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Parece que Estou a +, a Crítica | Rémy Girard e Sophie Lorain no drama de Denys Arcand

Denys Arcand regressa ao grande ecrã com “Parece que Estou a +”, um drama protagonizado por Rémy Girard e Sophie Lorain.

No mesmo dia em que escrevo sobre o mais recente filme do veterano realizador canadiano Denys Arcand, “Testament”, 2023, que em Portugal recebeu a criativa designação comercial de “Parece Que Estou a +”, pude ler na revista “Nature” que no nosso planeta o desaparecimento progressivo das calotes polares, com consequente degelo e mais ampla concentração de água no estado líquido nas regiões do equador, faz com que a Terra esteja a sofrer uma desaceleração no seu movimento de rotação, o que irá implicar um necessário ajuste no modo como os nossos relógios são calibrados.

E CÁ VAMOS, CANTANDO E RINDO, A DOIS PASSOS DO ABISMO…

Parece que Estou a +
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Podemos dizer, parafraseando um inenarrável filme da antiga e, neste caso, nada gloriosa cinematografia nacional, que “O Destino Marca a Hora” (para quem não saiba, produzido em 1970, com realização de Henrique Campos e com o inimitável Tony de Matos). Naturalmente, o fenómeno de regressão rotativa passa despercebido ao olhar mesmo atento do comum dos mortais. Já mais visível será o declínio da civilização ocidental e correspondente erosão do pensamento que outrora ergueu um sistema de valores que, queiramos ou não, são os nossos. Falo sobretudo do comportamento ponderado e racional, que por associação ao fenómeno da Natureza não se resolve apenas com uma operação de relojoaria cosmológica. Dançamos assim debaixo de um vulcão prestes a explodir, para citar um conhecido romance (penso eu, já não digo nada), “Under The Volcano”, escrito pelo inglês Malcolm Lowry e publicado em 1947.

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No filme “Testament” há diversas personagens que merecem atenção, mas uma sobressai das restantes: é Jean-Michel Bouchard (Rémy Girard), arquivista na pré-reforma que decide viver os dias que lhe restam numa casa de repouso, por sinal bastante confortável. Nessa instituição para quem pode, a insinuante Directora, Suzanne Francoeur (Sophie Lorain), vai ganhando um lugar especial no coração de Jean-Michel na mesma medida em que consolida a sua importância nesta ficção onde o mundo exterior parece alinhado para destruir a possível e desejada harmonia de quem ali mora e já viveu (no caso do protagonista, ainda quer viver) muitas e desafiantes aventuras. E essas irão aparecer-lhes pela frente no campo do confronto com os ideários mais controversos ou canhestros da sociedade dita moderna.




De facto, Jean-Michel e Suzanne vão entrar numa espécie de rota de colisão com as preocupações redutoras do politicamente correcto e com as fúrias pseudo-militantes de certos activistas que, se em alguns momentos conseguem justificar plenamente a sua acção, por exemplo na preocupação legítima de suprimir uma série de injustiças que urge de facto corrigir, noutros casos acabam por desviar e empurrar a sua luta para o patamar mais rafeiro da intolerância, gerando pelo caminho um rasto de gritaria polvilhado de ignorância e mesmo, por vezes, de manifesta imbecilidade que desgraçadamente denuncia uma ideologia “woke” descontrolada, contaminada por preconceitos piores do que aqueles que dizem contrariar e destituída dos seus propósitos iniciais e mais nobres, ou seja, o combate em prol da justiça social e da igualdade racial.

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Na verdade, imaginem o que um grupo de folclóricos instalados com armas e bagagens ao jeito de um sit-in nas imediações da casa de repouso considerou como a sua missão mais urgente: banir uma pintura, na verdade um mural, que representava o encontro do explorador francês de origem bretã Jacques Cartier (1491-1557) com os indígenas Mohawks que no século XVI habitavam o que na altura ainda estava por conquistar de forma definitiva, ou seja, o futuro Québec, o futuro Canadá e, já agora, os futuros Estados Unidos da América. Tudo porque a consideravam abusiva da imagem e do património identitário das chamadas First Nations, as Primeiras Nações, ou seja os grupos nativos que há milhares de anos já por ali viviam antes da chegada dos europeus.

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Devo dizer que o debate sobre o assunto em causa possui argumentos sérios, e durante muitos anos apoiei e continuo a apoiar um festival de cinema e artes visuais intitulado imagineNative que se realiza no Canadá, na cidade de Toronto. Dedica-se ao cinema e artes plásticas das populações nativas do mundo inteiro e não apenas do continente americano. Precisamente por isso acompanhei de perto o problema e fui e sou cúmplice de muitos que defendem uma afirmação plena dos homens e mulheres que não deviam estar, como em muitos países sucede, confinados a um sistema de reservas que não está longe de ser um anacrónico apartheid, muito diferente daquele que vigorou na África do Sul mas igualmente discriminatório, que não deveria vigorar em pleno século XXI e muito menos no contexto de regimes que se consideram democráticos. Mas uma coisa sei: os meus amigos do imagineNative fugiam como o diabo da cruz dos alucinados do protesto, os que fazem barulho porque sim, que ao invés de ajudarem apenas enterravam as expectactivas depositadas numa solução justa e duradoura para a afirmação cultural e social dos povos nativos.

