©Queer Lisboa/ American Genre Film Archive

Queer Lisboa ’22 | All About Alice, em análise

“All About Alice” (1972) abriu, a 17 de setembro de 2022, um dos principais ciclos do Queer Lisboa 26, em colaboração com a Cinemateca Portuguesa – a retrospetiva Notes on Camp: o Delírio Drag do Gay Girls Riding Club. Como o nome deixa indiciar, esta longa-metragem repleta de queerness homenageia e parodia, em igual medida, o clássico de Hollywood “All About Eve” (1950). 

Em 2022, a Cinemateca Portuguesa, em cooperação com o Queer Lisboa, exibiu pela primeiríssima vez os filmes do coletivo norte-americano Gay Girls Riding Club, um coletivo que parodiou, com as suas exuberantes versões camp, clássicos de Hollywood seus contemporâneos. Este coletivo era composto por um conjunto de homens abastados, na sua vasta maioria trabalhadores da indústria de Hollywood, que durante o período da década de 1960 e 1970 tiveram uma influência preponderante na criação de uma cena paralela, underground e muito relevante para o desenvolvimento de uma contra-cultura gay.

Com Ray Harrison como realizador, que inicialmente começou por assinar com o nome Connie B. de Mille (trocadilho com o nome do realizador Cecil B. DeMille), este coletivo era formado por um grupo de homens gays que se reuniam ao fim de semana para andar a cavalo no emblemático Griffith Park. Eram pessoas que conheciam bem a indústria de Hollywood e, para além da sua importância como promotores de eventos na cena drag local, transportavam também a linguagem drag para os seus filmes, num gesto irreverente e que nesta altura era tudo menos corriqueiro.

A muitas décadas de distância da incorporação da cultura drag no mainstream através do mundo da reality tv, Ray Harrison e os restantes membros do Gay Girls Riding Club criaram uma sub-cultura cinematográfica subversiva que se viu esquecida durante muito tempo e que agora é finalmente recuperada. Na Cinemateca, projetaram-se cinco dos sete filmes realizados pelo coletivo, na sua vasta maioria curtas-metragens (dois dos filmes foram infelizmente perdidos).

Estes são restauros muito recentes, agora distribuídos pela American Genre Film Archive, nunca antes apresentados na Cinemateca e que João Ferreira, Diretor Artístico do Queer, apresentou em sala com amplo orgulho, reforçando como o Queer Lisboa se afirma como um dos primeiros festivais a colocar estas obras em retrospetiva.

Tal como é defendido no website da Cinemateca:

Largamente desconhecidos depois da data da sua produção, num período em que as vidas gay eram habitualmente retratadas como trágicas no cinema, esses filmes são hoje um documento essencial da afirmação de uma identidade positiva gay antes de Stonewall.

Neste período revolucionário, em que as pessoas LGBTQIA+ não tinham ainda os seus direitos garantidos, mas em que lutavam arduamente por essa mesma afirmação, o trabalho das Gay Girls Riding Club é uma declaração de felicidade e de campness  – caracterizada por “gayness” ou felicidade, exuberância, gestos exagerados, teatralidade e uma curiosidade sexual pecaminosamente ausente do tão puritano cinema mainstream.

A primeira exibição no Queer Lisboa ’22, programada e apresentada na Sala M.Félix Ribeiro, foi “All About Alice”, obra de 1972, a única longa-metragem realizada pelo coletivo. Ademais, este foi também o último projeto cinéfilo das G.G.R.C , o único estreado em sala, e o primeiro e único a contar com tecnologia a cores e com som síncrono. Todas as curtas-metragens prévias, apresentadas ao longo da semana no Queer, não só haviam contado com tecnologia a preto e branco como com sistema de intertítulos típico do período do mudo (com a muito esporádica palavra gravada ouvida aqui e ali, mas sem som direto no set).

Auto-financiados, estes projetos caracterizavam-se pela modéstia económica e por isso podemos dizer que “All About Alice” foi a mais ambiciosa entre as edificações do coletivo. Ao total, foi filmado em 12 dias intercalados e contou com 10 mil dólares de orçamento. Muito para este género de paródia, mas pouco para o mundo que aqui se encontrava a ser mimetizado.

all about eve critica queerlisboa
“All About Eve” é a inspiração para a paródia drag de “All About Alice” | © Twentieth Century Fox

Não obstante, a falta de orçamento não tira qualquer graça a “All About Alice”, uma homenagem e paródia a “All About Eve”, melodrama já de si profundamente teatral acerca dos jogos de poder que decorrem nos bastidores da indústria do teatro e do cinema. O enredo de “All About Alice” é referencia quase ipsis verbis do desenrolar de eventos de “All About Eve” e também do musical “Applause” (1970, Lauren Baccall), uma adaptação ao teatro de “All About Eve”, que por si só se baseava no texto literário “The Wisdom of Eve”.

A transversalidade das suas temáticas persiste: Quer falemos da grande diva que é Lauren Baccall no teatro, ou acima de tudo, da tumultuosa Margo Channing (Bette Davis), uma poderosa e glamorosa protagonista que nos mostra, de forma perfeitamente intemporal, alguns dos demónios que atormentam uma performer que se sente ultrapassada pelo peso da idade. E eis que surge o cliché da ingénue, uma rapariga jovem e, à primeira vista, desprovida de quaisquer intenções nefastas, que virá, pé ante pé, tentar imiscuir-se na arte e na vida privada de Margo. Ela é Eve Harrington (Anne Baxter), uma caricatural personagem vil que representa o preço da fama.

O melodrama oscarizado escrito e realizado por Joseph L. Mankiewicz já é por si bastante acídico e irónico, deixando bem patentes as lutas de poder nos bastidores da indústria de entretenimento (e o quão deliciosamente vãs elas podem na realidade ser). As suas personagens e atos são por vezes também caricaturais da forma mais extremada e Ray Harrison e companhia são livres na sua abordagem desta teatralidade, levando-a a novos voos.

Margo Channing (Bette Davis) é, na sua versão drag e numa aliteração divertida, Mona Manning, interpretada por Warren Fremming, numa hilariante versão exagerada da grande diva. Agora, os seus gestos são mais grosseiros, os seus maneirismos mais vincados, a sua irascibilidade mais notória e pejada de palavras feias que uma “senhora” da década de 50 não ousaria a proferir no grande ecrã. Brinca-se com os estereótipos de género, sem nunca desvirtuar de forma alguma a narrativa original que aqui é alvo de spoof.

American Genre Film Archive Queer
©American Genre Film Archive

Quanto a Jarman Christopher no papel de Alice Barrington, ou seja, Eve Harrington, é possivelmente uma Eve ainda melhor que a Eve do filme original. Porquê? Porque é mais livre, mais politicamente incorreta, porque ao invés de apenas se insinuar junto do noivo de Margo/Mona, chega a vias de facto com ele, de forma gráfica e provocadora. Porque não se limita a representar o cliché de uma mulher invejosa e oportunista, imagem que há tanto tempo alimenta a pouco saudável rivalidade feminina. Subverte-a, dá-lhe uma outra densidade inesperada, suspende a divisão entre feminino e masculino e confronta-a com enorme bravura.

Como sátira do showbiz e como representação de um coletivo precursor, “All About Alice” é um documento histórico de grande relevância. É  também uma homenagem orgulhosamente exagerada, e foi um prazer vê-la exibida no Queer Lisboa 26. 

SPOT OFICIAL QUEER LISBOA COM ALL ABOUT ALICE, ENTRE OUTROS TÍTULOS

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *