O Palácio de Cidadãos, a Crítica | Rui Pires retrata a Assembleia da República
O realizador Rui Pires leva as audiências até aos bastidores da política portuguesa, retratando o dia-a-dia da Assembleia da República em “O Palácio de Cidadãos.”
A comparação é meio ingrata, mas será difícil falar sobre o estilo, os pontos fortes e as fragilidades do novo filme de Rui Pires sem referir Frederick Wiseman. Esse mestre do cinema documental levou noções de abordagens ‘fly on the wall’ aos seus extremos, tendo feito carreira através da contemplação estudiosa de instituições e sistemas, desde hospitais psiquiátricos nos anos 60 até às universidades californianas e restaurantes franceses do século XXI. Tratam-se de filmes onde a observação é a principal estratégia, sem intervenção direta feita em prol de algo mais espetacular, mais lúdica, mais falseada.
Perante um dos monumentos de Wiseman, o espectador tem que ser paciente, com alguns dos projetos a estenderem-se muito além das durações do documentário corriqueiro. São épicos em tom mundano, onde se descobre o lado humano de esforços coletivos e impessoais sem, no entanto, cair em vícios narrativos. Há uma simplicidade sublime, e um respeito pela inteligência da audiência que não implica uma qualquer descura no virtuosismo formalista da peça. Os filmes de Wiseman são sempre obras-primas de montagem, conseguindo ritmos refinados sem chamar atenção para os mecanismos cinematográficos em ação.
Rui Pires na sombra de Fredrick Wiseman.
“O Palácio de Cidadãos” segue essa linha, ponderando vários meses na Assembleia da República entre 2018 e 2019, quando Costa encabeçava o Governo com a esquerda em maioria parlamentar. A câmara segue vários grupos de trabalho e inúmeras realidades da instituição, expandindo os horizontes do seu retrato mural para compreender tanto legisladores como os cidadãos de visita, as equipas de limpeza e aqueles que preparam reuniões, jantares, aqueles com poder e aqueles cujo papel é servil e sem influência. Há um comentário implícito sobre quem consegue chegar a posições mais altas, mas nunca se verbaliza o mesmo. Enfim, o quotidiano domina a experiência do espectador, percecionando-se a Assembleia em forma de ideal democrático e local de trabalho.
Verdade seja dita, a técnica de Pires reflete muito do que faz os filmes de Wiseman tão imperdíveis, com um fluir bem conseguido e estrutura apurada. Mesmo que as imagens nem sempre brilhem pelo primor fotográfico, a montagem merece aplausos. Começa-se no 25 de Abril e passa um ano neste ciclo de política e cidadania lusitana, com o espírito da Revolução dos Cravos em jeito de compasso rítmico e objetivo, como valor suprassumo e uma necessidade vital. Alguns tópicos em discussão durante esse período têm mais relevância que outros, mas Pires mantém sempre em mente a multidimensionalidade da máquina política e sua relação com o povo.
Tanta dignidade se dá às figuras conhecidas da praça pública como à gente mais anónima, sem que, no entanto, se tenha que vergar o documentário à tirania das entrevistas. Tais mecanismos não têm lugar no “Palácio de Cidadãos.” Imaginamos que a sua presença só iria banalizar o material que Pires colecionou e aqui nos apresenta. Supostamente nascido do descontentamento do realizador com o estado da democracia no nosso país, o documentário parece querer preservar uma perspetiva despida de julgamentos sem, no entanto, pecar pela passividade apolítica. É um equilíbrio difícil com que a fita se debate ao longo de duas horas e meia.
Certas passagens não conseguem evitar a sensação de um olhar censório a orientar a câmara. Nomeadamente, referimo-nos a questões de burocracia absurda, com discussões sem fim sobre horários e agendas. Por vezes, parece que as conversas giram em círculos viciosos sem que nada se resolva, reuniões sem sentido além de perder tempo. Noutras ocasiões, a ineficácia do sistema toma lugar de primazia, impossível de ignorar. As platitudes do costume, a linguagem oficial – tudo isso sabe a insulto quando contrastado com os interesses do público para quem aquilo que está a ser debatido não é uma realidade distante ou abstração.
Cinema urgente, mas desatualizado.
Só que a realidade presente neste filme é, em certa medida, distante da atualidade. As filmagens terminaram em 2019, antes da pandemia, antes da emergência e acumulação de poder por novos partidos de direita. Os anos que Pires demorou a editar a sua grande obra acabam por alterar o modo como ela pode ser encarada, corroendo o sentimento de urgência na sua génese. Não o invalida, certamente, mas não é um trabalho destinado a provocar, mudar mentes ou transformar perceções. O facto é que o contexto político português está tão diferente que “O Palácio de Cidadãos” consegue parecer um pouco ingénuo nas observações que privilegia.
Aliás, aquando da sua estreia comercial – mesmo a tempo dos 51 anos do 25 de Abril – houve quem olhasse para o filme com nostalgia no coração e alguma saudade. Mais do que realçar o valor da obra enquanto cinema político, tais conclusões apontam para limites que poêm em questão a base concetual do filme sem macular a sua polidez, elegância, sua forma formosa enquanto objeto artístico. E é aí que a comparação com Wiseman regressa. Porque o realizador americano produziu trabalhos que levaram a alteração na legislação, que confrontam o espectador e tanto funcionam como cápsulas do tempo e instrumentos de sensibilização. “O Palácio de Cidadãos” fica aquém desses píncaros, ecoando qualidades audiovisuais e humanistas sem, no entanto, alcançar a mesma relevância sociopolítica.
O Palácio de Cidadãos, a Crítica
Movie title: O Palácio de Cidadãos
Date published: 30 de April de 2025
Country: Portugal
Duration: 147 min.
Director(s): Rui Pires
Genre: Documentário, 2024
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Cláudio Alves - 75
CONCLUSÃO:
Apesar de grandes limitações e uma impressão amarga de ingenuidade e comentário desatualizado, “O Palácio de Cidadãos” é um belíssimo retrato da Assembleia da República, essa casa da democracia para o povo português. Bem estruturado, embebido de nostalgia acidental, trata-se de um filme capaz de emocionar aqueles entre nós que ainda creem piamente nos ideais de Abril. Só que a sombra de Wiseman, sua influência, sua marca na História do Cinema, abatem-se sobre o retrato parlamentar e forçam uma comparação que nem sempre favorece o documentário de Rui Pires.
O MELHOR: A estrutura e o movimento que guia o espectador através deste épico quotidiano. Isso e a dignidade prestada a todos aqueles que aparecem diante da câmara, mesmo os burocratas que inspiram algum escárnio na montagem final.
O PIOR: Preza-se a curiosidade e a delicadeza da obra sem, no entanto, apagar as suas limitações enquanto retrato desatualizado do estado da democracia em Portugal.
CA