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Primeiro Passa no Exame, em análise

“Primeiro Passa no Exame” é mais uma obra do cineasta Maurice Pialat a ficar em destaque no ciclo especial da Leopardo Filmes!

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PASSE TON BAC D’ABORD (PRIMEIRO PASSA NO EXAME), 1978, escrito e realizado por Maurice Pialat, rodado no final dos anos setenta numa zona proletária e de pequeno-burgueses remediados do Norte de França, na cidade mineira de Lens, apresenta-nos um quadro social e económico que surpreende os mais distraídos que provavelmente dirão, fora questões de guarda-roupa e um ou outro penteado daquela época: “Podia muito bem ser produzido nos dias de hoje”. Porque no essencial nada mudou. Bem pelo contrário, muito manteve-se e até foi crescendo de intensidade ao longo dos últimos anos, como as fissuras de classe e as frágeis perspectivas de futuro que atingiam novos e velhos, gerando um gritante mal-estar, sobretudo entre uma certa juventude que se via obrigada a abandonar os estudos para abraçar sem gosto profissões mais ou menos mal pagas e onde não eram exigidas grandes qualificações, ou então a aceitar actividades rotineiras que não necessitavam para nada de licenciados para serem exercidas com a esperada eficácia. Homens e mulheres que permaneciam assim, quer no activo quer no desemprego, cercados de muros invisíveis redutores de uma desejada liberdade que se confrontava com a inquietação colada como um estigma ao corpo e ao pensamento dos filhos da classe operária, que não encontravam saídas viáveis para o seu futuro nos locais onde nasceram, vendo-se os que ainda estudavam a braços com o dilema de ficar ou partir. E, neste contexto, para que raio servia passar no exame?

FRANCE, ENCORE ET TOUJOURS. C’EST LA VIE…! (*)

O Primeiro Passa no Exame
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Partir não se vislumbra como a via mais fácil, mas ficar significa mergulhar na mais básica das mediocridades: casa, escola (quando ainda se lá vai), café onde a maioria se reúne e partilha amores e desamores, e noites, longas noites em que a fuga da realidade se organiza com base na bebida, nos fumos legais e ilegais, nos contactos fortuitos e nos jogos de sedução da mais diversa natureza, passando inevitavelmente alguns pelos abismos da canalhice, muitos pela mais óbvia promiscuidade, e sempre ou quase sempre colocando o acento numa estratégia de evasão do dia-a-dia que se prolonga para o sentimento de desapego face ao círculo íntimo e muitas vezes demasiado austero do seio familiar. Digamos apenas que , nas atmosferas e na geografia onde Maurice Pialat fez incidir a atenção, os protagonistas deste filme só apresentam um pequeno mas significativo pormenor que os distingue dos que na actual sociedade francesa vemos referidos como os rebeldes sem causa. Na sua larga maioria são franceses de gema, e naquelas paragens de gente habituada ao duro labor das minas não encontramos um só emigrante, um negro, um magrebino, um asiático. Sim, essa será a única diferença que marca a ficção de PRIMEIRO PASSA NO EXAME e que distingue o retrato daquele fim de década do que hoje se podia fazer. Naturalmente, há um outro detalhe: ninguém vive fechado numa bolha egocêntrica nem afocinhado nas redes sociais. Em boa verdade, outrora já se pressentia, nomeadamente nas grandes cidades como Paris, que o futuro do hexágono seria multicultural. Mas essa percepção ainda não atingira os quadrantes mais profundos das classes desfavorecidas que não integravam a grande malha urbana dominada pela pura e dura lógica capitalista, apostada em reconverter o velho contrato social no moderno paradigma do liberalismo económico, no pior sentido da palavra, que passou a ser a força dominante nas relações laborais.

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O Primeiro Passa no Exame
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Maurice Pialat procurou neste filme não concentrar demasiado o peso narrativo sobre uma personagem, ou sobre um pequeno grupo protagonista. Optou antes por uma diversidade de caminhos que cada actor podia representar em função das suas características próprias, assim como as sinergias do seu posicionamento no grupo, privilegiando no entanto a figura de um rapaz que não anda atrás de uma só rapariga mas de uma multitude de namoros fugazes, muitas vezes sobrepostos, numa voragem que nada faz pensar num acto de aproveitamento da sua situação de macho a cortejar a fêmea disposta ao que der e vier. Na verdade, ele quer viver intensamente as suas aventuras de sexo, cigarros (tabaco negro, e para isso fuma os saborosos e bem fortes Gitanes ou Gauloises), bebida q.b., mas no processo de sedução não deixa de usar a sua natural sensualidade, evitando as atitudes de um falocrata como as que o realizador abordou num filme anterior, NOUS NE VIEILLIRONS PAS ENSEMBLE (QUANDO O AMOR ACABA), 1972. De facto, a escolha dos actores constitui um dos aspectos mais sublimes que demonstram o que já sabíamos, a capacidade de Maurice Pialat olhar para as personagens que eles defendem (seguramente, alguns actores estão ali a representar as suas próprias idiossincrasias existenciais) e retirar delas e da sua interacção o melhor que podem dar, de modo a estruturar sem demagogia uma visão realista e o mais verdadeira possível da condição humana inerente a uma série diversificada de adolescentes e jovens adultos no limiar das encruzilhadas que os empurram para um buraco de desespero e depressão ou raramente para um breve fulgor de felicidade ou esperança. Do plano final fica-nos a memória de um casamento forçado por uma gravidez que já não engana ninguém, e a falsa alegria do momento pode ler-se como a mais amarga das soluções, algo do género “Foi o que se pôde arranjar…!”, ou um cruel e mais resignado “C’est la vie…!”

O Primeiro Passa no Exame
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Um filme de uma lucidez cristalina, sequências perfeitas onde não subsiste nada de superficial, que merece ser visto ou revisto no contexto da mais do que louvável iniciativa da LEOPARDO FILMES e da MEDEIA FILMES, intitulada UM VERÃO COM MAURICE PIALAT.

(*) FRANÇA, AINDA E SEMPRE. É A VIDA…!

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Primeiro Passa no Exame, em análise
O Primeiro Passa no Exame

Movie title: Passe ton bac d'abord...

Director(s): Maurice Pialat

Actor(s): Sabine Haudepin, Philippe Marlaud, Annick Alane, Patrick Lepcynski

Genre: Drama, 1978, 86min

  • João Garção Borges - 100
100

Conclusão:

PRÓS: Tudo o que disse, com especial destaque para a magnífica integração no plano da estruturação narrativa de um grupo diversificado de actores cujas capacidades individuais para compor as suas personagens, muitas certamente próximas das experiências da sua própria vida, constituem o melhor retrato de uma geração com preocupações não muito diferentes das que actualmente se revoltam face aos muros erguidos ao seu futuro.

Realização imaculada de Maurice Pialat.

É uma das duas obras do realizador que se mantinham inéditas no circuito comercial português. Trata-se assim de uma estreia que acrescenta, sem qualquer sombra de dúvida, valor ao ciclo UM VERÃO COM MAURICE PIALAT.

CONTRA: Nada.

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