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A Infância Nua, em análise

A Leopardo Filmes dá a conhecer “A Infância Nua”, uma obra do aclamado cineasta Maurice Pialat.

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L’ENFANCE NUE (A INFÂNCIA NUA), 1969, foi a primeira longa-metragem realizada pelo cineasta, argumentista e actor Maurice Pialat, um dos nomes maiores do cinema francês e mundial. Pialat nasceu em Cunlhat, comuna do Pays-de-Dôme na região de Auvergne-Rhône Alpes, no que se pode apelidar, nem sempre de forma lisonjeira, a França profunda. De início procurou seguir a carreira de pintor, ou melhor, uma actividade com alguma expressão no contexto das artes plásticas, mas as voltas do destino acabaram por não lhe dar o enquadramento desejado para seguir em frente com a sua obra pictórica e alcançar o almejado sucesso no plano profissional. Era ainda um adolescente quando adquiriu uma câmara de 16mm que utilizou para realizar alguns documentários antes de assinar a sua primeira curta-metragem digna de nota, L’AMOUR EXISTE (O AMOR EXISTE), 1960. Entretanto, já antes experimentara passar para o lado de lá da objectiva, como actor, num filme intitulado LE JEU DE LA NUIT, 1957, realizado por Daniel Costelle. Durante esses anos primordiais em que foi adquirindo experiência e aproveitando para demonstrar as suas inegáveis qualidades artísticas no meio cinematográfico, apostou sobretudo nos caminhos do formato curto até ao dia em que, com o apoio de outros cineastas e produtores como François Truffaut e Claude Berri, avançou em boa hora para o domínio da longa-metragem. Precisamente com o filme que nesta análise destacamos, um dos dois que se encontravam inéditos comercialmente em Portugal e que a LEOPARDO FILMES e a MEDEIA FILMES nos propõem agora em estreia na mais do que louvável iniciativa de programação a que deram o nome UM VERÃO COM MAURICE PIALAT.

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A Infância Nua
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 QUEM ÉS TU, FRANÇOIS…? QUEM FOSTE TU, PIALAT…?

