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Folhas Caídas, a Crítica | Um conto do cineasta Aki Kaurismäki premiado pelo Festival de Cannes de 2023

“Folhas Caídas”, de Aki Kaurismäki, chega aos cinemas nacionais com distribuição da Midas Filmes!

PRIMEIRO, MEMÓRIA DE UM CLÁSSICO DA CANÇÃO FRANCESA!

Les feuilles mortes se ramassent à la pelle                       

Les souvenirs et les regrets aussi                                        

Et le vent du Nord les emporte                                             

Dans la nuit froide de l’oubli                                                  

As folhas mortas apanham-se com uma pá

Também as recordações e os arrependimentos

E leva-as o vento do Norte

Na noite fria do esquecimento

Excerto do poema da canção “Les Feuilles Mortes”.

“Les Feuilles Mortes” (As Folhas Mortas). Música de Joseph Kosma. Letra de Jacques Prévert. Um clássico da canção francesa que a partir do hexágono se foi adaptando a diferentes línguas, polarizando os sentimentos que muitos interpretaram na origem (entre outras, oiçamos as magníficas versões de Juliette Greco e de Yves Montand). Recordo ainda a designação inglesa mais divulgada, o “Autumn Leaves”. O seu impacto universal foi fruto da imortalização e assimilação global do conceito de que um amor pode existir, glorioso no seu juvenil e inicial esplendor, mas ao longo dos anos pode igualmente envelhecer, até cair como caem as folhas mortas dos ramos das árvores no Outono, a estação que anuncia a fria noite do Inverno que por seu lado prepara o despertar da Primavera, período em que se opera na Natureza a renovação material e de algum modo o conforto espiritual que homens e mulheres encaram como razões substantivas para continuar a viver.

Folhas Caídas
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Pois bem, perguntarão agora o que faz aqui esta introdução ao filme “Kuolleet Lehdet” (Folhas Caídas), 2023, do finlandês Aki Kaurismaki? Em boa verdade vos digo que esta canção será a senha que fecha e prolonga no genérico final a narrativa proposta desde o primeiro plano desta obra, num efeito de dialéctica ficcional que, em vez de encerrar, abre as portas ao futuro, resta saber se radioso ou não, dos dois protagonistas, a saber, Ansa (Alma Pöysti) e Holappa (Jussi Vatanen).

PLAYLIST PRECISA-SE: PARA DISFARÇAR O MAL-ESTAR NA EUROPA, DITA CIVILIZADA.

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Ela ganha a vida num supermercado, até ao dia em que um encarregado defensor do mais pérfido capitalismo liberal e selvagem (o chamado amigo do patrão a qualquer preço, coadjuvado pelo vigilante que denuncia a empregada) a interroga sobre a comida que leva sorrateiramente para casa. Diga-se, alimentos fora de prazo que segundo a lógica mercantilista deveriam ir obrigatoriamente para o lixo e não para qualquer modesta despensa ou forno micro-ondas dos funcionários. E Ansa será despedida por causa do seu expediente de consumo com que mitigava as carências devidas ao magro salário da sua condição de precária. Também convém saber que estamos na Finlândia, onde os índices de desenvolvimento são habitualmente referidos como exemplares (seja como for, não perguntem aos que sofreram o descalabro da Nokia se as coisas são mesmo assim, porque se arriscam a aprender uma série de palavrões no calão finlandês).


Ele ganha melhor, aparentemente, numa oficina de metalurgia que mais parece um ferro-velho. Nada de especial a assinalar, a não ser algo que o vai perder. Na verdade, Holappa bebe, bebe muito, e ainda por cima não se furta a fazê-lo no horário laboral. Na camarata que partilha com outros operários, na rua ou seja onde for, sempre que pode saca de uma garrafa de bolso e com ar conspirativo emborca uns generosos goles de vodka. Pela noite dentro, no bar por onde arrasta o corpo cansado juntamente com um amigo e colega, um pintas simpático e fanfarrão que se orgulha da sua esplêndida voz no karaoke, os copos de cerveja, mais a versão escandinava da schnaps para dar “vigor”, sucedem-se e acumulam-se sublinhando o grau de alienação que caracteriza a maioria dos que frequentam aquela baiuca sombria e decorada com um apurado gostinho kitsch.

