A Vida Íntima de um Casal, em análise
A Medeia Filmes e a Leopardo Filmes deram a conhecer “A Vida Íntima de um Casal” como parte do ciclo Um Verão com Maurice Pialat!
Primeiro, um reparo que me parece importante para se perceber melhor como a distribuição cinematográfica num determinado momento e neste país, nada que não se passasse noutras geografias, perdeu a oportunidade de atribuir uma designação justa e até, digo eu, comercialmente mais forte a um filme que no original dá pelo nome LA GUEULE OUVERTE, 1973, produzido, escrito e realizado por Maurice Pialat. Em Portugal, por alturas da sua estreia, a 1 de Fevereiro de 1977, alguém se lembrou de facilitar as coisas e de ignorar o significado da expressão idiomática. Vai daí, atribuiu a esta obra seca, mas poderosa e fundamental para se perceber a relação do autor com a sua região natal (o Pays des Volcans no Auvergne, a França profunda, onde se situa a Vichy de má memória para quem viveu a Segunda Guerra Mundial e a ocupação nazi), a designação A VIDA ÍNTIMA DE UM CASAL. De fora, para um espectador menos cinéfilo, até podia funcionar como um apelo enganador para uma qualquer ficção canalha, idêntica a muitas que andaram na época a ser vomitadas nas salas de cinema abusando da liberdade adquirida e do fim da censura, prometendo sexo e sei lá que mais, regra geral hipocritamente denominadas “filmes com cenas eventualmente chocantes”. Pois bem, desenganem-se os espectadores que hoje queiram descobrir no ciclo UM VERÃO COM MAURICE PIALAT um exemplo dessas ficções para consumo de públicos pouco exigentes, antes da vulgarização que delas se faz hoje no streaming e não só. Neste caso, LA GUEULE OUVERTE corresponde ao melhor cinema francês onde se ousava falar do que muitas vezes se escondia, mas cuja matéria primordial incide, quer se queira quer não, no percurso existencial de qualquer cidadão, ou seja, a luta verdadeira e realista entre a vida e a morte.
DA MORTE ANUNCIADA E DA VIDA DE SOMBRAS NA FRANÇA PROFUNDA…!
Mas, já agora, o que quer dizer “la gueule ouverte”? Trata-se de uma expressão multifacetada, em que um dos possíveis significados, quando associado a circunstâncias que indiciam a morte, pode ser o desespero de morrer só e em grande sofrimento. Dado curioso: em 1972, ano da produção do filme, surgiu em França uma publicação chamada La Gueule Ouverte que afirmava na sua linha editorial ser “le journal qui annonce la fin du monde” (o jornal que anuncia o fim do mundo). O seu fundador foi Pierre Fournier, pacifista, jornalista e colaborador nos conhecidos Hara-Kiri e Charlie Hebdo.
Enfim, não vou aqui propor que se mude o que pela lei não se pode mudar, e passo já a A VIDA ÍNTIMA DE UM CASAL, ou melhor, a vida particular de Nathalie (Monique Mélinand, absolutamente genial no seu difícil papel de mulher em pleno sofrimento e com poucos meses de vida), a vida particular e mundana do seu marido (Hubert Deschamps), e a vida do filho do casal (Philippe Léotard), que partilha amores furtivos com serigaitas de ocasião e, por vezes, com profissionais da mais velha profissão do mundo, sempre nas costas da mulher (Nathalie Baye). Na verdade, o retrato a cores do preto e branco da existência de cada uma das personagens não podia ser mais duro e directo, mesmo cáustico e sem concessões. Tudo ao gosto de Maurice Pialat, que prefere a verdade das atitudes e das situações, a autenticidade quase palpável dos décors, ambientes pequeno-burgueses de uma região que vivia paredes meias com a grande cidade, a mais cosmopolita Clermont-Ferrand, a cidade Michelin, pólo de atracção de muitos operários, nomeadamente oriundos da emigração. Maurice Pialat concentra a atenção nas personagens que representam, para o melhor e o pior, a França provinciana que desdenhava naqueles anos a invasão do espaço gaulês pelos portugueses e árabes que chegavam em sucessivas vagas e que, segundo os locais, manchavam com a sua cor de pele escura ou morena a brancura dos herdeiros do famoso chefe militar Vercingétorix. Este caudilho dera cabo da cabeça aos romanos, mas acabou vencido por estes no longínquo ano de 46 a.C. Herói morto e enterrado, mas sistematicamente recordado e renascido na memória das forças vivas do hexágono. Recordam-se de o ver nas aventuras de Astérix? Era o que atirava o escudo do guerreiro com intencional violência aos pés de Júlio César.
Do ponto de vista formal, a realização volta a usar uma planificação que privilegia os longos planos, que duram o que precisam de durar e em que se dá a primazia ao diálogo. E quando não há nada para dizer, porque as imagens falam por si, o silêncio impera como um prenúncio da morte, como no estranho e perturbador silêncio do genérico inicial. Pouco a pouco vamos dando conta de que a estrutura da montagem articula, por um lado, a vida de uma mulher confinada às quatro paredes de um quarto e, por outro, a vida aberta e mesmo algo despudorada que as restantes personagens da família assumem como se o peso e a angústia da espera face ao inevitável fosse razão maior para quebrar o sofrimento pessoal e individual que não se queria nem desejava simétrico ao da mulher doente. No final, o modo como se fala de ramos de flores secas que perduram e se promove o regresso a uma falsa normalidade que prolonga o desapego familiar perante a mãe e mulher contrasta com o surpreendente desespero do marido, agora viúvo. Ele chora, recusa ir para Paris com o filho e nora e regressa a casa. Nessa altura, ao entrar na loja que constitui o seu ganha-pão, apaga as luzes e silenciosamente parece entrar numa caverna onde o negro das longas e frias noites o espera para o engolir, como se caísse na boca aberta, a gueule ouverte, de uma fera implacável.
A Vida Íntima de um Casal, em análise
Movie title: La gueule ouverte
Director(s): Maurice Pialat
Actor(s): Monique Mélinand, Philippe Léotard, Hubert Deschamps, Nathalie Baye
Genre: Drama, 1974, 82min
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João Garção Borges - 80
Conclusão:
PRÓS: Retrato sem concessões de uma região onde o produtor, argumentista e realizador tem as suas raízes. Notável interpretação das idiossincrasias da França profunda, o espaço que os parisienses costumavam apelidar, com alguma agressividade verbal, “a província”.
Mais uma vez, Maurice Pialat convocou actores profissionais para os cruzar com não-profissionais. E, mais uma vez, o resultado não podia ser mais equilibrado.
CONTRA: Nada.