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A Terra Prometida (Shoshana), a Crítica | Michael Winterbottom conta a história de paixão e luta numa Palestina ocupada

“A Terra Prometida” (Shoshana), de Michael Winterbottom, explora a história real de paixão e luta no período da ocupação britânica da Palestina.

Nos dias que correm, um filme como “Shoshana” (A Terra Prometida), 2023, realizado pelo inglês Michael Winterbottom, pode levantar mais interrogações do que as que seriam expectáveis noutras eras de menor intensidade emocional. Tudo por causa dos conflitos que há muitas décadas ensombram o Médio-Oriente, e a Palestina em particular, cuja memória muito viva encontra uma horrível continuidade na barbárie a que assistimos diariamente a partir da Faixa de Gaza e ainda da Cisjordânia ocupada ilegalmente por Israel. Não somos nós que o dizemos, mas sim as resoluções a esse respeito provenientes das Nações Unidas.

O PECADO ORIGINAL

A Terra Prometida (Shoshana)
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Na verdade, a acção deste filme decorre no passado mas numa época muito conturbada do ponto de vista político e militar em que a Palestina se encontrava debaixo do controlo das autoridades britânicas, o Palestine British Mandate (Mandato Britânico para a Palestina), que fora aprovado em Londres a 22 de Julho de 1922 confirmando a ocupação na prática que durava desde o final da Primeira Guerra Mundial e desde o início dos anos vinte na Transjordânia. Mas será necessário recuar uns anos para melhor perceber o que realmente se passava e o que de facto estava a germinar naquelas paragens que começaram a ser invadidas por um crescente número de judeus, oriundos sobretudo da Europa Central e do Leste e de países onde se iniciara um movimento de ressurgimento espiritual com consequências não apenas filosóficas mas materiais.

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Falamos do Sionismo, que defendia entre outras linhas de orientação global a ideia de se criar um Estado Judaico no que fora durante muitos anos parte integrante do Império Otomano. Dado que os Turcos se aliaram à Alemanha durante a Primeira Guerra Mundial, com a derrota desta última o seu poder na região soçobrou e uma parte significativa dos despojos de guerra no plano geo-estratégico foi partilhada entre a França (a parte Norte do referido Império, onde encontramos hoje a Síria e o Líbano) e a Grã-Bretanha (a parte Sul, ou seja, a Palestina). Nesta altura a população árabe continuava a ser maioritária, e se da parte dos judeus residentes ou imigrantes, ainda minoritários, havia um sentimento nacionalista que entrava em rota de colisão com o dos movimentos nacionalistas árabes, a questão adquiriu proporções mais graves quando as promessas feitas aos palestinianos de poderem sonhar com um Estado Palestiniano independente se esfumaram devido ao facto de os aliados vencedores pura e simplesmente ignorarem o que de forma mesmo assim ambígua haviam formulado como hipótese de convivência pacífica entre árabes e judeus, incluindo a harmonia dos que professavam diversas religiões, sendo as mais representativas o islamismo, o judaísmo e o cristianismo.




Não tardou pois a gerar-se uma série de conflitos e revoltas que opuseram as forças nacionalistas árabes e as sionistas, com ambas as partes a demonstrar um gradual apetite pela resposta militar ao cada vez maior número de provocações que já não passavam só pela retórica política, julgada inócua face ao desigual posicionamento das forças submetidas ao ocupante europeu. Do lado judaico foi na altura fundada uma organização armada, a Haganah, inicialmente controlada por sionistas entre os quais se encontravam alguns socialistas. Perfilavam-se então como defensores dos judeus, mas preconizavam o projecto de viver conjuntamente com as populações árabes palestinianas.

A Terra Prometida (Shoshana) Michael Winterbottom
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Não obstante, outra facção sionista, digamos, de extrema-direita fascista, liderada por Vladimir Zabotinsky (confesso admirador do ditador italiano Benito Mussolini), acabou por subverter os valores civilizacionais dos primeiros e criou uma outra organização, a Irgun Zvai Leumi, que não hesitou em usar a violência contra os árabes e igualmente contra os britânicos que os procuravam reprimir, nem sempre com sucesso. Terrorismo foi a via que escolheram, e múltiplos atentados sucederam-se com um impacto decisivo na desestabilização do sempre frágil status quo existencial da região.

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Será neste contexto que iremos encontrar Shoshana Borochov, filha de um sionista de esquerda que nos anos vinte viajara desde a Rússia natal para se instalar em Tel Aviv. Personagem baseada numa figura que realmente existiu, Shoshana Borochov (interpretada pela actriz russa Irina Starshenbaum), ela própria defensora do socialismo sionista, irá nas suas andanças pelos meios mais ou menos boémios da cidade mediterrânica conhecer um agente dos serviços secretos ingleses, Thomas Wilkin (Douglas Booth). Facto que seria perfeitamente normal num contexto normal, mas que num contexto generalizado de desconfiança e ódio constituía uma clara e perigosa relação sentimental condenada pelos seus correligionários, pelos adversários políticos e pelos familiares que não viam com bons olhos a exposição que isso lhe dava no conjunto de actividades subversivas em que se envolvera. Nomeadamente, essa militância passava por acções de preparação guerrilheira junto dos Kibutz para organizar a sua eventual auto-defesa, onde se usavam armas cuja posse estava proibida, quer a árabes quer a judeus.




