Queer Lisboa ’23 | Peafowl, a Crítica
A arte do Waacking e o rito tradicional coreano estão em ênfase no primeiro filme de Byun Sung-bin. “Peafowl” aparece-nos em destaque na programação do 27º Queer Lisboa, onde integra a Competição de Longas-Metragens e traz a maravilhosa energia de Choi Hae-jun à capital portuguesa.
Na ocasião em que o cinema se propõe a celebrar formas de arte além do mainstream, existe sempre aquela questão de casting e produção. Dever-se-ia trazer os artistas marginalizados para o grande ecrã ou dar liberdade aos cineastas para fazerem a sua mesma interpretação? Quando se escolhe a primeira opção, corre-se o risco da adaptação mal feita, as demandas da câmara negligenciadas por alguém sem experiência em plateau. Quando se vai pela segunda via, há o perigo de inautenticidade, cheirinhos de turismo cultural ao invés de apreciação honesta. Basta vermos os muitos filmes sobre drag para verificar os dois lados da questão.
Sem cair no dogma, parece-nos que a colaboração de artistas do meio retratado é a abordagem preferível. “Peafowl” de Byun Sung-bin é prova disso mesmo, trazendo a grande Choi Hae-jun diante da câmara para interpretar alguém que, como ela, faz a vida à conta do Waacking, uma forma de dança com origem na subcultura queer, em antecedente direto do Voguing. Testemunhar a sua performance bailarina é um assombro, mesmo quando a personagem fraqueja, revelando toda a nuance e mestria de uma artista consagrada. A filmagem do seu movimento também ajuda, pois claro, com o ecrã em rendição completa à dança.
Byun Sung-bin vai contra as tradições modernas da coreografia filmada, evitando a montagem intensa em prol de takes longos e contínuos, quase no jeito de planos-sequência. A câmara perscruta a intimidade emocional da personagem com ocasionais aproximações, mas há uma distância sagrada para permitir o vislumbre do corpo. As linhas da dança são o que mais interessa, especialmente as oscilações de fluidez e staccato na transição de uma pose para outra. Há muito realizador de musicais de grande orçamento que poderia aprender uma coisa ou duas com “Peafowl”. Essa disciplina formal com foco na expressão física, uma autêntica raridade em Hollywood.
Dito isso, esta obra não é nenhuma abstração dançante, Waacking contra Waacking sem pausa. De facto, ainda mais prevalente que essa arte marginal é o ritual tradicional Coreano, seus muitos códigos e musicalidade, danças com peso espiritual que estabelecem pontes entre a vida terrena e o além, o mortal e o divino. O contraste das duas disciplinas é crucial, mas cheio de percalços, culminando num casamento glorioso entre estilos que se pensariam antagónicos. Reconciliando o antigo e o moderno, a religiosidade conservadora com a liberação queer, “Peafowl” alcança um estado de graça em que passado, presente e futuro dançam num só corpo.
Tais transformações através de Myung, uma mulher trans interpretada por Choi Hae-jun, que conhecemos no fulgor da competição. Ela chegou à final de um torneio de Waacking, seus olhos focados no prémio de 10,000 dólares com que conseguirá pagar as cirurgias necessárias para ser considerada mulher à lei da Coreia. Senão, Myung terá que cumprir o serviço militar obrigatório enquanto homem. O desespero é tão forte que é quase palpável, fazendo o ar pesar num espetáculo que mais parece um duelo de vida ou morte. Para sua grande tristeza, Myung fica no segundo lugar e, de volta ao camarim, recebe um telefonema com mais más notícias – o pai morreu.
Dizer que são más notícias pode ser erróneo, contudo. Há muito que a bailarina havia cortado relações com a família, sua mão queimada uma lembrança da violência paterna, do ódio transfóbico. O funeral é mais uma procissão de indignidades, acentuadas pela desconexão de Myung para com as suas bases de apoio, lá longe na cidade e não nesta terra natal, algures na ruralidade coreana. Em situação ideal, a nossa protagonista seguiria em frente com a vida e nunca olharia para trás. Mas há a questão do dinheiro para a cirurgia e uma oferta tentadora. O pai de Myung ensinava práticas tradicionais e, como último desejo, terá incumbido o seu aprendiz de garantir a presença da filha nos ritos do luto.
O guião escrito por Byun Sung-bin prende-se no movimento circular entre campo e metrópoles, dois mundos cujos valores dilaceram uma heroína cuja vontade para perdoar é pouca, especialmente quando o tio perpetua os preconceitos que o pai tinha praticado em vida. Gradualmente, o texto vai esmiuçando as realidades queer neste cenário hostil, investigando o passado familiar numa odisseia pela qual Myung descobre novas dimensões dos seus antepassados. Um grande elenco de personagens coloridas vai-se revelando, pouco a pouco, cada detalhe mais uma pincelada neste mural cinematográfico. Contudo, este é um estudo de personagem individual, muito dependente do seu centro dramático.
Felizmente, Choi Hae-jun é uma estrela incandescente, tão capaz de dançar as profundezas da alma como de os articular em diálogos altivos, lágrimas e raiva na quebra da resiliência. Dela vem a ligação entre os mundos que a dança tanto invoca, ancorando acessos de realismo mágico e simbolismos animais na vertigem do cinema de fé, folclórico e fantástico. Se o seu brilho não nos cega a algumas máculas da fita, isso não é culpa da atriz que tudo faz para elevar “Peafowl” às antípodas do género. Enfim, alguns gestos narrativos sentem-se forçados, detalhes estruturais caem no desequilíbrio e nem todos os mistérios nos parecem necessários.
Contudo, apontamentos aparte, a forma geral do projeto é digna de aplausos. “Peafowl” é maravilhoso desde o primeiro espetáculo de Waacking até à suas conclusões acerca do perdão. Esse é feito para nosso benefício, para a sanidade e para o espírito – não para desculpabilizar aqueles que nos feriram.
Peafowl, em análise
Movie title: Peafowl
Date published: 29 de September de 2023
Director(s): Byun Sung-bin
Actor(s): Choi Hae-jun, Ko Jae-hyun, Kim Woo-kyum, Kim Jin-soo, Hwang Jeong-min, Ki Joo-bong
Genre: Drama, 2022, 115 min.
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Cláudio Alves - 75
CONCLUSÃO:
“Peafowl” concede-nos esse raro deslumbramento do filme de dança bem filmado, coreografado, interpretado por artistas da área capazes de capturar o milagre do corpo em movimento sem as falsidades de um fingimento teatral. Choi Hae-Jun e Byun Sung-bin são grande dupla de musa e cineasta, dando aso a uma narrativa trans que, sem chegar à perfeição, comove muito e confronta o espetador com noções desafiadoras de tradição e modernidade. Trata-se de uma joia de cinema independente sul-coreano e o primeiro capítulo na história de um realizador com muito potencial.
O MELHOR: O magnetismo de Choi Hae-jun, sua dança e o modo como Byun Sung-bin a filma nesses momentos de maior expressividade.
O PIOR: Algumas resoluções perto do final são muito apressadas e não fazem sentido com as psicologias anteriormente definidas no texto. Percebemos a vontade de correr na direção do clímax, mas é preciso ter calma e sustentar a catarse total.
CA