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A Flor do Buriti, a Crítica | João Salaviza e Renée Nader Massora dão a conhecer a história do povo Krahô

O massacre do povo Krahô está em destaque em “A Flor do Buriti”, a nova obra de João Salaviza e Renée Nader Massora.

No Festival de Cannes de 2013, membros da equipa luso-brasileira que produziu “A Flor do Buriti”, 2023, entre os quais o português João Salaviza e a brasileira Renée Nader Messora que assinam a realização, desfraldaram uma faixa onde se podia ler “The Future Of Indigenous Lands In Brazil Is Under Threat” (O Futuro Das Terras Indígenas No Brasil Está Sob Ameaça), e acrescentaram na nossa língua comum “Não ao Marco Temporal”. Para quem não saiba, o “Marco Temporal” refere-se a um argumento jurídico que defende a ideia de que os povos nativos só podem reivindicar determinada porção de uma área vital se já lá estivessem na data de promulgação da Constituição Federal, ou seja, a 5 de Outubro de 1988.

O PARAÍSO JÁ NÃO MORA AQUI…!

A Flor de Buriti
©Desforra Apache

Deste modo, o debate que desde então decorre veio reforçar, mas simultaneamente revelar de forma clara a estratégia dos ruralistas e agricultores apostados em barrar a demarcação das Terras Indígenas. Na prática, como sucedeu em muitos domínios de Norte a Sul (com inúmeras variantes e não apenas no Brasil), a aplicação de um expediente, entre muitos outros, destinado a facilitar o roubo do que podia e devia pertencer em primeiro lugar, de forma negociada e justa, aos primeiros habitantes do continente americano. No caso do filme, aos Krahô, habitantes nativos do Estado do Tocantins.

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Não sendo o único assunto, essa questão de natureza material mas igualmente histórica e identitária paira no ar durante o visionamento de uma obra intitulada no original “Crowrã” (palavra que identifica, na mitologia dos Krahô, o nome da flor da “árvore da vida”, o Buriti). Esta longa-metragem fotografada em 16mm, com resultados magníficos no campo imagético, encontra-se estruturada numa permanente dialéctica entre a linguagem do documentário e a abordagem mágica e poética, por vezes crua e sem rodriguinhos ou efeitos desnecessários, dos pressupostos da ficção cinematográfica. No plano da banda sonora, a presença do meio ambiente mistura-se com a sedutora verbalização dos diálogos na língua local, cruzada aqui e ali por vestígios do português que os Krahô usam para designar situações, objectos ou até emoções que não faziam parte da sua gramática antes da colonização.




Daqui resulta uma abordagem densa mas justa do modo de ser e estar de uma comunidade (sobretudo na forma como articula os diversos segmentos que apontam para o percurso individual de cada personagem, homens, mulheres e crianças que nunca se afastam para muito longe do círculo das suas relações familiares), assim como das razões para viver da maneira como vivem numa visão mais geral e integrada do colectivo.

A Flor de Buriti
©Desforra Apache

Por largos períodos não há propriamente uma história, mas sim um retrato coral composto por muitas histórias, muitas confissões, muitas perspectivas que se formam, muitos sonhos que se interpretam e muitas decisões rumo a um futuro incerto mas que se pretende, seja lá o que ele for e quando for, mais livre e digno para os que no passado e presente sentiram e sentem a pressão dos preconceitos e das políticas que sempre os colocaram de parte, num descarte racial e social que nem os governos socialmente mais empenhados conseguiram minorar, contrariar de forma absoluta ou pura e simplesmente eliminar.

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Neste mosaico de antropologia visual, um único momento aproxima-nos de uma narrativa mais clássica. Trata-se da evocação de um massacre ocorrido nos anos quarenta do século XX que vitimou uma grande parcela da população Krahô. Quem se der ao cuidado de pesquisar os primórdios do percurso e implantação dos imigrantes que acabaram por abraçar a actividade de fazendeiros e que a partir da Europa se deslocaram para o Novo Mundo em busca de uma vida melhor (muitos saíram dos seus países de origem como gente escravizada pelas classes dominantes e uma vez instalados nos novos contextos geográficos comportaram-se face aos povos nativos como os canalhas que antes os exploravam), irá descobrir um rol de prepotências e de violência organizada que explica muitos dos preconceitos sociais e raciais que subsistem em países como o Brasil, mas não só, infelizmente.




