Ao Sol de Satanás, em análise
A Leopardo Filmes relembra “Ao Sol de Satanás”, mais uma obra do aclamado cineasta Maurice Pialat!
Norte de França, 1926. Uma aldeia da região de Artois. Interior, dia. Dois sacerdotes, um sentado perto de uma janela, o abade Donissan (Gérard Dépardieu), e o outro, o deão Menou-Segrais (Maurice Pialat). Este, de pé e com uma navalha na mão, rapa parte do cabelo do primeiro de forma a obter a coroa clerical, mais do que um símbolo uma preparação do eclesiástico para as ordens, ritual introduzido por volta do século quinto ou sexto e que, na altura em que decorre a acção do filme, permanecia como um requisito da igreja católica. Mas, mais importante do que as imagens, que nos dão a clara dimensão da relação entre ambos, sobretudo ao nível da respectiva hierarquia, fundamental será ouvir o diálogo que se estabelece, com especial destaque para as palavras da personagem interpretada pelo jovem Gérard Dépardieu. Diz ele: “Quando estou consigo, tudo me parece simples. Quanto estou sozinho, não valho nada. Sou como o zero que só tem valor ao lado dos outros números. Não há ninguém mais infeliz do que um padre. Em que gastam as suas vidas? A ver Deus humilhado. As pessoas gozam comigo. Sou como um muro em que as pessoas escrevem obscenidades”. E o deão interrompe: “Está cansado”. E logo o outro responde: “Cansado? Não. O cansaço é um mau pensamento”. E o interlocutor, mais velho e experiente, recomenda: “Suspenda as suas visitas por algum tempo”.
SATANÁS, PARA ALÉM DO SILÊNCIO, O VERDADEIRO SILÊNCIO…!
De seguida, Donissan confessa: “Provoco mais mal do que bem. Ao início eu não sabia o que era o mal. Aprendi o mal pela boca dos pecadores”. E Menou-Segrais acrescenta: “Ninguém melhor do que um pobre padre para conhecer a terrível monotonia do pecado.” E Donissan conclui: “Não posso dizer nada. Só posso absolver ou lamentar.” Nesta sequência de introdução ao filme SOUS LE SOLEIL DE SATAN (AO SOL DE SATANÁS), 1987, de Maurice Pialat, a maioria da matéria-prima do que veremos de seguida fica assim exposta sob a forma de corolário de uma cuidada ficção cinematográfica adaptada a partir de uma poderosa e controversa obra literária, o romance homónimo de Georges Bernanos. Para além das personagens já indicadas, peças essenciais da narrativa, absolutamente decisivas para o futuro confronto entre Deus, o Diabo e o que resta da fé entre os homens e mulheres de boa e má vontade, importa referir a presença provocadora, simultaneamente forte e frágil, de uma jovem mulher, na verdade uma adolescente de dezasseis anos chamada Mouchette (notável interpretação de Sandrine Bonnaire). Numa sequência em que a ambiguidade das razões de um acto violento prevalece sobre a visão clara da morte do amante que a engravidara, o marquês de Cadignan (Alain Artur), Mouchette vira uma página da sua vida dissoluta e procura refúgio nos braços do poder, um político autarca e casado que não está disposto a sacrificar a sua reputação por um filho que sabe não ser seu e por uma rapariguinha que usou com a intenção de descartar, caso fosse um passivo e não um activo no quadro burguês das suas ambições pessoais.
Mouchette vai então cruzar o seu percurso com o do padre Donissan que, incompetente para a salvar da perdição, a lança com a sua inépcia e o seu fanatismo religioso para o silêncio, o verdadeiro silêncio… o da morte! Donissan procura fazer ressuscitar Mouchette numa autêntica alucinação que só o isola ainda mais dos habitantes da sua paróquia. Mas isso não impede que, numa outra para onde se deslocou numa espécie de exílio, situada em Lumbres, ele seja recebido como um santo. Será ali o lugar onde vai iniciar uma nova vida e encarar cada vez com mais intensidade a sua missão como estando impregnada do êxtase divino, leia-se, capaz de o fazer desempenhar o papel de Deus. De facto, consegue o milagre inesperado de ressuscitar uma criança que morrera. Maurice Pialat, que até aqui acentuara o recitativo algo solene da maioria dos diálogos, procura no estatuto do novo cura e no retrato mais naturalista mas assombrado de uma comunidade que nele passa a acreditar, a confluência não apenas da força de Deus no pensamento e comportamento humanos mas igualmente a energia interior movida pela força do Diabo. Satanás como força redentora do universo, algo que Donissan não consegue superar nem contrariar. Por fim, não por suicídio como fora o caso de Mouchette, mas por razões que ninguém em boa verdade irá explicar, nos derradeiros planos do filme o homem e padre encontra o silêncio que está para além do silêncio, o verdadeiro silêncio da morte.
