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Quando o Amor Acaba, em análise

“Quando o Amor Acaba” foi a mais recente obra da filmografia do aclamado cineasta Maurice Pialat em destaque no ciclo da Leopardo Filmes!

“Todos conhecemos uma relação como a de Jean e Catherine, uma história que não tem sentido e à qual, no entanto, retornamos sem cessar, como se não houvesse outra possibilidade sobre a Terra […]. É simplesmente sublime. Assombrosa. Bruta. Obsessiva. Cinema.” Esta citação de Josh Safdie, cineasta americano nascido em 1984, retirada das notas que acompanham a promoção do ciclo promovido pela LEOPARDO FILMES e MEDEIA FILMES, intitulado UM VERÃO COM MAURICE PIALAT, resume bem o sentimento que fica no nosso espírito após o visionamento de NOUS NE VIEILLIRONS PAS ENSEMBLE (QUANDO O AMOR ACABA), 1972, de Maurice Pialat, e por isso aqui a destaco. Trata-se da sua segunda longa-metragem, realizada após uma notável primeira obra naquele formato de que já demos conta aqui com o mais do que justificado entusiasmo, L’ENFANCE NUE (A INFÂNCIA NUA), 1968. Pelo meio, realizou uma mini-série de sete episódios para a ORTF, LA MAISON DES BOIS, 1971 (salvo melhor informação, inédita em Portugal e, pelo que vi, mais uma que a RTP Memória ou outro canal que se dedique a relembrar o melhor do passado bem podiam comprar para exibição em vez de umas quantas vulgaridades que andam a exibir).

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Quando o Amor Acaba
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Em suma, Maurice Pialat desde cedo demonstrou inegáveis aptidões e refinada qualidade na manipulação da linguagem cinematográfica que o colocou a par dos grandes do cinema da sua geração, não obstante a sua completa e permanente preocupação de se manter independente das modas do momento ao longo de uma carreira marcada por muitos altos e alguns desvios que quase o faziam derrapar dos seus propósitos iniciais, ou seja, o de ser um observador com olhar crítico e muitas vezes impiedoso sobre o caminho que quer seguir e não hesita gritar alto e bom som, sem esquecer que do outro lado existe um público com quem pode gerar cumplicidades: “Faço o que quero com o meu cinema ou então… não estou para ninguém…!”

OS AMANTES INTERMITENTES…!

Quando o Amor Acaba
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Passemos agora ao filme que me apraz analisar, QUANDO O AMOR ACABA. Protagonistas, Jean (Jean Yanne), cineasta de que apenas vemos a função como operador de câmara ao serviço de encomendas dispersas, e Catherine (Marlène Jobert), a jovem amante que com ele vive uma atormentada relação de amor e sexo. Nunca se sabe bem se o que ela prefere passa por uma noitada das boas se por um fim-de-semana romântico num hotel com vista para o mar. E numa espécie de sub-divisão do protagonismo, a quase sempre ausente mas muito presente mulher de Jean, de seu nome Françoise (papel atribuído a uma muito segura Macha Méril), que aparece quando o cineasta Maurice Pialat deseja despejar água na fervura, leia-se, no feitio mais do que irascível, pouco seguro, machista e ciumento do marido com quem vive de modo intermitente, como intermitente são as relações dele com outras mulheres, sobretudo a eleita Catherine. Resta dizer que Françoise sabe da relação de Jean com Catherine e, dizemos nós, era para o lado que dormia melhor. Desde cedo pressentimos que aquela mulher sedutora e inteligente no modo como lida com pinças com as evidentes contradições da sua relação possui outras vidas, nomeadamente as que foi delineando nas suas intermitentes viagens pela Rússia, nos idos da então União Soviética. Durante o filme, com argumento escrito por Maurice Pialat a partir do seu próprio romance, Jean e Catherine irão passar por situações que podemos apelidar de canalhas, sobretudo devidas ao comportamento inqualificável do homem que com grande facilidade se arma em macho latino, ou melhor, macho francês numa versão um pouco mais grunha e menos subtil, para logo a seguir aparecer com um sorriso meio cínico, meio a medo, geralmente apavorado com a ideia de perder de vista a sua presa sexual. Na verdade, a figura composta pelo actor Jean Yanne está no limite do insuportável, sobretudo para os padrões actuais: patilhas que parecem um par de orelhas de caniche, cabelo mais ou menos comprido, algo despenteado e enrolado atrás, camisa normalmente aberta de onde sobressai uma autêntica carpete formada pelos negros cabelos do peito, enfim, o cro-magnon dos anos setenta do século vinte. Não riam, porque nos dias que correm andam por aí umas modas, nomeadamente nos penteados, que são ainda mais risíveis. Seja como for, a mulher a quem Jean maltrata com desusada frequência não pode ser mais mignonne, serena e bonitinha. Mas, e não podemos deixar de o dizer, pertence ao grupo daquelas a que se aplica o velho ditado “quanto mais me bates, mais gosto de ti”. Tudo parecia conjugar-se para sairmos do cinema com a visão de uma história de faca e alguidar mas, milagre de São Pialat, o que vemos constitui um exercício rigorosamente planificado e estruturado que nos dirige a atenção para os meandros da vida em comum e que alcança o patamar maior de reconhecimento identitário quando uma personagem feminina procura reivindicar a sua personalidade face a um sedutor falocrata.

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Quando o Amor Acaba
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Exercício sobre os abismos da alma que interferem na vida do casal, neste caso dos casais, mesmo quando ainda uma centelha de verdadeiro amor se vislumbra. Tudo servido por uma aguda sensibilidade para os mais ínfimos pormenores que contaminam, no bom sentido da palavra, o realismo e a força da maioria dos diálogos. De igual modo, nas frequentes viagens de carro, nos momentos de pausa e lazer, a dura realidade da vida a dois não dispensa o humor. Recordo particularmente uma escapadela até uma pequena cidade portuária onde era suposto Jean e Catherine passarem uns belos dias enrolados na cama. Por corte rápido face aos planos anteriores vemo-los no interior do quarto, janela aberta. Lá fora, uma marina com barcos de pesca e recreio. Passa um avião, ruído infernal. Jean olha para Catherine como quem diz “mas que merda vem a ser esta?” Entretanto ouve-se a sirene de um barco. Mais barulho e mais uma ocasião para Jean ficar com ar de poucos amigos. Ela procura apaziguar o azedume e assinala que ali perto, no cais, estão a preparar uma festa, um baile nocturno. Já se ouvem acordes de uma qualquer orquestra regional. E Jean responde com o ar mais lixado do mundo: “Oh, que bom. Isso não vai fazer barulho nenhum.” O Trágico e o Cómico juntos numa mesma sequência. O saber ser sério e o saber usar o humor com subtileza. Prova maior da arte e engenho de um cineasta que vale a pena recordar ou descobrir neste Verão de algumas mas poucas grandes estreias em sala.

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Quando o Amor Acaba, em análise
Quando o Amor Acaba

Movie title: Nous ne vieillirons pas ensemble

Director(s): Maurice Pialat

Actor(s): Jean Yanne, Christine Fabréga, Marlène Jobert

Genre: Drama, 1972, 110min

  • João Garção Borges - 80
80

Conclusão:

PRÓS: Belo exercício sobre a dificuldade de ser um casal, mesmo quando se apagam as fugazes luzes da paixão, ou melhor, sobretudo quando o amor ainda não acabou.

Em 1972, Jean Yanne, muito justamente, recebeu o Prémio de Melhor Actor no Festival de Cannes.

CONTRA: Nada.

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