Os Cinco Diabos, em análise

Bruxaria e paixão, passado e presente, odores e chamas cruzam-se na mais recente longa-metragem da realizadora Léa Mysius – “Os Cinco Diabos,” também conhecido como “Les cinq diables” no original. O filme estreou no Festival de Cannes de 2022, onde fez parte da competição pela Queer Palm. Entretanto, fez o circuito dos festivais, levando seu conto curioso pelos quatro cantos do mundo, antes de agora nos chegar aos cinemas portugueses, abençoando-nos com um novo sonho em celuloide que, nos Prémios César deste ano, arrecadou nomeação para Guillaume Marien, pelos seus efeitos especiais.

Ainda o ecrã está escuro, créditos escritos em luz sobre sombra, quando uma onda de som nos assalta os sentidos. A música de Florencia di Concilio cresce, atónita, enquanto labaredas lambem gritos distorcidos. Quando imagem finalmente se manifesta por cima do som, não obtemos nenhum contexto maior. Há chamas, decerto, um grupo de mulheres perante um incêndio imenso, roupas a brilhar com lantejoulas quando a mais alta no grupo se vira e revela a cara para a câmara. Ela é Adèle Exarchopoulos, feita famosa por “A Vida de Adèle” e tornada numa das mais interessantes atrizes francesas da sua geração

Aqui, seu papel será o de Joanne Soler, mas, antes de a conhecermos, a visão fogosa revela-se sonho – ou será memória emprestada? Ou premonição encantada? Quem a vê no sono é Vicky, menina de oito anos e filha daquela quem nos mostrou a cara nas chamas. Na companhia de Joanne, ela passa do fogo onírico para a piscina, um jogo de elementos que, mais tarde, irá completar o quarteto com terra e ar. Perto da água carregada de cloro, a adulta faz instrução às aeróbicas submersas, enquanto a menina imita os seus movimentos em terra firme. É como uma dança, uma invocação, um feitiço quotidiano que chama cores capazes de cegar.

os cinco diabos critica
© Nitrato Filmes

No sonho dominaram os laranjas brilhantes, amarelo que queima e vermelho tombando na noite escura, mas a piscina é reino de azuis intensos. Vêm eles da água e do azulejo, uma língua pintada por chupa-chupa e a própria qualidade do ar. Entre as montanhas alpinas, onde Joanne faz os seus treinos rotineiros de natação, a qualidade cromática da atmosfera mantem-se, capturada num celuloide granuloso que faz a realidade parecer irreal. Em cenário idílico perscrutamos a paz, mas também encontramos as primeiras indicações de que nem tudo é o que parece. A vida de Vicky não é idílio ou pesadelo corriqueiro – ela é especial.




Em primeira análise, a etnia da rapariga salta à vista pelo contraste com a progenitora alva. De facto, a menina preta sofre bullying na escola, apelidada de piaçaba por colegas cruéis em referência à nuvem de caracóis que lhe coroa a cabeça. A câmara ama essa cabeleira, enquadrando-a do mesmo jeito que faria à tiara de uma princesa de conto-de-fadas ou, quiçá, o chapéu pontiagudo de uma bruxa boa. Essa segunda descrição sabe mais a verdade quando consideramos os dotes mágicos da moça que tudo consegue cheirar com o seu nariz. Em certa ocasião, até parece que o olfato consegue caçar a memória presa, pungente, em objetos.

Lê Também:   50 filmes LGBTQ+ que marcaram a História do Cinema

O realismo mágico desenrola-se ainda mais na direção da fantasia quando Julia, a tia paterna de Vicky, aparece um dia, procurando guarida no lar do casal cujo casamento há muito virou celibato sem paixão. Em coscuvilhice infantil, a nossa estranha heroína descobrirá novo poder, usando o nariz prodigioso para se transportar até cena antiga, anos antes do seu nascimento. São as origens da relação de Joanne com o marido e a cunhada, uma história de amor queer estilhaçado por trauma, racismos na comunidade e um cheirinho de folia. Ninguém vê Vicky nestas viagens, excetuando a tia que vira louca aos olhos dos demais por reagir a uma menina misteriosa que mais ninguém perceciona. A intromissão do presente no passado deixa marcas.

