"O Rapaz e a Garça" | ©Outsider Films/ Studio Ghibli

O Rapaz e a Garça, a Crítica: Miyazaki continua a brindar-nos com o seu profundo humanismo

Um dos criadores mais consagrados dos séculos XX/XXI, e a referência máxima do cinema de animação japonês, Hayao Miyazaki, fundou os Estúdios Ghibli em 1985, de mãos dadas com o grande realizador Isao Takahata (1935-2018), o seu mentor e companheiro de aventuras. Ao seu lado estava também Toshi Suzuki, produtor das suas obras que se mantém junto de Miyazaki ao longo de todos estes anos. Em 2023, e depois de uma reforma anunciada por várias vezes, e que há 10 anos atrás parecia certa, eis que Miyazaki regressou com “O Rapaz e a Garça”. E ainda bem que assim foi. 

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No trabalho do Studio Ghibli reconhecemos um valor imperturbável: a sua constância. Em 38 anos, de momentos de maior e menos produção, o estúdio, atualmente com uma atividade bem mais reduzida, trouxe-nos algumas das obras mais significativas do anime sem nunca apressar a sua produção e dando primazia à qualidade.Aquando da sua fundação trouxe-nos logo o belo “Laputa – Castle in the Sky/ O Castelo no Céu (1986), a interpretação de Miyazaki de uma das ilhas mencionadas em “As Viagens de Gulliver” e logo no ano seguinte entregou-nos uma double bill suprema: “O Meu Vizinho Totoro” de Miyazaki e “O Túmulo dos Pirilampos”, a obra-prima pacifista do seu mentor Isao Takahata.

Mononoke-Hime
“A Princesa Mononoke “(1997) |© Studio Ghibli

Desde os tempos em que trabalharam juntos na série seminal “Heidi e Marco” (1976), que Takahata e Miyazaki passaram as suas vidas a aperfeiçoar uma bela arte visual e a sua ligação a temáticas como pacifismo, ecologia e a busca incessante pela bondade humana. Incorporaram também na sua arte a interpretação e reapresentação de muitos dos mitos fundadores do Japão, através de uma projeção de elementos vindos tanto da história como das lendas do Japão. Esta fusão é muito evidente em filmes como “Mononoke Hime/ A Princesa Mononoke” (Miyazaki, 1997) ou “A Viagem de Chihiro” (2001), o filme mais conhecido e lucrativo do Estúdio.




Em 2013, tanto Takahata como Miyazaki anunciaram a sua reforma (o 2º. já tinha ameaçado previamente) e lançaram em conjunto duas obras belíssimas: “O Conto da Princesa Kaguya“, uma história onde Takahata expandiu os limites da sua animação para novos patamares; e “As Asas do Vento“, uma biografia onde Miyazaki levou a sua animação para um reino mais realista, ligeiramente pessimista e livre da fantasia constante (fundada em ameaças e questões bem reais) que caracterizara o seu trabalho até então.

E se o grande talento de Isao Takahata acabaria por se perder em 2018, Miyazaki depressa acabou por anunciar que “As Asas do Vento”, uma reflexão acerca do temível peso da guerra contrabalançada pela encantada paixão pelas máquinas de voo que o acompanhou ao longo de toda a vida, não seria o seu último filme.

O Rapaz e a Garça (2023)
“O Rapaz e a Garça” | ©Outsider Films/ STUDIO GHIBLITOHO COMPANY

Quase uma década depois, todos ganhamos com o facto de Hayao Miyazaki ter continuado a aprofundar a sua arte, lançando aos 82 anos a sua 12ª. longa-metragem. Numa carreira tão longa, 12 filmes sabem a ‘pouco’. Mas o mestre do cinema japonês é um perfecionista e emprega um elevado nível de detalhe nas obras que edifica. E não fosse, para mais, a arte da animação particularmente complexa e laboriosa, não podíamos esperar outra coisa do grande autor senão uma grande atenção ao objecto fílmico final.

Cada vez mais desencantado com o mundo, Miyazaki anunciou uma vez mais a sua reforma e, num gesto audaz, lançou no Japão este filme sem qualquer promoção. Ao cineasta pouco interessam grandes aberturas nas salas. “O Rapaz e a Garça” (em japonês “Kimitachi wa Dō Ikiru ka”) que volta a reunir a equipa magia Miyazaki, Suzuki e Joe Hisaishi na música (72 anos, autor, entre muitas outras, da grande Merry-Go-Round of Life de “Howl’s Moving Castle/ “O Castelo Andante”), carrega consigo uma mensagem clara: a sinceridade é a única forma de avançar no mundo e a vida só pode ser conduzida com honestidade e transparência.




