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Obrigado, Rapazes, a Crítica | Antonio Albanese surpreende nesta comédia italiana de Riccardo Milani

Riccardo Milani dá a conhecer a sua mais recente obra, “Obrigado, Rapazes”, uma comédia protagonizada por Antonio Albanese e Fabrizio Bentivoglio.

Esta simpática comédia começa com um ruidoso furor sexual numa antecipação mais do que óbvia da verborreia que acompanha um monumental orgasmo, daqueles que só acontecem nos filmes pornográficos onde a verdade dá lugar ao falso para melhor fazer passar, diria mesmo, enfiar, a mensagem na cabecinha daqueles que passam a vida a ver os outros comer para saciar a sua fome. O filme, não o porno mas o que nos interessa aqui, chama-se “Grazie Ragazzi” (Obrigado, Rapazes), 2022, e foi realizado pelo italiano Riccardo Milani. Como dissemos, no princípio era o verbo. Estamos num estúdio de dobragens e quem dá voz a esta fingida excitação são dois actores, um homem e uma mulher, sendo que a personagem masculina pouco depois será catapultada para a realidade das coisas práticas no papel de protagonista de uma espinhosa missão.

FANTASMAS DA LIBERDADE

Obrigado, Rapazes
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O nosso homem chama-se Antonio (Antonio Albanese) e começara a carreira como actor sério, mas quando se viu desempregado teve de se agarrar a biscates como o descrito para ir sobrevivendo ao seu sombrio dia a dia. Mora numa casa ao lado de uma ferrovia, ainda por cima não longe do aeroporto, e sempre que o encontramos pela manhã, na cama e mal dormido, um comboio ou um avião invariavelmente fazem estremecer as paredes e os vidros do seu apartamento. O actor intermitente, falido, continua a relacionar-se com um antigo colega de profissão, pelos vistos mais bem-sucedido. Os dois alimentam uma relação algo ambígua em que os egos de cada um se entrecruzam nem sempre da melhor maneira.

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Seja como for, a certa altura surge uma oportunidade que, apesar das legítimas dúvidas, Antonio acaba por aceitar: dar aulas de encenação numa penitenciária a um grupo de voluntários que estivessem dispostos a partilhar essa experiência singular. Daqui para a frente o filme investe com vigor na abordagem dos imponderáveis que uma situação desta natureza gera. Os primeiros confrontos verbais com os reclusos (e alguns físicos) serão dignos da melhor comédia humana desenhada para caracterizar o perfil e personalidade de cada personagem e ainda o seu posicionamento futuro nas principais linhas da acção. Trata-se de confrontar o ponto de vista de alguém que vem do exterior com os pontos de vista dos que a partir do interior olham para aquela figura estranha ao ambiente prisional.




Provocação atrás de provocação, pouco a pouco os conflitos gerados atenuam-se a favor de um círculo íntimo do que podemos classificar como bons camaradas que, não sendo unha com carne, possuem pelo menos o dom de saber qual o papel que cada um pode desempenhar numa eventual aprendizagem da linguagem cénica com vista a uma futura participação numa peça de Teatro. Na primeira fase assistimos a uma representação ingénua mas genuína, ainda e sempre voltada para o interior da cadeia, um singelo e breve sketch humorístico com sucesso garantido junto dos seus pares e das autoridades prisionais, muito por causa de ser meio fábula, meio burlesco.

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Na sequência deste breve fulgor, a realização e os argumentistas irão introduzir, naquilo que até ali parecia uma mera ficção crítica das condições penais, uma acutilante e airosa dose de humor sobre comportamentos confinados num sistema onde a liberdade era mais do que vigiada. Paralelamente, inserem um primeiro elemento de medo, de verdadeira ameaça sobre o professor de arte dramática e a célula de furiosos dramáticos: um dos reclusos, com claro ascendente sobre os outros, vai obrigar um dos actores a abandonar o grupo, aparecendo a seguir como o seu substituto. Entretanto, o modo como ele explica a lei da cadeia a Antonio constitui o momento mais pesado e revelador da violência que ali se exerce e que não passa necessariamente apenas pela catarse física.

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De entre os muitos episódios que a seguir a esta ocupação do lugar do outro se sucedem, aquele momento de viragem podia ser o fim da experiência redentora, mas não. Na verdade, Antonio já percebera antes que o caminho para unir aqueles ragazzi, rapazes jovens e menos jovens, passava pela compreensão de que eles estavam dia após dia, sobretudo noite após noite, à espera de ultrapassar as rotinas do encarceramento, na expectactiva de qualquer coisa que os levasse a vislumbrar uma réstia que fosse da liberdade perdida. No fundo, a ilusão de uma liberdade naturalmente impossível face aos constrangimentos da disciplina imposta.