Mysius utiliza esta narrativa insólita de “Os Cinco Diabos” para delinear um poema de temos rimados sobre as dinâmicas de filhos e pais que nunca se conhecem totalmente, o entendimento toldado pelo mistério de experiências distintas. Vicky encontra-se a si mesma na pesquisa da memória materna, e, através dos seus olhos, vamos decifrando alguns dos mistérios de Joanne, não fosse uma das imagens mais memoráveis do filme a mãe distorcida pelos óculos caleidoscópio da rapariga. Outros tantos mistérios se levantam nesse mesmo gesto, a mulher mais velha um constante enigma aos olhos da sua filha. Numa vertente mais complicada ainda, a meninice de Vicky contorce o conto, moldando-o em estilo de bildungsroman com bruxaria pelo meio, brincadeiras de crianças com resultados sobrenaturais.

os cinco diabos critica

O amor descoberto entre Joanne e Julia ainda vem despertar aqueles ciúmes típicos da mente imatura, as inseguranças da nossa feiticeira diminuta levando-a a questionar quem é que tem maior lugar no coração da mãe. “Amas a Julia mais que a mim? Amavas-me antes de eu existir?” são as questões que ardem no âmago da menina antes da chama real aparecer. Em parte, elas devêm da dor de quem se reconhece fardo na vida daqueles que mais ama, um paradoxo no qual a filha é a personificação de todo um futuro perdido e um milagre muito querido também. O mundo dos adultos não é feito para os olhos de crianças.

Em igual modo, poderíamos dizer que histórias centradas no cheiro não são territórios a explorar pela sétima arte. Contudo, Mysius usa os engenhos específicos do cinema para sugerir aquilo que o ecrã não trespassa, sons e imagens invocando outros sentidos. Trata-se de uma proposta formalista em passo dançante com a história inortodoxa, dependendo muito do trabalho de Paul Guilhaume enquanto coargumentista e diretor de fotografia. Lógica e razão são exorcizadas, sacrificadas perante um altar mágico, um rito em nome da arte sensorial acima de tudo o resto. A emoção também vinga, ancorada na prestação do elenco.

Há que aplaudir o trabalho da pequena Sally Dramé, um sonho de interpretação infantil, capaz de traduzir os conceitos mirabolantes destes “Cinco Diabos” numa personalidade inortodoxa, mas sempre credível. Contudo, o filme pertence a Exarchopoulos, sua fisicalidade em plenitude atlética, articulada para diferenciar passado e presente sem recorrer a cosméticas gritantes. A linguagem do corpo espanta, mas nada se compara ao assombro daquela lágrima furiosa que resvala sobre uma bochecha rubra, perdida no píncaro da bebedeira. Essa cena ébria é o ponto alto da fita, quando “Os Cinco Diabos” atinge o ponto máximo das suas colisões temporais, desnudando-se do sobrenatural para confrontar a magia de almas perdidas agarrando-se uma à outra, como que na súplica pela salvação. No fim, será o passado que atormenta o presente e não o contrário. É um assombro quotidiano tanto na cosmologia mágica da fita como na realidade que existe além da tela, da metáfora.




Os Cinco Diabos, em análise
Os Cinco Diabos

Movie title: Les cinq diables

Date published: 6 de July de 2023

Director(s): Léa Mysius

Actor(s): Adèle Exarchopoulos, Sally Dramé, Swala Emati, Moustapha Mbengue, Daphne Patakia, Patrick Bouchitey

Genre: Drama, Fantasia, Romance, 2022, 103 min.

  • Cláudio Alves - 75
75

CONCLUSÃO:

Uma mãe que foge ao nariz da filha, uma colecionadora de odores virada exploradora atemporal por vias olfativas, um passado complicado cujas cicatrizes se mantém dolorosas no presente – assim se desenha o mundo de “Os Cinco Diabos.” O novo filme de Léa Mysius desenrola uma história de amor no mesmo gesto que considera os limites do conhecimento entre pais e filhos. O realismo mágico permite dar asas à imaginação, enquanto uma equipa de colaboradores sublime ajuda o filme a sobrevoar por cima de alguns apontamentos subdesenvolvidos e personagens pouco esboçadas. Só a junção de sonoplastia e paleta cromática seria suficiente para fazer da fita visionamento obrigatório.

O MELHOR: A fotografia híper-colorida de Guilhaume e o trabalho de Exarchopoulos no papel materno, mais uma prestação espetacular de uma das grandes atrizes francesas do momento. Há ainda que referir a cena de karaoke, um dos grandes momentos do ano cinematográfico.

O PIOR: Denota-se uma falta de aprofundamento no que se refere às tensões raciais em que o argumento toca, histórias de imigrantes senegaleses numa nação relutante em aceitá-los. Contudo, o grande pecado será a inserção de subenredos anémicos como um romance entre o pai de Vicky e a colega queimada de Joanne. Faz sentido intelectual neste mural de futuros perdidos tentando recuperar-se no presente. Emocionalmente, é o som da agulha do gira-discos arranhando o vinil – uma falha dissonante que irrita ao invés de comover.

CA

Sending
User Review
5 (1 vote)
Comments Rating 0 (0 reviews)

Também do teu Interesse:


Leave a Reply

Sending