Nos muitos caminhos do labirinto e do vespeiro em que as personagens se entrecruzam, Michael Winterbottom procura articular com a minúcia possível, num filme de 121 minutos, um conjunto de sequências onde se destaca pela voz da narradora a mulher e militante Shoshana, assim como o leque complexo de relações entre o que podemos apelidar de “polícia bom”, ou seja, o seu amante Thomas Wilkin, e “polícia mau”, Geoffrey Morton (Harry Melling), um daqueles mercenários do dever que não olhava a meios para atingir os fins. Da personalidade sinistra deste último podemos interpretar a ideia de que o seu objectivo não era controlar os aspectos mais evidentes da subversão, mas sim eliminar os que perseguia em nome da lei e das ordens ditadas a partir de Londres.

A Terra Prometida (Shoshana) Michael Winterbottom
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Esta personagem possui o olhar alucinado de um autêntico esbirro que sem pingo de humanidade investia contra aqueles que ele julgava inferiores, no caso dos árabes, ou inimigos dos interesses de quem lhe pagava o salário de repressor. Pessoas destas eram essenciais para manter as políticas racistas e colonialistas que encontravam eco nas idiossincrasias ideológicas de muitos países europeus, aqueles que mantinham Impérios que ajudavam a consolidar o seu poder e influência no mundo. Portugal não foi excepção, mas comparado com o Reino Unido, em certos domínios ultramarinos, os nossos compatriotas não passaram de meninos do coro. No meio da narrativa, e no interior da sua zona de maior conflito, o argumento não recuou perante a dificuldade de fazer passar a mensagem de que, mesmo no seio dos que lutavam por algo mais do que contrariar a subserviência ao ocupante, existiam contradições gritantes capazes de gerar ainda mais violência do que aquela que era usada pelas autoridades policiais.

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Deste modo, podemos dizer que a figura controversa de um sionista como Avraham Stern (no seu currículo encontramos uma frustrada aliança com os nazis para combater os britânicos), dissidente do Irgun a que pertenceu desde a primeira hora, posteriormente fundador de um outro grupo mais radical, o Lehi (conhecido por gang do Stern) quase marginaliza a importância de Shoshana enquanto centro das nossas atenções. Há um nítido deslocamento da acção para a sua aturada e sistemática perseguição onde, por razões óbvias, se destacam os polícias Thomas Wilkin e Geoffrey Morton. Desvio narrativo com alguns episódios paralelos que desequilibra um pouco as razões que davam força ao relacionamento cada vez mais íntimo e assombrado do casal Shoshana/Wilkin. No entanto, na sombra e empurrando a protagonista para uma clandestinidade mais ou menos previsível, o guião lembra-nos que a inevitabilidade dos acontecimentos futuros começara a ser desenhada num momento de relativo sucesso policial, mas que no final das contas essa situação estava sujeita aos reveses da História no pós-Segunda Guerra Mundial, redundando num abandono da região a numa outra guerra que desgraçadamente ainda hoje perdura e que não acabou, antes pelo contrário, com o reconhecimento em 1947, por parte das Nações Unidas, da possibilidade de existirem dois estados separados, o Estado de Israel e o Estado da Palestina.




O QUE NASCE TORTO TARDE OU NUNCA SE ENDIREITA

A Terra Prometida (Shoshana) Michael Winterbottom
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De facto, nas derradeiras imagens de “Shoshana” iremos ouvir a confissão de que ela e os seus companheiros do Haganah se juntaram aos que outrora criticavam e acusavam de extremistas por representarem facções ou até mesmo seitas que não se enquadravam nos planos originalmente defendidos pelos Sionistas Trabalhistas. Nesses derradeiros minutos vemo-la numa coluna militar já como guerrilheira de corpo inteiro. Numa determinada acção de combate, aponta a metralhadora para um local de onde se vislumbra o avanço de outra coluna, muito provavelmente de árabes, mas a realização evita intencionalmente qualquer identificação segura. Por último, Shoshana carrega no gatilho e dispara de frente contra a objectiva, ou seja, contra o ponto de vista dos espectadores ou, pelo menos, procurando contrariar o relativo distanciamento do seu ilusório ponto de vista.

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Um ponto de vista que não deixa de incluir interrogações de natureza moral. E uma pergunta fica no ar: se soubesse o que sabemos hoje, contra quem se insurgiria a militante Shoshana? Contra os britânicos? Não, porque seria lutar contra uma sombra, já que eles sacudiram a água do capote e foram embora em 1948. Contra os árabes, incluindo os árabes israelitas? Não me parece, seria uma opção errada que só iria apagar o fogo com gasolina. Não há resposta a partir do filme. Mas, se mantivesse os seus ideais e os do seu pai, provavelmente investiria contra aqueles que arrasaram a promessa de construir na Palestina uma solução que encaixasse os dois povos, árabes e judeus. Projecto aparentemente perdido que passasse pelo respeito mútuo das suas diferenças e pela valorização daquilo que os aproximasse, a começar pelo facto de serem dois povos semitas com raízes que se cruzam num passado historicamente relevante, ao contrário do que muitos andam para aí a dizer.

A Terra Prometida (Shoshana), a Crítica
A Terra Prometida (Shoshana) Michael Winterbottom

Movie title: Shoshana

Director(s): Michael Winterbottom

Actor(s): Douglas Booth, Irina Starshenbaum, Harry Melling, Aury Alby

Genre: Thriller, 2023, 119min

  • João Garção Borges - 75
75

Conclusão:

PRÓS: Um filme urgente para melhor perceber como certas situações perduram nos nossos dias a partir de situações mal resolvidas no Médio Oriente, e em particular na Palestina.

Boa reconstituição da época, a Palestina dos anos quarenta do século XX, curiosamente conseguida na região da Apúlia, comuna de Ostuni, em Itália.

CONTRA: Nada.

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