Neste filme, com data de 1969 mas que podia muito bem ser representativo da atmosfera vivida em França no período revolucionário do Maio de 68 (jornadas gloriosas plenas de esperança num futuro melhor, mas igualmente contaminadas por um bom número de ilusões e de contradições políticas, ideológicas e sociais), veremos logo no início como a mobilização da classe operária se fazia sentir na região mineira do norte da França onde vamos encontrar o protagonista, François (excelente presença de um muito jovem mas expressivo actor, Michel Tarrazon). François vive com uma família modesta que o adoptou, pequena-burguesia que se distingue por sinais exteriores, não de riqueza mas de algum possível conforto, já que possuem um carro, coisa rara por aquelas bandas muito deprimidas do ponto de vista económico. Ele foi aceite numa espécie de acolhimento solidário, mas que iremos perceber não se inserir necessariamente num qualquer acto de natureza altruísta, uma vez que a Assistência Social paga ao casal que o alberga uma quantia relativamente interessante para satisfazer as necessidades básicas da criança. François partilha a casa com a “sua” mãe e o “seu” pai, e também com a “sua” irmã, filha única do casal. Mas François não é um miúdo qualquer. Na verdade, o seu comportamento deixa muito a desejar e numa ou outra ocasião demonstra laivos de crueldade, por exemplo, para com o gato preto da irmã, que lança pelas escadas abaixo. Resultado, o pobre animal fica em muito mau estado. Depois, cinicamente ele diz que vai cuidar do maltratado felino, coisa que adivinhamos não ser inteiramente verdade. No entanto, há um outro sinal de afecto para com o animal que nos faz interrogar sobre qual será mesmo a personalidade do rapaz, que raio de valores são os que ele considera seus, mesmo quando isso significa um posicionamento do estilo “sozinho contra o mundo”. E, quando o contrariam, parte quase sempre para a luta de forma violenta e sem olhar a meios para obter os fins. Maurice Pialat não faz quaisquer concessões no modo  como formata a personagem de François a partir de um molde que apetece quebrar e fazer desaparecer, mas que o cineasta enquanto realizador faz perdurar para obter assim o contraste entre a vida do protagonista e as vidas dos que o rodeiam e com ele se cruzam, quer queiram quer não. Turbulências mais ou menos agressivas que por um lado definem uma personalidade e por outro enriquecem a composição com uma caução de rigor e veracidade, um realismo sem artifícios que Maurice Pialat quis impor numa estrutura ficcional em que a interacção entre os actores, na sua grande maioria não-profissionais, sublinha a autenticidade daquilo que vemos. Sem nunca abandonar os pressupostos da ficção, o realizador usa com grande mestria a simbiose da narrativa clássica com a estrutura mais próxima do cinema documental. Muitas vezes chega a ser difícil distinguir o que foi estudado, ensaiado e representado do que foi produto de uma certa espontaneidade ou improvisação e, diria mesmo, resultado de uma grande sinceridade depositada nos diálogos e na definição das situações dramaticamente relevantes para o desenvolvimento das principais linhas da acção. Depois de o vermos com a referida primeira família, François será por esta descartado, e mais uma vez as autoridades que gerem a adopção de jovens órfãos ou simplesmente abandonados como ele são obrigadas a intervir e vemo-lo então ingressar no seio de uma nova família, desta vez um casal de meia-idade que já adoptara um outro rapaz, mais velho do que François. Na sua nova morada irá encontrar da parte de quem o acolhe com entusiasmo e paciente compreensão o conforto espiritual que parecia faltar ao ser rebelde e insubmisso que na escola ou fora dela brigava por dá cá aquela palha. De início as coisas pareciam bem encaminhadas, mas nada feito, aqui e além volta a explodir em actos de violência sempre que o contrariam ou quando se sente limitado na “sua” liberdade individual, algo egoísta. Gradualmente vai aprender a dominar a fúria de viver, e chega mesmo a encontrar o ponto de equilíbrio que o mantém nos limites da sociabilidade que lhe era pedida. Tudo parecia ir resolver-se rumo a um futuro radioso, mesmo sem os amanhãs que cantam, mas o desalmado François leva longe de mais o seu individualismo, provocando um grave acidente. Próxima paragem, reformatório. E será de lá que vai enviar uma carta ao casal de idosos que guarda na memória, cujas linhas serão lidas na sequência derradeira de A INFÂNCIA NUA. Palavras que constituem a síntese moral e cáustica deste filme absolutamente fundamental que precisa de ser visto com olhar atento para melhor apreciarmos a voz e a razão de François nesse final epistolar e para confirmarmos o que desde o início pressentimos: ou seja, que Maurice Pialat, logo na sua primeira obra de fôlego, demonstrou que a linguagem do cinema era a sua preferida, a que melhor dominava e a que melhor sabia usar para nos dar o retrato da vida de homens, mulheres e crianças de carne e osso que não precisam de ser meros peões de um argumento pré-definido, mas sim actores de corpo inteiro a fazer de conta que as suas vidas, as suas ambições, os seus amores e desamores, não são afinal um faz de conta. Um filme com pessoas a sério realizado por alguém que as levava a sério. Indispensável. Para ver ou rever num grande ecrã, uma obra feita de imagens (excelente fotografia a cores) e sons (com predominância do discurso directo captado durante a rodagem) que nos convidam de forma palpitante a descobrir ou revisitar a restante filmografia de Maurice Pialat.

A Infância Nua
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A Infância Nua, em análise
A Infância Nua

Movie title: L'Enfance-Nue

Director(s): Maurice Pialat

Actor(s): Michel Terrazon, Linda Gutenberg, Raoul Billerey, Pierrette Deplanque

Genre: Drama, 1968, 83min

  • João Garção Borges - 100
100

Conclusão:

PRÓS: Para além da prestação dos actores, protagonista e secundários, destaque para a Direcção de Fotografia de Claude Beausoleil, de cores fortes e saturadas, que nos devolve o sabor da imagética do final dos anos sessenta.

Em 1969, recebeu o Prix Jean Vigo. Prémio que qualquer amante da sétima arte reconhece como um dos prémios máximos atribuídos em França.

CONTRA: Nada.

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