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Assassinos da Lua das Flores | Está a representação da Nação Osage garantida? 

Com “Assassinos da Lua das Flores”, Martin Scorsese explora um outro ângulo do sonho americano, ou antes, a falência do mesmo. Baseada numa história verídica, esta é a narrativa da tribo Osage, ‘amaldiçoada’ com tremenda riqueza. 

A Nação Osage tinha por domínio ancestral grande parte do território que viria a corresponder ao Kansas, isto até o governo dos EUA remover a tribo, no século XIX, para o ‘território índio’ (a Oklahoma dos dias de hoje). 

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A grande migração interna dos Osage, confinados posteriormente a reservas, neste caso à reserva em Osage County, Oklahoma, é brevemente explicada no arranque da longa-metragem, embora nos centremos particularmente no presente da narrativa, ou seja, nas primeiras décadas do século XX, quando os Osage haviam sido simultaneamente abençoados e amaldiçoados com quantidades insanas de petróleo encontradas na sua reserva. Estas permitiram-lhes lucrar com taxas de aluguer dos direitos de exploração das terras. Tal “ouro negro” acabaria por se revelar a sua ruína. 

Em “Assassinos da Lua das Flores”, ao longo de uma jornada semi-episódica de 3 horas e meia, acompanhamos a história daqueles que exploraram a tribo Osage.

Pouco a pouco, como retrata o filme e a obra literária em que se baseia, “Assassinos da Lua das Flores”, de David Grann (com subtítulo “A Matança dos Índios Osage e o Nascimento do FBI”), vamos descobrindo os pérfidos esquemas empregues por visitantes exteriores para conseguir usurpar os direitos (“headrights”) de exploração dos poços de petróleo. Esquemas estes que passaram por casar com mulheres Osage, assassiná-las e às suas crianças, de formas mais ou menos óbvias, até ver transferidos estes mesmos direitos.

Assassinos da Lua das Flores
©2023 Paramount Pictures

No filme, é adotada uma perspectiva criminal vincada, com Robert de Niro a interpretar um maçom que se apresenta como um farol nesta comunidade, mas comportando-se, na realidade, como a maior praga que a população Osage já viu. Algo caricatural, o seu William Hale é acima de tudo uma personagem-tipo, representando a ganância dos usurpadores da bela terra Osage. De Niro está estupendo no papel, e promete assombrar com esta sua personificação do lado mais negro da humanidade. 




Já Leonardo DiCaprio dá vida a Ernest Burkhart, o seu sobrinho, outra personagem-tipo – um pau-mandado ingénuo e alegremente alheio ao horror que se passa à sua volta. Isto é, até lhe tocar de forma pessoal. 

A relação entre Burkhart e Hale compõe uma grande parte desta longa história cinematográfica, a qual é estupendamente fotografada por Rodrigo Prieto e em igual medida bem montada por Thelma Schoonmaker, sempre capaz de nos prender e horrorizar com a sua sobreposição de planos. 

Assassinos da Lua das Flores
©2023 Paramount Pictures

Todavia, a visualização da obra não deixa de nos confrontar com a seguinte questão – está a representação da tribo indígena Osage garantida? Entre as dezenas de personagens Osage que vemos, grande parte tem poucas falas e há personagens que nunca chegam a ser desenvolvidas de forma profunda – não da mesma forma que vemos explorada a podridão do “conquistador” branco que comete o genocídio. 

Coadjuvantes na melhor das hipóteses, podem os Osage ser vistos como protagonistas desta obra? Ou os agressores são os protagonistas e estas personagens meras vítimas, mais ou menos ingénuas?

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Pode ser dito algo no sentido da defesa da escolha de um ângulo, o da criminalidade e falência da crença na justiça nesta suposta “terra das oportunidades” e “terra da liberdade”. Que uma história centrada nos Osage seria uma qualquer outra narrativa, e não “Killers of the Flower Moon”, um conto ambíguo e desencantado que nos desarma. 

Todavia, há aqui uma força capaz de contrabalançar certas potenciais acusações de tempo de ecrã reduzido para a Nação Osage. A personagem da esposa nativo-americana de Ernest, Mollie Burkhart (interpretada por uma Lily Gladstone fadada à estatueta dourada, com toda a justiça). 

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Lily Gladstone no seu impressionante papel| © NOS Audiovisuais

Mollie é a única verdadeira força positiva numa obra repleta de podridão, e uma que fala mais alto que todas as outras. Mollie é uma heroína estóica, que por pouco que fale consegue expressar tudo com a força do seu olhar. A sua intérprete, Lily Gladstone, prova-nos que nem sempre as palavras são necessárias, e que grandes monólogos não são precisos para roubar a cena. 