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Nesse ambiente lúgubre onde até se podem ouvir, milagre dos milagres, bonitas canções finlandesas misturadas com êxitos mais rotineiros da pop internacional, Holappa irá cruzar-se certa noite com Ansa, sentada na mesa ao lado com amigas mais desenvoltas na arte da sedução e da provocação pura e dura. Por contraste, Ansa poderia perfeitamente passar pela “santinha do grupo”, e Holappa, na sua sensibilidade alcoólica, não deixou de reparar nesse, digamos, atributo da jovem. Palavra puxa palavra, encontro para aqui, desencontro para acolá, e um belo dia vão ao cinema. E nesse acto fundador de uma nova amizade começa uma singela relação que não podemos classificar de amorosa mas que não anda muito longe de o ser. O potencial sexual está lá. E, bem vistas as coisas, até podemos adivinhar que não será apenas para um breve encontro, como sugere ou insinua um cartaz do “Brief Encounter” (o clássico inglês realizado por David Lean) exposto no exterior da sala de cinema, quando os dois após a sessão, onde levaram com um filme de zombies (a louca incursão pelo género realizada por Jim Jarmusch, “Os Mortos Não Morrem”), conversam sobre o que fazer a partir daquele ponto de viragem nas suas vidas solitárias e deprimidas, ou melhor, deprimentes.

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E dali para a frente a relação entre ambos, que iremos acompanhar no quadro de pequenas etapas e de episódios mais ou menos rocambolescos, que parecia possuir os ingredientes para que esta comédia sarcástica e amarga sobre a vida de dois dignos mas acossados representantes da classe operária finlandesa desse certo, afinal esbarra com atitudes machistas e pouco refinadas da parte de Holappa. Maldita a hora em que aceita ir jantar a casa da até ali improvável namorada. Nessa altura, a realização faz os possíveis e os impossíveis para concentrar a atenção do espectador nas motivações expressas por Ansa para rejeitar a hipótese de uma aproximação simples e sem compromisso com o homem que a desiludiu e que lhe fez recordar o pior do seu passado e da conturbada vida familiar.


Trata-se de um momento exemplar para julgarmos a notável capacidade de Aki Kaurismaki falar, sem papas na língua, a propósito dos sobressaltos emocionais de uma sociedade que, submetida a uma agreste pressão económica, não desiste porém de reivindicar uma dignidade e uma postura existencial dignas de um quadro social e cultural muito mais rico do que a riqueza material do contexto em que sobrevive o proletariado europeu.

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Neste ponto, o filme adquire uma dimensão política que o coloca na vanguarda das obras que apostam na crítica feroz do capitalismo reinante sem no entanto o fazerem através de parangonas panfletárias ou palavras de ordem de ocasião para efeitos de contestação, muitas vezes sem qualquer correspondência com uma organização sólida ou um rumo programático digno de nota. Finalmente, porque o coração dos homens e das mulheres consegue sobreviver ao pior, os nossos heróis encontrarão por fim uma plataforma comum e o princípio de uma viragem rumo ao sol do futuro. Só que, naquelas paragens nórdicas, ou das duas uma: ou vão mais para norte e apanham o sol da meia-noite, que mais parece um lusco-fusco sem fim, ou enfiam-se em casa e rapam um frio desgraçado (que, como se sabe, faz murchar o desejo e não só) se não conseguirem pagar a conta do aquecimento central.

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Salvem-se então os cidadãos de boa vontade através das canções que, reunidas na banda sonora do filme, são na vida real uma espécie de playlist redentora para aquecer a alma, a chave para iludir a depressão física e moral numa Europa dita civilizada. E, mais importante do que as melodias de sempre, será o facto de se ouvirem canções que na sua capacidade de nos fazerem sonhar nos fazem esquecer, por meteóricos minutos, as notícias dos horrores do mundo cujas cronologias diárias nos entram pelos ouvidos e pelos olhos dentro, na maioria dos casos manipuladas pela mais insidiosa propaganda de guerra.

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Decididamente, esta classe operária e as outras classes que se julgam mais favorecidas não vão para o Paraíso, porque no horizonte erguem-se nuvens de enxofre, quem sabe radioactivo, que deixam no ar um pestilento e desgraçado cheiro a Inferno. Que se salvem ao menos as canções…!

Folhas Caídas, a Crítica
Folhas Caídas

Movie title: Kuolleet lehdet

Date published: 8 de January de 2024

Director(s): Aki Kaurismäki

Actor(s): Alma Pöysti, Jussi Vatanen, Janne Hyytiäinen, Nuppu Koivu, Matti Onnismaa, Simon Al-Bazoon, Martti Suosalo, Alma-Koira, Sakari Kuosmanen, Maria Heiskanen, Alina Tomnikov, Maustetytöt

  • João Garção Borges - 80
  • Maggie Silva - 85
83

Conclusão:

PRÓS: Tudo o que disse e a constatação de que Aki Kaurismaki não perdeu o jeito para criticar o sistema que reduz os seres humanos a destroços de uma civilização assombrada pela precariedade do momento e pelos medos relativamente aos abismos emocionais e contradições que muito provavelmente irão contaminar a perspectiva global de uma vida futura.

No Festival de Cannes de 2023 recebeu o Grande Prémio do Júri.

CONTRA: Nada.

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