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Aos Nossos Amores, em análise

O ciclo Um Verão com Maurice Pialat relembra a carreira do cineasta com a exibição de “Aos Nossos Amores”.

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It’s that ole devil called love game
Gets behind me and keeps giving me that shock again
Put a ring in my eyes
Tears in my dreams
And rocks in my heart

Primeiros versos da canção THAT OLE DEVIL CALLED LOVE, imortalizada por Billie Holiday.

Tinha dezasseis anos quando o cineasta, argumentista e actor Maurice Pialat a foi buscar para interpretar o papel de uma adolescente na França dos anos oitenta, um espaço multi-cultural muito mais conformista e conservador do que se poderia imaginar pelos enganadores sinais exteriores da sua diversidade de opções existenciais que contrastavam, por exemplo, com a situação de outros povos submetidos a regimes muito mais fechados do ponto de vista político e ideológico. Estamos a falar da radiante Sandrine Bonnaire que assumiria, de corpo inteiro e no período que alguns apelidam os melhores anos das nossas vidas, a figura de uma mulher livre num meio social, económico e cultural cuja liberdade nem sempre era evidente, sobretudo no que diz respeito ao relacionamento entre homens e mulheres, rapazes e raparigas, jovens e menos jovens, quase sempre a braços com os mil e um desejos, sonhos e ambições inerentes ao despertar da sensualidade. Tinha dezasseis anos e a capacidade de representar com inegável versatilidade a personagem que lhe confiaram e que parece concebida de propósito para ela expressar o pulsar dos amores verdadeiros, dissimulados ou assumidos, que vai protagonizar, demonstrando estar como peixe na água num papel e numa composição de fazer inveja a muitos veteranos. Na verdade, ela carrega sobre os ombros o peso pluma do filme que aqui nos ocupa a atenção, o muito celebrado À NOS AMOURS (AOS NOSSOS AMORES), 1983, que surge agora nos ecrãs nacionais como parte integrante da primeira vaga de estreias ou reposições programadas pela MEDEIA FILMES e LEOPARDO FILMES, em cópias digitais restauradas. Trata-se de uma oportunidade única neste Verão de descobrir ou redescobrir a obra completa, apenas no que diz respeito a longas-metragens, de um dos grandes nomes do cinema francês, Maurice Pialat.

ESSE VELHO DIABO CHAMADO AMOR…!

Aos Nossos Amores
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Desde o início que vemos Suzanne (Sandrine Bonnaire) comportar-se como se fosse o olho de um furacão, numa atitude simultaneamente conservadora e subversora dos códigos dominantes da moral vigente, movimentando-se num ambiente descontraído mas que não deixa de se balizar com a aparente disciplina de um internato onde partilha as aulas e o dia-a-dia com outras raparigas, algumas delas com presença significativa no seu posterior percurso de vida. Naquela instituição onde supostamente deveria juntar o melhor dos dois mundos, segurança e educação, ela funciona como o bom mau exemplo da mulher que procura o prazer da aventura sexual, mas as contradições em que cai não lhe deixam grande margem de manobra para sentir a felicidade da vertigem sem quebrar algum grau de compromisso. Luc (Cyr Boitard), o seu mais convencional namoro juvenil, não a satisfaz e ela vai mesmo rejeitar as sucessivas aproximações do rapaz, que a certa altura receia não ser desejado por Suzanne. Maurice Pialat sabe como poucos jogar o jogo da ambiguidade, mesmo quando abre as portas para que o espectador veja de olhos bem abertos até onde Suzanne quer ir na sua descoberta do amor e, num ponto preciso de sedução pura e dura, do mais básico usufruto do sexo. Neste contexto, Suzanne irá amargamente perceber que alguns só a queriam para isso mesmo. Notável o modo como o realizador encena mil e uma opções da psicologia feminina num episódio em que, após uma noite passada com um americano, este se vira para Suzanne e lhe diz, com aquele ar de predador na posse plena da sua presa, “muito obrigado”. E ela responde-lhe que não precisava de agradecer porque era de graça. No dia seguinte, quando dá conta da sua ingenuidade quase infantil, quando percebe que o rapaz de ontem nem sequer olhava hoje para ela, fingindo não a ver, fica furiosa e lembra-se da angústia que sentira a meio da noite já no dormitório, momento em que a memória de Luc e a do “pecado americano” geraram na sua alma a má-consciência associada ao acto, acrescida das interrogações sobre o que realmente queria para si, que no limite a fazem chorar.

