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Os Delinquentes, a Crítica | A surpreendente obra do cineasta Rodrigo Moreno

“Os Delinquentes” é uma memorável obra do cineasta argentino Rodrigo Moreno, e protagonizada por Daniel Elías e Esteban Bigliardi.

Los Delincuentes” (Os Delinquentes), 2023, escrito e realizado por Rodrigo Moreno, pode ser encarado como o filme ideal para desenhar um primeiro e incisivo esboço sobre a esperança e a falta dela num país recentemente assombrado por um acto eleitoral sui generis que colocou no poder um alucinado que se autodefine como anarco-capitalista (só por si, esta definição não passa de uma asneira que rivaliza com outras declarações emitidas pelo sujeito). Sabemos que o início da rodagem desta produção entre a Argentina, o Brasil, o Chile e o Luxemburgo antecedeu a eleição do novo presidente e data de 2020.

MORÁN & ROMÁN EM BUSCA DA L’ARGENTINA PERDIDA…!

Os Delinquentes Rodrigo Moreno
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Percorreu depois diversas fases, até ser concluída no ano anterior ao da data que adoptou oficialmente para efeitos de estreia e distribuição comercial. Mas a sensação de mal-estar na sociedade argentina ou sul-americana, e em particular na vida comum dos porteños (os que nasceram e habitam na capital, Buenos Aires), já se fazia sentir, e isso fica muito patente nos planos mirabolantes mas perfeitamente exequíveis de dois colegas, anónimos funcionários bancários, que um dia descobrem com algum engenho e manha que poderiam perfeitamente antecipar a reforma com a preciosa ajuda de um golpe, ou melhor, do roubo de uma avultada quantia (650 milhões de dólares) que, por ser o mais óbvio numa agência bancária, até admira que não procurassem concretizar mais cedo.

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De facto, era um “desvio revolucionário” que exigia alguma coragem e igual sacrifício e que um deles acabará por assumir na prática, com as devidas consequências bem delineadas e estruturadas, para que não houvesse qualquer recuperação do capital pelas autoridades policiais. E de repente, no decorrer da visão de “Los Delincuentes”, será caso para dizer: sejam bem-vindos ao reino encantado de Morán (Daniel Elías) e Román (Esteban Bigliardi). Por outras palavras, eventualmente mais sábias, bem-vindos ao pequeno grande mundo e aos meandros proto-paradisíacos de uma nova república inventada pelos dois lá para as bandas de Córdoba, a L’ARGENTine, situada junto de um riacho e de uma colina pouco elevada. Naquelas paragens longe de Buenos Aires irão esconder debaixo de uns pedregulhos o dinheiro roubado.




Pelo menos, durante os anos que Morán irá passar na cadeia depois de se entregar, para os devidos efeitos de expiação e cumprimento de uma pena inevitável, já que o seu acto criminoso fora fatalmente captado pelas câmaras de vigilância instaladas no cofre-forte do banco. Bom, devo dizer que a designação República L’ARGENTine fui eu que a inventei mas, para além do puro divertimento de jogar com as palavras, há uma razão subjacente que passo a explicar. Na verdade, Rodrigo Moreno irá usar no enquadramento das peripécias narrativas de Román, por duas vezes e não por acaso, excertos do derradeiro filme do francês Robert Bresson, precisamente intitulado “L’Argent” (O Dinheiro), 1983 (por sinal um dos mais reaccionários de um grande revolucionário da arte cinematográfica). Nele veremos como uma nota falsa que entra em circulação provoca não poucos reveses da fortuna aos protagonistas, e não só. Lá mais para a frente, uma das personagens mais influentes será presa por cumplicidade no roubo de um banco.

Os Delinquentes
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Dito isto, voltemos de novo ao país das pampas enquanto Morán passa os dias na prisão, no início atormentado e depois protegido por um gangster chamado Garrincha (Germán De Silva), nome do célebre futebolista brasileiro que o façanhudo diz ser maior que o Rei Pelé (o que não deixa de ser verdade, até certo ponto). Por seu lado, Román encarrega-se de proteger os dólares enterrando-os nas entranhas da Mãe Natureza, um depósito natural que o faz encontrar, perto do sítio escolhido para a capitalização futura, um grupo de amigos em amena passeata ao campo. E esse encontro fortuito será o princípio de uma bela amizade com uma rapariga, na aparência singela mas capaz de devorar um homem ao pequeno-almoço, a misteriosa Norma (Margarita Molfino).

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Todavia, não há bela sem senão, pois Norma fora outrora objecto das algo improváveis mas mesmo assim reais atenções amorosas de Morán. Diga-se, um relacionamento correspondido pela jovem que agora, na ausência do anterior amante se vira, sem saber, para o companheiro de aventura de Morán, o mal casado Román. Melodrama de faca e alguidar? Nem pensar. Tudo o que iremos ver neste filme prima pela subversão mais absoluta das regras do jogo social, mas a sensação que fica passa pela constatação de que não há limites para a exposição assumida das relações pessoais, sejam elas abertas ou interiorizadas na mais fina intimidade, podemos mesmo dizer, clandestinidade, seja ela material ou emocional.




Todo o filme será construído segundo a noção de que os actores na composição das suas personagens procuram integrar pedaços soltos da realidade circundante para os incorporarem no devir da acção. Tempo Real, o conceito que mais fica na memória, contra Tempo Subjectivo. Cada sequência dura o que precisa durar até que o espaço fílmico esteja preenchido e o salto em frente possa realizar-se de forma clara e sem recuo ao ponto de partida. Fica-nos esta sensação inebriante de sermos guardiões de um segredo e simultaneamente de uma vertigem, porque o espectador sabe o mesmo que os protagonistas, mas as personagens que com eles se cruzam desconhecem o paradeiro dos cobiçados milhões.

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Os Delinquentes Los Delincuentes
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Quando muito, há quem desconfie, nomeadamente uma investigadora que com a sua agressividade inquisitiva acaba por precipitar a decisão de Román de fazer as malas e abandonar a vida de simples e bisonho burocrata. E mais não digo, porque “Os Delinquentes” precisam ser vistos com a disponibilidade de quem descobre uma obra plano a plano, a razão de ser de cada gesto dos actores, cada diálogo, cada contradição existencial e a resolução da mesma no quadro de uma narrativa que, mesmo depois da palavra FIM, mantém as cartas na mesa prontas para serem jogadas até se alcançar uma vitória desejada, a satisfação plena dos nossos desejos enquanto jogadores/espectadores. Precisamos apenas do naipe certo e da combinação adequada para vencer a inércia que, aliás, nunca nos ataca ao longo dos cento e oitenta “breves” minutos que ao filme dedicamos sem qualquer esforço. Mais uma grande estreia neste início de 2024, panorama que promete continuar em alta nas próximas semanas e meses.

Os Delinquentes, a Crítica
Os Delinquentes Rodrigo Moreno

Movie title: Los Delincuentes

Director(s): Rodrigo Moreno

Actor(s): Daniel Elías, Esteban Bigliardi, Margarita Molfino, Germán de Silva

Genre: Drama, 2023, 180min

  • João Garção Borges - 80
80

Conclusão

PRÓS: Todos os valores de produção presentes, sobretudo Fotografia, Som (com especial incidência na criação dos ambientes e do chamado espaço sonoro), Música, Realização, Montagem, Direcção de Actores e naturalmente os actores, onde se destacam Daniel Elías e Esteban Bigliardi.

CONTRA: Nada.

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