"Menus Plaisirs - Les Troisgros" | © Zipporah Films

DocLisboa ’23 | Menus Plaisirs – Les Troisgros, a Crítica

Depois de passar em Veneza e Toronto, o novo filme de Frederick Wiseman chega ao DocLisboa. “Menus Plaisirs – Les Troisgros” trata-se de um retrato familiar e gastronómico, elaborado com a observação paciente tão típica do cineasta.

Ao longo da sua carreira, Frederick Wiseman tem-se especializado num género de documentário onde prima o retrato desafetado na senda dessa inalcançável objetividade. Com algumas exceções, os seus trabalhos são longos e simples, ficando-se pelo testemunho de sistemas e coletivos, comunidades que se revelam perante a câmara em jeito gradual. Há quem acuse o realizador de testar a paciência das audiências. Contudo, quando nos deixamos levar pelo seu feitiço, há preciosidades a desvendar na filmografia de Wiseman. Tanto assim é que nem a Academia pode ficar indiferente, condecorando-o com um Óscar honorário em 2016.

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Muitos dos projetos mais célebres dele incidem o seu foco em figuras marginalizadas ou sem poder. “Titicus Folicus,” sua primeira obra-prima, capturou as injustiças em hospitais psiquiátricos nos EUA, levando mesmo a mudanças em legislação. Mais recentemente, ele tem vindo a enveredar-se por locais de trabalho como museus e bibliotecas, apreciando o lavoro daqueles que persistem e fazem funcionar esses serviços públicos. Por essas razões e outras demais, “Menus Plaisirs – Les Troisgros” representa uma divergência assim como uma confirmação do seu cinema, seus objetivos estéticos e sociais. Pode ser paradoxo, mas a contradição faz todo o sentido.

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© Zipporah Films

Tudo começa num mercado francês, em Loire, onde dois irmãos e alguns colegas fazem as suas compras, falam com os merceeiros bem conhecidos e começam a elaborar menus entre conversas. Logo aqui reparamos num certo apuramento para o esplendor da verdura, um gosto que a câmara fomenta pela beleza inerente ao trabalho culinário. Quando todo um monólogo se desenrola em torno das qualidades escultóricas de cogumelos bravios, o espetador já foi preparado para apreciar a perspectiva ao invés de a descartar como pretensiosismos. A paixão clara dos irmãos ajuda muito, cada palavra imbuída de um enorme respeito para com os ingredientes.

Daí partimos para uma reunião com o patriarca Troisgros e melhor entendemos a dinâmica do seio familiar e profissional. Michel é o centro do sistema, um nome respeitado e descendente de uma família antiga de chefes. Em tempos passados, ele perpetuou a tradição passada como herança, mas, há poucos anos, decidiu dar uns passos para o futuro. Ele abandonou a cidade e partiu para o campo, para criar um hotel e restaurante feitos, de raiz, para acolher a sua cozinha. Pelo caminho, construiu o contexto para a ascensão dos filhos e sua mesma reforma. César Troigros está encarregue do restaurante principal com três estrelas Michelin. Léo, o irmão mais novo, trabalha num estabelecimento menos prestigiado dentro do seio Troisgros.




São chefes de alto gabarito e, através da conversa, vamo-nos preparando para a espetacularidade técnica das próximas horas. Acontece que este desvio pelo mercado e pela reunião para desenhar a ementa servem de prólogo. O restante filme irá ver como os dois menus de cada irmão se concretizam, ao mesmo tempo que explora toda a indústria paralela que existe em torno dos restaurantes. Wiseman interessa-se pela origem dos ingredientes além do mercado, seguindo os Troisgros em visitas a quintas, queijarias e afins. Há um respeito quase religioso pelo fruto da terra, detalhes ecológicos no centro de muitas deliberações.

Esse amor à paisagem onde crescem os animais e vegetais, a fruta e os condimentos, dos pratos Troisgros nota-se além da estrutura do documentário. Ao contrário do que tem acontecido nos últimos anos, Frederick Wiseman colabora aqui com vários outros criativos atrás da câmara, não sendo seu singular operador, técnico de montagem, produtor, sonoplastia e tudo o mais. Tais divisões atiçam o primor da apresentação, especialmente notável nas transições campestres, onde as realidades bucólicas da ruralidade francesa propõem imagens dignas de quadro. Em certa medida, isto aproxima a arquitetura fílmica à arquitetura do restaurante.

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© Zipporah Films

Afinal, Michel concebeu o principal estabelecimento com o seu nome familiar em torno da paisagem. Isso vê-se tanto do lado do cliente como do trabalhador. Janelas enormes reduzem o edifício a uma estrutura de vidro, onde se está em constante comunhão com o exterior. Perante um convidado, os anfitriões podem apontar para fora e detalhar a origem do que está no prato. Por detrás das cenas, nos bastidores do teatro gastronómico, a mesma abertura espacial se manifesta numa cozinha sem paredes a mais, onde tudo respira e a divisão se apaga. As janelas continuam por aqui também, ligando o registo bucólico da paisagem ao turbilhão laboral.

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Por muito que Wiseman passe quatro horas em deambulações por quintas e ocasional desvio para a perspectiva do cliente, é nas passagens da cozinha que o seu filme vive na perfeita plenitude. O realizador encontra poesia nos movimentos precisos da equipa culinária, desde a preparação matinal até ao último serviço da noite, o dia consumido num trabalho de mestre. É ele o mestre da câmara, mas também o mestre da ementa, do serviço, da frigideira e do tacho, da abstração de chocolate temperado em desenho decorativo ao equilíbrio de sabores entre picante e maracujá. Através de “Menus Plaisirs – Les Troisgros,” somos convidados a cair na mesma paixão que tem consumido a família titular há gerações. Por outras palavras, preparem-se para sair da sala de cinema esfaimados, com o apetite em alta e a boca a salivar.

Menus Plaisirs - Les Troisgros, a Crítica
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Movie title: Menus Plaisirs - Les Troisgros

Date published: 27 de October de 2023

Director(s): Frederick Wiseman

Genre: Documentário, 2023, 240 min.

  • Cláudio Alves - 85
85

CONCLUSÃO:

Um filme para despertar a fome e fomentar novos amores gastronómicos, esta nova obra de Frederick Wiseman converte o seu cinema observacional em experiência gourmet. Como sempre, o realizador consegue tornar a atividade mais repetitiva e aparentemente enfadonha num espetáculo hipnotizante. Até a lavagem do queijo empolga no universo cinematográfico deste mestre da sétima arte, agora virado para os mestres da gastronomia.

O MELHOR: As passagens quase silenciosas do trabalho na cozinha, a perfeição mecânica atingindo uma sublimação balética. Estamos a ver poesia em movimento mais do que o simples ato culinário.

O PIOR: A estrutura nem sempre resulta nas melhores transições ou fluidez. Contudo, celebramos a ideia de partilhar a maior contextualização informativa como nota final do projeto ao invés de ponto de partida.

CA

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