"O Jovem Xamã" | © Uma Pedra no Sapato

O Jovem Xamã, a Crítica | Uma adolescência invulgar no IndieLisboa

“O Jovem Xamã,” também conhecido como “City of Wind,” é uma coprodução internacional – até teve apoio português – que representou a Mongólia nos Óscares. A obra de Lkhagvadulam Purev-Ochir agora compete pelo Prémio Cidade de Lisboa no IndieLisboa deste ano.

A adolescência é uma época difícil para qualquer. Quando passamos da meninice para a idade adulta, não é só o nosso corpo que muda, mas também a mente, quiçá o espírito. Somos catapultados para novas responsabilidades e o mundo expande-se à nossa frente, horizontes alargados e transgredidos à medida que lidamos com todo um tsunami de transformações. Talvez o mais marcante de tudo seja o processo de autodescoberta, aquela viagem interior que tomamos na procura da definição de nós mesmos. “Quem sou eu?” ecoa-nos no pensamento e, por vezes, a resposta obtida não é a mais agradável. A deceção é comum, mas o sonho também.

Lê Também:   A Volta ao Mundo em 80 Filmes

Trata-se de uma dessas experiências universais, uma encruzilhada nos caminhos da vida pela qual todos passamos rumo ao amanhã. Rumo a quem somos além das expetativas exteriores, da pressão social, tradições, costumes, e toda idealização que se fez sobre nós. Em certa medida, trata-se do processo pelo qual uma entidade se torna pessoa, autónoma e isolada na ilha que é o “eu.” Não admira que tanta rebeldia se manifeste nessa idade, tanta confusão a explodir de dentro de um âmago cá para fora. Parece que se luta contra o mundo ao mesmo tempo que se luta contra o reflexo no espelho. Ai sim, a adolescência é complicada.

indielisboa o jovem xama critica
© Uma Pedra no Sapato

Por isso mesmo, tem sido tema preferido de muitos artistas. Não obstante quão distantes estamos dessa transição entre estados, a memória ressoa no pensamento e não nos deixa em paz. Até às portas da morte, há artistas que teimam em olhar para trás e voltar a ponderar o espaço liminar da juventude. Em paradigmas cinematográficos, muita obra-prima já foi feita sobre o assunto, desde clássicos icónicos a indies obscuros. Pensemos no “Fúria de Viver” onde James Dean tipificou uma masculinidade em crise, ou “As Virgens Suicidas” de Coppola por meio de Jeffrey Eugenides. Pensemos na comédia adolescente de Hollywood, no drama juvenil, no Bildungsroman transladado para o grande ecrã.

Pensemos na primeira longa-metragem da realizadora mongol Lkhagvadulam Purev-Ochir. Estreado em secção paralela do Festival de Veneza, “O Jovem Xamã” oferece uma perspetiva única sobre o tema da adolescência em filme, esmiuçando as especificidades culturais onde a personagem é sinédoque de um contexto cultural maior. Numa Mongólia contemporânea, a nação parece viver a sua própria adolescência, transitando de uma configuração antiga e ancestral para o mundo moderno, globalizado e revolucionado consoante as novas conetividades. É um país onde se combinam ritos xamânicos por iPhone.


De facto, como o título indica, “O Jovem Xamã” considera a história de um rapaz dedicado à tradição antiga, espiritualidades e ritos desatualizados que, mesmo assim, trazem conforto a muitos. Em tenda enfumarada, com toda a figura disfarçada por figurinos geracionais, Ze perpetua os costumes da sua gente e apela aos espíritos para guiarem os pobres mortais. Apesar da tenra idade, quando está no aparato xamânico, Ze projeta sabedoria e não é difícil perceber a razão pelas quais gente lhe vai pedir auxílio. Nem todos gostam das mensagens do além e nem todos creem na ligação entre o miúdo e o mundo invisível que haverá acima do nosso plano de existência.