E A CERTA ALTURA NO FILME DISPARA-SE EM TODAS AS DIRECÇÕES

Pelo meio da confusão gerada ao redor da polémica sobre o mural assistimos a um curioso e desigual número de episódios dispersos que servem para alimentar com humor e crítica incisiva o percurso de Jean-Michel, que desde sempre procura um ponto de equilíbrio existencial num mundo apostado em dar a palavra a incompetentes e loucos. Numa primeira fase vemo-lo receber um prémio literário ao lado de um grupo de mulheres galardoadas por obras que, como se costuma dizer, são a cara chapada das suas autoras. E o leque feminino serve os gostos mais diversos, desde a lésbica histérica a uma sisuda muçulmana.

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Depois, o nosso herói dá conta da desgraça que se abateu sobre um companheiro que apesar da sua respeitável idade insiste em comportar-se como um rapaz novo, um daqueles que segue as dietas anunciadas como saudáveis, mais ioga e meditação, mais exercício físico de acordo com o doutor não sei quantos da internet, enfim, um homem apostado em morrer cheio de saúde. Mais para a frente, e num momento de particular sensibilidade, assiste a uma decisão arbitrária e frustre das altas instâncias que governam a casa de repouso: acabar com a biblioteca existente, substituindo-a por computadores e jogos de vídeo. Tudo porque acham que os mais velhos não gostam de ler e preferem os universos alternativos que, após a invasão informática, os levam a perder horas frente aos ecrãs na mira de ganhar xis pontos até alcançarem o estatuto de super-heróis.

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Diversas sequências, as mais frágeis porque mais exageradas, atestam a idiotice da medida. Temos ainda direito a um momento de género com uma das locatárias a exigir por decreto que passem a usar com ela linguagem inclusiva. Desta vez, as sequências que lhe são dedicadas são uma pura delícia. Finalmente, há um sub-plot que se arquitecta a propósito de uma crise familiar que implica Suzanne e a sua filha ausente e, neste contexto, Jean-Michel procurará ser o elo de ligação e o anjo da guarda capaz de restabelecer a harmonia perdida. Enfim, uma ou outra pitada de melodrama não fazem mal a ninguém. Mas o que importa salientar é o facto de Denys Arcand pegar nestes ingredientes para deles extrair um pulsar narrativo que, não abandonando o essencial, dá lugar ao que será sem sombra de dúvida a maior e mais directa crítica ao poder político instalado no governo estadual.

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Sem papas na língua e devido ao frenesim mediático gerado pelos activistas que não desistem de cercar a entrada da casa de repouso, a Ministra da Cultura com o inconfundível sotaque québécois instiga Suzanne a resolver o assunto do mural, e ela assim faz, mas da pior maneira imaginável. Nada mais vos digo para não estragar a surpresa, a não ser que o realizador e argumentista acaba o filme com uma sequência situada no ano 2042 e que a solução para o imbróglio do mural não constitui motivo de orgulho para a comunidade nem francófona nem anglófona do Canadá.

Parece que Estou a +, a Crítica
Parece que Estou a +

Movie title: Testament

Director(s): Denys Arcand

Actor(s): Rémy Girard, Sophie Lorain, Marie-Mai Bouchard

Genre: Drama, 2023, 115min

  • João Garção Borges - 65
65

Conclusão:

PRÓS: Regresso em boa forma de um veterano do cinema canadiano, o produtor, realizador, argumentista e actor Denys Arcand. Recordo filmes que marcaram a sua filmografia, como “Réjeanne Padovani”, 1973, ou “Le Déclin de L’Empire Américain” (O Declínio do Império Americano), 1986, ou “Jésus de Montréal”, 1989, ou “Les Invasions Barbares” (As Invasões Bárbaras), 2003, ou ainda “La Chute de L’Empire Américain” (A Queda do Império Americano), 2018.

CONTRA: “Testament”, ou seja “Testamento” ou até “Testemunhas” em português, seria uma hipótese mais justa e directa para baptizar o filme no nosso país. Mas confesso que neste caso o título escolhido “Parece Que Estou a +” não está mal e não deixa de fazer sentido considerando a disposição inicial do protagonista. Pode mesmo ser encarado como um prolongamento da presença mordaz e cinicamente segura da personagem Jean-Michel, figura inteligente maioritariamente rodeada por néscios, interpretada pelo actor Rémy Girard.

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