Filme que abriu o TIFF no presente ano e que vimos em San Sebastián, “The Boy and the Heron” baseia-se na obra publicada por Genzaburo Yoshino em 1937, mas como é aliás habitual nas adaptações conduzidas por Miyazaki, não se trata de uma interpretação colada ao original. O livro é antes uma rampa de lançamento para que o autor possa criar uma representação  autobiográfica do mundo. Uma vez mais, o veículo escolhido para esta exploração da sua própria consciência é a fantasia.

Aqui, o nosso herói volta a ser uma criança que se vê desprovida de figura maternal (como Chihiro, Sophie ou Kiki), o jovem Mahito, de 11 anos, que durante a Guerra, e após a morte da mãe num incêndio é obrigado a deixar Tóquio e mudar-se, com o seu pai e a nova esposa, para uma antiga mansão de família. Aqui, cruza-se com uma garça que começa a agir como seu guia, um guia pouco confiável e que lhe mostra os vários mundos que se escondem na mística torre existente na sua propriedade.

A Garça que tanto revela sobre o comportamento humano | ©Outsider Films/ Studio Ghibli

As aventuras representadas em “O Rapaz e a Garça” são densas, belas, complexas, resistem à interpretação fácil e à categorização. O filme transporta-nos de volta para universos onde Miyazaki expressa temáticas pesadas e muito sérias através de mundos fantásticos, mantendo constante parte do pessimismo que havíamos já observado em “As Asas do Vento”. Todavia, a esperança nunca o abandona.

Vários motivos recorrentes na obra do autor regressam: da ênfase na importância do equilíbrio nos ecossistemas, à construção de um Bildungsroman (história de crescimento pessoal) com uma criança imatura que compreende melhor o mundo depois das suas peripécias e encontros formativos. Aqui, o submundo da casa é um lugar rico, onde encontramos um espelho do mundo real, mas também um refúgio do mesmo.

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Embora as ideias de “Kimitachi wa Dō Ikiru ka” sejam, por vezes, demasiado dispersas e múltiplas para que esta possa ser considerada a obra máxima do Mestre, sem dúvida este filme é um dos seus mais ambiciosos. Como é habitual, o argumento vê-se povoado por inúmeras frases cativantes que ameaçam ressoar para sempre nas nossas mentes, como “És uma pessoa sincera, por isso tresandas a morte”.




Para ávidos consumidores dos filmes do realizador japonês, é fácil encontrar nesta fita inúmeros temas já explorados, muitos deles irremediavelmente grudados à própria experiência do autor. Em criança, a tuberculose da sua mãe, Yoshiko, provocou uma separação abrupta durante a sua infância. O tempo passado por esta no sanatório moldou Miayazaki e os seus pequenos grandes heróis, que navegam o mundo em busca de mentores.

The Boy and the Heron Miyazaki 2023
As fortes figuras femininas de Miyazaki |©Outsider Films/ Studio Ghibli

Yoshiko era também conhecida por ser uma mulher forte, altamente intelectualizada e que questionava normas sociais. Uma vez mais, em “O Rapaz e a Garça” Miyazaki cerca-nos de presenças femininas determinadas, cuidadoras, nunca ingénuas, e munidas de elevada capacidade percetiva – da figura da tia às avozinhas que acompanham e educam o pequeno Mahito.

O pai de Mahito, negociante no ramo das aeronaves de guerra, partilha a profissão com o pai de Miyazaki, que muito lucrou com o esforços bélicos durante a Segunda Guerra Mundial. Hoje, como octogenário, é belo e atormentador observar como o autor continua a tentar expiar a sua culpa, a sua responsabilidade. Fê-lo magistralmente em “As Asas do Vento”, e não voltou a falhar neste campo com “O Rapaz e a Garça”.

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Na dianteira volta também a estar a sua busca pelo equilíbrio dos ecossistemas e a sua deferência no que diz respeito aos Kamis (deuses) japoneses. De forma bem gráfica e assombrosa, Miayzaki continua neste filme a expressar um forte pesar pelas consequências nefastas da industrialização, da guerra e das temíveis bombas atómicas.