Ao lado de DiCaprio, um dos atores mais amados da Hollywood do aqui e agora, Gladstone, descendente em parte da tribo Black Feet e criada na sua reserva, não lhe fica nunca atrás e consegue representar a dor particular (a da sua Mollie, que não é pouca), bem como a dor de toda a Nação Osage aqui retratada.

Em entrevista à Vogue, publicada no mês de maio, Lily elogiou a forma como Mollie está escrita no guião, permitindo-lhe “ preencher o espaço e responder de acordo com a situação sem depender demasiado de diálogos para explicar à audiência o que se está a passar”. 

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Avançou ainda que: 

Mollie é uma presença fundamental no filme e um membro vital e precioso da comunidade Osage. Quando olhamos para as suas fotografias, há tanta vida nos seus olhos e uma incrível força e auto-controlo. 

Todavia, nem toda a gente concorda com esta perspectiva. Devery Jacobs, uma atriz indígena Mohawk canadiana e uma das protagonistas da série “Reservation Dogs” (co-criada por Taika Waititi, ele próprio parte indígena neozelandês), pronunciou-se acerca de “Assassinos da Lua das Flores” na sua conta de Twitter, afirmando a 23 de outubro: 

Eu não sinto que estas pessoas muito reais tenham recebido um retrato justo, com honra e dignificação das suas mortes. Pelo contrário, acredito que mostrar mulheres nativas a serem mortas no ecrã, desta forma, normaliza a violência cometida contra nós e desumaniza.

A atriz revelou ainda, nesta mesma rede social, que foi muito difícil assistir a esta obra: “Imaginem as piores atrocidades cometidas contra os teus ancestrais, e depois ter de ver um filme repleto delas, sendo que a única pausa são cenas de 30 minutos de brancos a planear estas mortes”. 

Martin Scorsese
‘Killers of the Flower Moon’ © Apple TV



Devery desenvolve com eloquência o seu argumento, elogiando Lily, o seu trabalho, bem como o empenho da população nativa envolvida na obra, enfatizando a catarse que certamente sentiram durante este processo de produção. 

Remata com “Preferia ver um filme de 200 milhões de dólares, da parte de um/a cineasta Osage, a contar a sua história”. 

E por muito que possamos considerar a opinião desta atriz como mais que justa (que é),  a verdade desoladora é que cineastas nativo-americanos/as pura e simplesmente não têm (de momento) acesso à criação de grandes épicos como este ‘Western’ (salvo seja) de Scorsese. Com um orçamento desta dimensão, a Screen Rant defendeu que, para singrar, esta obra precisa de duplicar o seu orçamento. Tal não é um feito pequeno para uma narrativa com uma duração de mais de 3h30. 

O QUE PODERIA SIGNIFICAR A VITÓRIA DE LILY GLADSTONE NOS ÓSCARES?

Lily Gladstone Martin Scorsese
©2023 Paramount Pictures

A Academia de Artes e Ciências Cinematográficas de Hollywood, essa tem uma relação histórica pouco exemplar quando falamos de representação indígena. 

Apenas três pessoas de origem indígena foram, em toda a história dos Óscares, nomeadas para o Óscar de Melhor Atriz (uma delas recentemente, Yalitza Aparicio por “Roma” e outra Merle Oberon, em 1936, que tentou esconder tal herança)

Já a presença de uma pessoa nativa no palco dos Óscares mais ‘badalada’, a de Sacheen Littlefeather, em 1973, em representação de Marlon Brando, foi recebida com ira. Mais tarde, aquando da morte recente da ativista e atriz, foi revelado pela família que esta havia fabricado a sua origem nativo-americana. 

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Neste caso, o burburinho da temporada de prémios aponta para o facto da herança Blackfeet e Nimmipuu de Gladstone poder vir a ajudá-la na corrida aos Óscares. Não só a sua prestação é inegável, como a indústria do cinema dos EUA tem ainda um longo percurso no sentido de reconhecer as histórias da sua população nativa. 

E com o holofote em Lily e na sua corajosa Mollie, não será também possível que vejamos uma maior atenção a ser prestada às histórias das tribos fundadoras do território que viria a tornar-se os EUA? 

TRAILER | ASSASSINOS DA LUA DAS FLORES NOS CINEMAS

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