Aos Nossos Amores
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Seja como for, os reveses da fortuna com os amores furtivos ou fugazes não a demovem de seguir em frente na sua peregrinação pelos caminhos, ora luminosos ora sombrios, de inúmeras relações, mesmo quando não consegue apagar a memória de Luc que prevalece como um fantasma daqueles momentos perdidos num passado não muito longínquo, uma óbvia oportunidade perdida de encontrar uma réstia que fosse de equilíbrio existencial. Tudo se complica, aliás, quando de regresso ao seio familiar Suzanne enfrenta um pai conservador (papel defendido pelo próprio Maurice Pialat), uma mãe ainda mais conservadora e algo histérica (Evelyne Ker), e um irmão autoritário (Dominique Besnehard) que a partir do momento em que o pai sai de casa parece querer desempenhar o papel do herdeiro de um negócio paterno e de um estilo de vida que não era o da sua família. Para o alcançar não olha a meios nem a modelos de afirmação pessoal, nomeadamente dissimulando mal uma identidade sexual marcada por uma evidente ambivalência, como se fosse o dono e senhor do destino dos seus mais próximos. Bate com frequência na irmã, impõe uma ordem moral caduca e no final das contas não consegue mais do que protagonizar algumas das sequências mais difíceis de visionar num filme que, como habitualmente sucede na obra de Maurice Pialat, não faz concessões ao melodrama nem aos rodriguinhos que estão por detrás das situações descritas sem papas na língua nem se serve de processos adocicados de encenação que, para os devidos efeitos dramáticos, não eram para aqui chamados. Ruído, só o da engrenagem que move os conflitos que aceleram ou desaceleram a acção, os gerados pela amarga confrontação inscrita nos diálogos incisivos que parecem muitas vezes improvisados, sim, mas a partir de um guião preciso. Não, não estamos no domínio do cada um fala o que julga melhor para o momento que ali se regista, muitas vezes em planos-sequência concebidos com milimétrica precisão. Há uma matriz previamente escrita, e sobre essa base deixa-se que os actores exponham a matéria ficcional e se exponham a eles mesmos. Isso fica muito claro na flagrante e gradual evolução da personagem de Suzanne/Sandrine Bonnaire. Há alturas em que uma e outra se confundem, sem nunca deixar uma de corresponder a uma emanação ficcional e outra ao corpo que lhe confere o sopro vital, a caução de verdade e autenticidade que nos faz cúmplices delas e do seu destino, marcado por esse diabólico sentir do amor, o fogo que arde sem se ver. Porque aqui, mesmo que fosse possível vermos o invisível, não precisamos de o ver. Suzanne não vive por influência de Deus ou do destino, mas sim muito provavelmente por empurrões sucessivos do Diabo. E a propósito, quando o filme parecia entrar na rotina dos amores e desamores de uma rapariga cada vez mais adulta e domesticada, Maurice Pialat, na imponente figura do pai, regressa por instantes ao seu lar para, se calhar sem querer, interromper uma festa que o seu filho convocara para saudar o sucesso plutocrático e profissional. Nesse delicioso confronto despeja o seu ódio de estimação pela vulgaridade e pretensiosismo pequeno-burguês que ali imperava, dir-se-ia hoje o conformismo da classe média confortavelmente instalada. Uma sequência que se pode ler como a profissão de fé do autor que desde sempre lutou contra a mediocridade dos remediados pelos bons sentimentos de uma falsa moral conservadora, favorecendo a ideia de que precisamos da plena afirmação pessoal quando pensamos o futuro que desejamos assumir, contando com as nossas próprias forças. Por isso, a relação final do pai e da filha, de Maurice Pialat e Sandrine Bonnaire, no plano da ficção, surge como o vértice de uma pirâmide construída como as antigas edificações do Antigo Egipto, revestidas de pedra calcária polida, concebidas para brilhar ao Sol como um prisma de luz que nos atrai e seduz no meio do deserto, como o olhar e a presença de uma jovem actriz que se afirmava no filme AOS NOSSOS AMORES.

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Aos Nossos Amores
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Aos Nossos Amores, em análise
Aos Nossos Amores

Movie title: À nos amours

Director(s): Maurice Pialat

Actor(s): Sandrine Bonnaire, Evelyne Ker, Dominique Besnehard, Maurice Pialat

Genre: Drama, 1983, 99min

  • João Garção Borges - 90
90

Conclusão:

PRÓS: Tudo o que disse, e nunca será demais referir a magnífica presença da actriz Sandrine Bonnaire, que aqui se estreava na longa-metragem com os seus luminosos dezasseis anos de idade.

Em 1983, recebeu o Prémio Louis Delluc.

Em 1984, recebeu nos Prémios César o galardão para Melhor Filme, e ainda o de Melhor Actriz Promessa, naturalmente para Sandrine Bonnaire.

CONTRA: Nada.

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