Sem pesquisa adicional, é difícil tecer conclusões inequívocas sobre a significação específica do solar mágico de Mahito ou acerca da torre-portal que “caiu no céu antes da restauração Meiji” (um período de profunda transformação no Japão, em finais do século XIX). Todavia, o belo tratado sobre luto, despedidas e vontade de viver que aqui se desenha está, como é habitual com Miyazaki, embrenhado numa vivência particularmente japonesa.




Uma vivência japonesa que rejeita a sombra do fascismo (a personificação regressa, como no por vezes esquecido mas excelente “Porco Rosso”) que assombrou uma parte recorrente da vida do autor. Uma vez mais, a forte crítica imperialista é muito visível, com o teatro de guerra a ser desmascarado e com as suas figuras bélicas debilitadas. Com uma temporalidade não linear e vários mundos simultâneos e portais, “O Rapaz e a Garça” recicla algumas ideias (e até algumas imagens, com um frame perigosamente semelhante) que já havíamos visto em “O Castelo Andante”. Todavia, a maior densidade de enredo da obra de 2023 permite perdoar um pouco mais esta ‘falha’.

Miyazaki é o Mestre da Torre | The Boy and the Heron
Miyazaki é o Mestre da Torre | ©Outsider Films/ Studio Ghibli

Com “O Rapaz e a Garça”, sentimos uma verdadeira despedida por parte de Hayao Miyazaki (o Mestre da Torre não tem mais tempo, mas tem muitas mensagens e imagens belas a partilhar com o mundo). Se tal for verdade, agradecemos a sua arte verdadeiramente incomparável. Caso contrário, cá estaremos a aguardar mais histórias de uma beleza estonteante, criadas com um cuidado e um vagar ausentes nos dias de hoje.

“O Rapaz e a Garça” (“Kimitachi wa dô ikiru ka”) encontra-se presentemente em exibição em perto de 40 salas de norte a sul do país. Recomendamos vivamente a sua descoberta no grande ecrã!

TRAILER | O RAPAZ E A GARÇA (2023), NOS CINEMAS

O Rapaz e a Garça, em análise
O Rapaz e a Garça Poster

Movie title: O Rapaz e a Garça

Movie description: Depois de perder a sua mãe num incêndio, Mahito, um jovem rapaz de 11 anos, é obrigado a deixar a cidade de Tóquio para voltar para a aldeia onde cresceu. Ele instala-se com o seu pai numa velha mansão situada numa imensa propriedade onde ele se cruza com uma garça que aos poucos se torna a sua guia e o ajuda nas suas descobertas e questionamentos para compreender o mundo ao seu redor e desvendar os mistérios da vida.

Date published: 18 de November de 2023

Country: Japão

Duration: 124'

Author: HAYAO MIYAZAKI

Director(s): HAYAO MIYAZAKI

Actor(s): Soma Santoki, Masaki Suda, Aimyon

Genre: Animação, Fantasia

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  • Maggie Silva - 90
90

CONCLUSÃO

O grande Mestre da animação japonesa, Hayao Miayzaki, não conseguiria nunca destruir o seu legado, embora o produtor Toshio Suzuki tenha defendido a obra prévia como ponto final. “O Rapaz e a Garça” esteve em produção durante largos anos, com o autor a vagarosamente criar esta sua suposta última obra. As temáticas encontradas e os motivos fantásticos têm fortes ecos do que veio antes na sua filmografia, mas a beleza avassaladora das suas aventuras permanece intacta e incomparável.

Pros

Hayao Miyazaki trouxe-nos mais uma das suas odisseias, mais um dos seus coming of ages, mais uma das suas biografias fantásticas, mais uma das suas incursões por mundos intelectualmente ricos.

“O Rapaz e a Garça” será visto e estudado durante muito tempo. Nada se fica apenas pela superfície e há mesmo muita transcendência a compreender e explorar, mas também muitas emoções inebriantes às quais nos podemos entregar. Quão raro é este equilíbrio? Quão rara é animação assim tão cuidada e desafiante?

Cons

Sem dúvida, ao ver “O Rapaz e a Garça” compreendemos que o seu processo de produção não foi sempre harmónico. Há muitas ideias, tantas ideas que por vezes a coesão parece ficar um pouco comprometida.

Há também ideas que já tínhamos visto, apresentadas de forma algo similar, noutras obras do autor. As arestas não foram limadas, é certo, mas tal também contribui para o encanto da longa metragem. Um turbilhão de sentimentos e reflexões!

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