Trata-se de um calvário espiritual que contrasta na obra de Maurice Pialat com o realismo da maioria dos seus outros filmes. Pode ser visto como um exercício de estilo, marcado pela assombrosa presença dos actores protagonistas e secundários, pela rigorosa e muito eficaz Direcção de Fotografia de Willy Kurant e do operador de imagem Jacques Loiseleux, e pela forma como o realizador aborda um assunto imenso e controverso como se desenhasse um manual de instruções para nos mostrar como funcionam os mecanismos mais secretos da alma humana.
Ao Sol de Satanás, em análise
Movie title: Sous le soleil de Satan
Director(s): Maurice Pialat
Actor(s): Gérard Depardieu, Sandrine Bonnaire, Alain Artur, Brigitte Legendre
Genre: Drama, 1987, 94min
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João Garção Borges - 80
Conclusão:
PRÓS: Para além do que já disse, destaco ainda a belíssima matriz literária, a sulfurosa obra homónima de Georges Bernanos, que serviu de base ao argumento de Sylvie Danton, com adaptação de Maurice Pialat. Excelente planificação e montagem. Impecável guarda-roupa e Direcção Artística.
Em 1987, recebeu a Palma de Ouro no Festival de Cannes.
CONTRA: Nada. Neste caso, um CONTRA-CORRENTE: deixem-me apenas referir que AO SOL DE SATANÁS foi uma das Palmas de Ouro mais polémicas da História do Festival de Cannes. Foi durante a cerimónia de entrega dos prémios da quadragésima edição que sucedeu, digamos, a bronca que se conta assim: Yves Montand, Presidente do Júri, anuncia Maurice Pialat como o vencedor do respectivo galardão e uma parte da sala começa aos gritos, apupos e assobios, e a outra explode em aplausos. Sem perder o sangue-frio, o realizador sobe ao palco e com a mais olímpica das calmas vira-se para o balcão de onde surgiam os mais ruidosos protestos e diz: “Je suis surtout content pour tous les cris et les sifflets qui vous m’adressez. Si vous ne m’aimez pas je peux vous dire que je ne vous aime pas non plus” (Estou particularmente satisfeito com os gritos e assobios que me dirigem. Se não gostam de mim, deixem-me dizer-vos que eu também não gosto de vocês). De punho erguido e em sinal de vitória, o cineasta confrontou de modo directo e sem rodeios uma plateia forçada a engolir em seco e acabou a levar para casa o prémio mais cobiçado. Muitos podem contestar a sua atribuição, mas ninguém o pode ignorar.
Por mim, num ano em que concorriam para a Palma de Ouro filmes como DER HIMMEL UBER BERLIN (AS ASAS DO DESEJO), 1987 (RFA-França), de Wim Wenders, THE BELLY OF AN ARCHITECT (A BARRIGA DE UM ARQUITECTO), 1987, de Peter Greenaway (Reino Unido-Itália), OCI CIORNIE (OLHOS NEGROS), 1987, de Nikita Mikhalkov (Itália-União Soviética) e YEELEN, 1987, de Souleymane Cissé (Mali-Burkina Faso-França-RFA), só para citar alguns dos meus favoritos, a vitória de uma produção cem por cento francesa pode ser vista como uma manifestação de chauvinismo nacionalista. Mas abençoada maldade que o júri fez nesse ano da graça ao catapultar para a ribalta maior do maior festival do mundo um filme que merecia e merece um lugar de destaque no contexto das cinematografias e dos autores que não fazem concessões ao medíocre e ao redutor gosto dominante.