Essa sequência que descreve com alguma minúcia o projecto de genocídio dos Krahô como que divide “A Flor do Buriti” em duas partes: a parte correspondente ao desejo de salientar o que de específico existe na sua cultura no plano espiritual e secular, e a parte que corresponde ao seu desejo de afirmação perante o poder instalado em Brasília. Por isso o filme adquire a sua faceta mais militante quando investe na ida de um grupo de activistas Krahô ao grande encontro dos povos indígenas que em plena era Bolsonaro e na capital do país desafiou com coragem as linhas gerais definidas pela política de direita e extrema-direita que então dominava o status quo brasileiro.

A Flor de Buriti
©Karo Filmes

Mas, como se comprova, por vezes a História anda mais depressa do que o combate e boa-vontade dos cineastas, e ouvir “Fora, Bolsonaro” parece algo anacrónico nos dias que correm, sobretudo depois de assistirmos ao regresso de Lula da Silva ao poder. Tomada de posse onde não faltou a presença de um representante das nações indígenas. Todavia, em boa verdade, Jair Bolsonaro pode ser um fantasma do passado, mas desgraçadamente os bolsonaristas continuam por lá acantonados na esperança de um golpe. Por isso, este filme possui inegável actualidade e continua a ser uma peça de resistência.

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A Flor do Buriti, a Crítica
A Flor de Buriti

Movie title: Crowrã

Director(s): João Salaviza, Renée Nader Messora

Actor(s): Francisco Hyjno Kraho, Ilda Patpro Kraho, Luzia Cruwakwyj Kraho, Solane Tehtikwyj Kraho, Raene Kôtô Krahô

Genre: Drama, 2023, 123min

  • João Garção Borges - 75
75

Conclusão:

PRÓS: Todos os motivos que apontei e ainda alguns outros que ajudam esta obra de resistência, realizada com a sensibilidade poética e militante de uma dupla de realizadores com um olhar especial sobre o outro, a nação Krahô, à qual dedicaram já mais do que uma simples e fugaz abordagem etnográfica. Recordo a anterior incursão pelo universo nativo na seguríssima ficção “Chuva É Cantoria Na Aldeia dos Mortos”, 2018, (Prémio Especial do Júri no Festival de Cannes).

Desta vez, o mais recente filme recebeu em 2023, na secção “Un Certain Regard”, o Prix d’Ensemble (Prémio de Elenco).

Para além dos prémios atribuídos na Côte D’Azur, “A Flor do Buriti” circulou por vários outros festivais, entre eles:

Filmfest München – Prémio CINEVISION
Mar del Plata International Film Festival – Prémio APIMA para Melhor Filme
Festival dei Popoli – Melhor Filme
RIDM Montreal International Documentary Festival – Prémio Especial do Júri
Lima Film Festival – Prémio SIGNIS
Huelva Ibero American Film Festival – Prémio Especial do Júri + Prémio CASA IBEROAMERICANA para Melhor Filme
El Gouna International Film Festival – Prémio GREEN STAR
Brussels En Ville Int. Film Festival – Grande Prémio
Berwick Film Festival – Prémio NEW CINEMA
Cinema Eye Honors – Prémio HETERODOX

Para além dos prémios, a certa altura na banda sonora ouve-se a voz inconfundível (para quem a conhece) de uma cantora e actriz de quem a ditadura brasileira não gostava, a pernambucana Zélia Barbosa. Duas mulheres Krahô ouvem-na, e aqueles que a ouviram nos anos de descoberta da sua arte vocal e musical através de um só disco de 1967, intitulado “Brasil – Sertão e Favelas” (editado em França pela editora Le Chant Du Monde), agradecem a inserção das suas canções que, seguramente, não foi por acaso. Nada, aliás, se deve ao acaso neste filme urgente e necessário.

CONTRA: Nada, mesmo nada, contra o projecto cinematográfico e sua importância no combate pela defesa do património histórico e filosófico do povo Krahô. Pessoalmente já me apaixonei por matérias similares (mas no seio dos guaranis), e confesso que não me importava nada de assinar este filme ao lado do João Salaviza e da Renée Nader Messora.

Mas deixem-me dizer uma coisa: seria muito difícil adaptar as legendas, na cópia que vai estrear no nosso circuito comercial, para o português de Portugal? Sejamos francos, a força do filme supera a ausência desse “pormenor”, mas o esforço permanente, que quer queiramos quer não, fazemos para seguir os diálogos e articulá-los com uma língua que a maioria de nós não domina, far-se-ia num contexto de muito mais próxima atenção ao que vemos e ouvimos, muito mais sólida seria a percepção das diferentes motivações das personagens, e as suas acções seriam absorvidas com muito mais eficácia e fluidez, se evitássemos a preocupação de reorganizar plano a plano, sequência a sequência, não digo apenas a gramática mas a semântica das frases.

Trata-se não de uma crítica, mas apenas de uma sugestão…!

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