Só que, em ironia do espírita, será o próprio Ze quem precisa de um guia na vida. Pelo menos, assim parece quando o encontramos. Ele não é necessariamente um cético, mas também há momentos em que a crença coabita com a dúvida miúda. Talvez até um certo nervosismo de quem não percebe se aquilo a que tem dedicado a alma é inspiração divina ou somente a responsabilidade que lhe foi passada, imposta, forçada até. Será que é esta a vida que Ze quer? Entenda-se que o trabalho de xamã é só part-time e que, no resto do seu dia, o rapaz corresponde às demandas do adolescente moderno. Esqueçam exotismos, porque a mundanidade é universal.

indielisboa o jovem xama critica
© Uma Pedra no Sapato

Ele vai à escola como todos os outros da sua idade, sofre os caprichos de hormonas pululantes e deixa-se distrair pelos universos contidos no telemóvel. Também se deixa cair em amores por uma rapariga que o desafia, uma daquelas que não acredita na veracidade do dom xamânico ou no poder de toda esse costume preservado desde tempos imemoriais. Mas a dúvida não o repugna, muito pelo contrário. É como se, na companhia de Maralaa, ele pudesse ser uma pessoa normal e não a figura sobre-humana ou ritualista que acaba por ser entre a família e no seu ofício. Dito isso, o ensinamento não o deixa.

Ze entende o mundo através da sua perspetiva única, essa mistura do passado e presente, entre a serenidade da natureza e a comunhão incerta da modernidade. “O Jovem Xamã” retrata tudo isso, sendo mais uma observação prolongada que uma história movida por enredo. Purev-Ochir concebeu aqui um formidável estudo de personagem, ancorando tudo na prestação sublime de Tergel Bold-Erdene, cujo trabalho lhe valeu o Prémio de Melhor Ator na secção Horizonte de Veneza. Basta vê-lo perdido na euforia de um clube noturno para perceber toda a galáxia de conflito dentro de Ze e, por conseguinte, dentro da cultura que ele representa.

Lê Também:   Festival de Veneza | Poor Things ganha o Leão de Ouro 2023

Perdido na escuridão colorida, ele foge de quem é e deixa-se metamorfosear à mercê das luzes strob. Nesse instante, a face parece-lhe maleável e o espetador como que consegue visualizar as várias versões possíveis da mesma pessoa. A adolescência é isso mesmo, o estado moldável, a passagem e o mistério. Nessa vertente “O Jovem Xamã” é um dos melhores filmes sobre essa idade que vemos há muito tempo. Não admira que a Mongólia tenha selecionado o título para a representar nos Óscares, este retrato humano da nação. Diríamos mesmo que teriam merecido a nomeação acima de algumas das obras consagradas pela Academia.

O Jovem Xamã, a Crítica

Movie title: Ser ser salhi

Date published: 28 de May de 2024

Duration: 104 min.

Director(s): Lkhagvadulam Purev-Ochir

Actor(s): Tergel Bold-Erdene, Nomin-Erdene Ariunbyamba, Anu-Ujin Tsermaa, Bulgan Chuluunbat, Ganzorig Tsetsgee, Myagmarnaran Gombo, Tsend-Ayush Nyamsuren, Sodtuya Uuganbayar, Ulsbold Enkhbaatar

Genre: Drama, 2023

  • Cláudio Alves - 82
82

CONCLUSÃO:

“O Jovem Xamã” é um conto de contrastes e transições, retratando a adolescência de um rapaz e de uma nação. As histórias sobrepõem-se e ecoam, rimam até, predispondo um estudo de personagem multifacetado e fixo numa ambivalência sem julgamentos ou certezas. Afinal, na adolescência não há certezas e a realizadora Lkhagvadulam Purev-Ochir sabe isso muito bem. Esta coprodução internacional é uma fantástica estreia para a cineasta no contexto das longas-metragens e deve por o seu nome do mapa.

O MELHOR: As cenas no clube noturno, esses interlúdios cíclicos em que Ze se parece perder na folia e o mistério dentro de si vem cá para fora. É claro que, como tudo na fita, tais passagens apoiam-se na prestação notável de Tergel Bold-Erdene e na realização astuta de Lkhagvadulam Purev-Ochir.

O PIOR: A vaga inconclusividade da narrativa vai frustrar algumas pessoas. Além do mais, o registo observacional não é para todos os gostos, requerendo paciência e um certo investimento emocional que nem sempre se reflete em cena.

CA

Sending
User Review
0 (0 votes)

2 Comments

  1. Bo Jasper Midnight 28 de Maio de 2024
  2. 29 de Maio de 2024

Leave a Reply