Queer Lisboa ’22 | Bruscamente no Verão Passado, em análise

“Bruscamente no Verão Passado,” também conhecido como “Suddenly, Last Summer,” passou na Cinemateca Portuguesa como parte de um programa feito em colaboração com o Queer Lisboa. O filme, realizado por Joseph L. Mankiewicz, baseia-se numa peça de Tennessee Williams, com argumento coassinado por Gore Vidal. Katharine Hepburn, Elizabeth Taylor e Montgomery Clift protagonizam a fita, sendo que ambas as atrizes conquistaram nomeações para os Óscares de 1959. Também a cenografia valeu uma indicação para os Prémios da Academia, sublinhando o prestígio desta adaptação que, apesar disso, era detestada pelo seu autor.

Há poucos nomes mais importantes na História do Teatro Americano do que Tennessee Williams, autor queer por excelência que se tornou num dos dramaturgos mais amados do circuito. Era um dos mais controversos também. Nas décadas de 50 e 60, Hollywood deixou-se enfeitiçar pelos textos desse enfant terrible do Mississippi, levando muitos dos seus trabalhos mais célebres até ao grande ecrã. A febre começou com “Algemas de Cristal” em 1950 e chegou até ao “Parente Mais Próximo” em 1970, antes da adaptação de Williams passar a ser um fenómeno primariamente televisivo. É claro, contudo, que este processo de tradução de um meio para o outro nem sempre foi fácil, especialmente quando os preceitos do Hays Code ainda eram regra.

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© Columbia Pictures

Muitas das peças mais famosas de Tennessee Williams abordam temas de pressuposta devassidão sexual, nostalgia sulista suada e grotesco feminino. São esses fatores que o tornam num ícone tão grande da comunidade queer do seu tempo e do nossos, assim como titã de sensibilidades camp insidiadas no mainstream. No entanto, os mesmos temas colocaram grandes obstáculos na sua disseminação enquanto arte populista numa sociedade regida por valores conservadores. “Algemas de Cristal,” esse primeiro triunfo teatral e primeira adaptação cinematográfica, teve de ser reescrito com um final feliz. Um fado semelhante caiu sobre “Um Elétrico Chamado Desejo,” se bem que, nesse caso, ainda houve a excisão de referências diretas a homossexualidade.

Estes cortes e adições, esta censura flagrante, chegaram a epítetos tão grandes que ameaçavam fazer resvalar os filmes na incoerência. “Gato em Telhado de Zinco Quente” perde muito valor quando transposto para o grande ecrã, a personagem principal tornada num mistério eufemístico ao invés do homem gay preso num matrimónio hétero que protagonizou o texto em palco. A chave para fazer chegar o teatro de Williams ao cinema sem demasiadas mudanças estava no tenor moral do trabalho. Se o texto punisse a figura homossexual, transfigurando-a em monstro com um final trágico a condizer, então não haveria necessidade de lápis azul. Foi desse jeito que “Bruscamente no Verão Passado” chegou ao cinema.

Originalmente produzido fora da Broadway, a peça de um ato integrava-se numa dupla encenação juntamente com “Something Unspoken.” Para tornar a ação mais cinemática, Gore Vidal tentou expandir a narrativa, mas manteve uma estrutura apoiada em cenas longas orientadas por preceitos teatrais, cheias de monólogos e entradas dramáticas. Williams recebeu crédito pelo argumento, mas em nada ajudou – de facto, ele odiou o resultado final destes gestos adaptativos. O principal fulgor da obra mantém-se intacto, contudo, só que esculpido em torno de histeria moralista que chega ao seu apogeu numa comprida cena de flashback. Pela sua parte, o realizador Joseph L. Mankiewicz deixou-se levar pela natureza venal do conto, estilizando o filme com cenografias lúridas, montagem que choca e música muito estridente.

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Também o trabalho de ator segue essa onda de exagero maligno com traços de kitsch, mas, antes de considerarmos caracterizações era melhor apresentar uma sinopse básica. “Bruscamente no Verão Passado” decorre em Nova Orleães no ano de 1937, quando John Cukrowicz é um brilhante neurocirurgião em busca de financiamento para o hospital estatal onde conduz as suas experiências. Um dia, ele é contactado por Violet Venable, uma abastada viúva com uma proposta interessante. Acontece que várias tragédias lhe assolaram a família, nomeadamente a morte do seu adorado filho, Sebastian, e a institucionalização de Catherine Holly, sua sobrinha e a última pessoa a ver o defunto em vida.