Percebera assim que a peça que melhor podia adaptar-se aos atribulados ensaios em grupo e ao seu sentimento geral seria uma inserida no Teatro do Absurdo. Por isso irá escolher, num momento de desespero seguido de iluminação intelectual, o “En Attendant Godot” (À Espera de Godot), o clássico existencialista originalmente escrito em francês pelo inglês Samuel Beckett (1906-1989). Muito a custo e contra a corrente, Antonio irá conseguir levar a sua missão até ao fim e a peça acabará por ser estreada, representada com sucesso e solicitada para diversas cidades italianas e para instituições de prestígio, como será o caso do Teatro Argentina de Roma. Peça em dois actos, nela contracenam quatro personagens: Vladimir, Estragon, Pozzo e Lucky. Todas elas serão encarnadas por quatro reclusos, a saber, Aziz (Giacomo Ferrara), Diego (Vinicio Marchioni), Damiano (Andrea Lattanzi) e Mignolo (Giorgio Montanini).

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A estes junta-se uma figura deliciosa nos seus silêncios e na sua imponente presença, o romeno Radu (Bogdan Iordachioiu), a quem cabe um dos mais surreais e divertidos momentos do filme quando aparece a atravessar o palco debaixo de uma manta que lhe cobre a cabeça e parte do corpo, dizendo no final e já nos bastidores: “Eu sou o Godot”. De fora da equação ficara Christian (Gerhard Koloneci), empurrado pela prepotência de Diego, o sinal de que a lei da selva imperava mesmo quando a simpatia parecia começar a aflorar da boca e da mente destes homens. Na verdade, o simples facto de poderem sair da prisão por breves momentos era encarado como uma bênção que se podia e devia obter a qualquer preço.

Obrigado, Rapazes
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Experimentavam a possibilidade de sentir a liberdade pela qual esperavam, tal como as personagens de Samuel Beckett esperavam por Godot. Só que, num e noutro caso, em vão. Depois da aclamação das diferentes plateias, no regresso ao cárcere passaram a sentir ainda mais do que antes a arrogância dos guardas no puro e duro cumprimento de um poder que muitas vezes ultrapassava o básico e necessário. Naturalmente, esse embate iria espoletar a perspectiva, anunciada de forma subliminar, de uma fuga. No plano da interacção ficcional, o filme corre sobre rodas até ao momento em que essa fuga se consolida, dando lugar a um último quarto de hora em que prevalece uma visão algo condescendente do grupo.




Não compromete de forma irreversível o que víramos até ali, mas sempre esperei, não pelo Godot que nunca iria aparecer, mas pela manutenção da visão desencantada que Riccardo Milani demonstrara até ali no seu controlado cinismo. Porque não se pode dizer que o argumento seja meigo para com as personagens em presença. Os defeitos de quem cumpre pena nunca foram apagados pelas virtudes que demonstraram enquanto homens no corpo de improváveis actores, no exercício de um fingimento redentor. Por isso, gostaria que a realização fosse mais cínica e assumisse até ao último plano a postura crítica que adoptou no núcleo central do filme. E nem era preciso copiar a mestria de um Billy Wilder numa das suas obras máximas, “Stalag 17” (Inferno na Terra), 1953. Wilder usou os mecanismos da comédia para nos falar da vida canalha de prisioneiros de guerra num campo de concentração nazi, que de forma muito eficaz não pinta com cores luminosas nem com argumentos que o fizessem cair na armadilha da demagogia moralizante.

Obrigado, Rapazes
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De qualquer modo, “Obrigado, Rapazes” fica na memória como uma obra consistente, com actores de primeira água a darem muitíssimo bem conta do seu papel e com um ritmo que nunca nos desvia do essencial, a visão do que podem homens condenados fazer, ou não, para se libertarem das grilhetas físicas e mentais. Parafraseando Samuel Beckett na última página e no último diálogo da sua peça:

Vladimir: Alors, on y va? (Então, vamos?)

Estragon: Allons-y (Sim, vamos.)

E está dito…!

Obrigado, Rapazes, a Crítica
Obrigado, Rapazes

Movie title: Grazie Ragazzi

Director(s): Riccardo Milani

Actor(s): Antonio Albanese, Fabrizio Bentivoglio, Sonia Bergamasco, Giacomo Ferrara

Genre: Comédia, 2023, 117min

  • João Garção Borges - 65
65

Conclusão:

PRÓS: Em 2023, o protagonista Antonio Albanese recebeu o Nastro D’Argento, atribuído pelo Sindacato Nazionale Giornalisti Cinematografici Italiani.

Nos Ciak d’Oro (prémio da revista italiana de cinema), o destaque foi para o colectivo, já que recebeu o Prémio para Melhor Comédia, galardão que se afigura mais justo face aos valores de produção que o elenco principal e a produção nos oferecem.

CONTRA: Nada de especial.

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