encontro. Marcado o encontro, ao anoitecer a mágica articulação das forças naturais e não humanas, objectos, plantas e o vento que parece bloqueado por forças magnéticas, irão prevalecer como uma espécie de feitiço na posterior inversão do curso normal da existência e do devir daqueles dois jovens. Lisa e Giorgi mudam de corpo e de fisionomia, mas sem esquecerem o local combinado para lá convergem. Mas agora não se reconhecem e, por causa deste efeito dramático e visual, a relação que se anunciava promissora vai sendo adiada, provocando outros e mais misteriosos conflitos, alguns dos quais associados a soluções para desfazer o mau-olhado que os impede de assumir em pleno a potencial história inicial que fica assim subjacente, a história da relação sentimental.

Lê Também:   Petite Maman - Mamã Pequenina, em análise

Num plano complementar da proposta estética, encontramos a proposta musical que pontua de forma magistral as sequências e a progressão dos acontecimentos que acompanhamos através de composições imagéticas, atmosferas visuais, que se encadeiam ao som de atmosferas acústicas inseridas com grande eficácia emocional nas linhas de força da acção. Deste modo, seguimos os pormenores do dia-a-dia, o ciclo de vida da cidade, as emoções e os anseios das pessoas que nela circulam, os ritmos de maior ou menor intensidade que formatam as suas paixões, nomeadamente pelo futebol e, por incrível que nos possa parecer, pela sorte da selecção argentina no campeonato do mundo, ou seja, uma selecção do outro lado do mundo. Sem esquecer o modo como o realizador nos propõe um olhar muito especial sobre o mundo cão, o mundo dos cães “sábios” no melhor sentido metafísico da palavra. Destaque ainda para os actores, principais ou secundários, que correspondem com precisão ao modelo de representação proposto pelo realizador.

Lê Também:   Lunana: A Yak in the Classroom, em análise
O Que Vemos Quando Olhamos Para o Céu
© Legendmain Filmes

Repito, não será o filme mais fácil em exibição, mas vale a pena dar-lhe uma oportunidade no grande ecrã antes de viajar para um qualquer canal por cabo ou para uma plataforma de streaming. Este filme é para ser visto numa sala, os seus planos podem ser apreciados como quadros de uma galeria dinâmica e de vanguarda, e qualquer redução do seu jogo de escalas, sem o matar, reduz o impacto visual e ficcional desejado pelo argumentista e realizador, um autor a seguir nos próximos anos. Por fim, qual a resposta a uma pergunta como O QUE VEMOS QUANDO OLHAMOS PARA O CÉU? Não sei. Não há uma única resposta, como nunca houve uma resposta óbvia para essa outra pergunta, O QUE VEMOS QUANDO OLHAMOS PARA UM FILME? Na melhor das hipóteses, depende da singularidade do olhar de quem o vê…!

O Que Vemos Quando Olhamos Para o Céu?, em análise
O Que Vemos Quando Olhamos Para o Céu cartaz

Movie title: Ras vkhedavt, rodesac cas vukurebt?

Date published: 31 de March de 2022

Director(s): Aleksandre Koberidze, ,

Actor(s): Giorgi Ambroladze, Oliko Barbakadze, Giorgi Bochorishvili, Irina Chelidze

  • João Garção Borges - 60
60

Conclusão:

PRÓS: Para além da coragem da proposta estética e ficcional do realizador, que assina igualmente o argumento, nota alta para a Direcção de Fotografia e a excelente, quase hipnótica, banda sonora musical.

CONTRA: Exige do espectador uma disponibilidade, até diria cumplicidade, que nem sempre se mostra compatível com o apelo concorrencial exercido por outras produções em cartaz, incluindo as situadas no campo do chamado cinema de autor.

Sending
User Review
0 (0 votes)

Leave a Reply