O plano da Sra. Venable é simples – ela fará uma doação milionária ao hospital se Cukrowicz tratar de Catherine e a submeta a uma lobotomia. Quiçá outra pessoa fosse capaz de esconder o veneno por detrás da oferta, mas as intenções da Mecenas são claras. Há que se silenciar Catherine a qualquer custo, impedi-la de revelar os segredos sórdidos de Sebastian, desde a natureza dos seus desejos à realidade da morte. O único problema é que, deparando-se com a nova paciente, o cirurgião vê-se encurralado numa situação em que a consciência pesa e a hipocrisia se torna demasiado grande para engolir. Talvez ele também se apaixone por Catherine, mas isso pouco interessa para a resolução da história. O fulcral é que a verdade venha ao de cima numa confrontação encenada no jardim da mansão Venable, essa selva de plantas carnívoras e escultura macabra.

Montgomery Clift teve dificuldades em interpretar o Dr. Cukrowicz, sofrendo dos problemas de saúde mental que há muito lhe afetavam o trabalho e só se intensificaram depois de um acidente de automóvel lhe ter desfigurado a cara. Mankiewicz e o produtor Sam Spiegel tinham pouca paciência para aturar os problemas da estrela e os resultados da sua crueldade são evidentes no produto final. Frágil e estilhaçado, Clift parece sempre à beira da desintegração total e jamais vende a evolução emocional do médico. Elizabeth Taylor faz o que pode para compensar as falhas do colega e grande amigo, mas o pseudorromance entre as suas personagens nunca transcende a incredulidade de um mecanismo forçado.

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© Columbia Pictures

A atriz está melhor quando se deixa levar pelos excessos do guião, rendendo-se a uma quimérica mistura de técnicas arrojadas de interpretação com os artificialismos de uma Hollywood mais velha e tradicional. Seu grande momento é o clímax da fita, uma explosão de terror que parte do monólogo hipnotizado para a memória feita pesadelo. À medida que Catherine conta a história de Sebastian, como ele usava as mulheres da sua vida para aliciar homens e colmatar seus desejos sexuais, Taylor entra num transe sensacionalizado por todo o aparato cinematográfico. Desde a devassa visão de um fato de banho branco molhado até ao potencial canibalismo que marca o fim do primo, o momento é uma daquelas sequências tão obstinadas no seu mau gosto que conseguem escandalizar ainda hoje.

Seria fácil caracterizar Sebastian como o vilão mais demoníaco que Williams já escreveu, não fosse ele uma abstração cujo rosto nem sequer aparece no filme final. Se estamos à procura de vilania icónica em “Bruscamente no Verão Passado,” então é a Sra. Venable de Katharine Hepburn quem se assume como a principal candidata ao estatuto imortal. Essa campeã dos Óscares e da indústria deixa-se levar pelas passagens mais floridas do texto, declamando-as como uma gárgula em sedas alvas e discurso musical. O naturalismo não tem aqui lugar e o realismo também é repudiado, dando espaço a um desassossego bizantino tão ou mais ensandecido que o cenário envolvente – desde o jardim faminto até ao elevador do inferno que marca as entradas e saídas de Hepburn. Nela se concentram as melhores qualidades do filme, a bizarra conflagração de camp e autoflagelação, ódio e fel, o glamour doentio e a ostentação de uma drag queen que virou Anjo da Morte.

Bruscamente no Verão Passado, em análise
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Movie title: Suddenly, Last Summer

Date published: 23 de September de 2022

Director(s): Joseph L. Mankiewicz

Actor(s): Montgomery Clift, Elizabeth Taylor, Katharine Hepburn, Mercedes McCambridge, Gary Raymond, Albert Dekker, Mavis Villiers, Patricia Marmont, Joan Young

Genre: Drama, Mistério, Thriller, 1959, 114 min

  • Cláudio Alves - 75
75

CONCLUSÃO:

“Bruscamente no Verão Passado” é uma história de contradições, moralissimamente amoral e cheio de escolhas inusitadas. O cocktail que desta receita emerge combina açúcar com arsénico, muito venenoso ao mesmo tempo que delicia a língua com camp e mau gosto para dar e vender. Os atores são uma constelação de estrelas em registos díspares, uma confusão cósmica que tanto pode ser encarada com um sucesso ou um fracasso, dependendo da perspetiva.

O MELHOR: Hepburn e sua sinfonia de maldade, língua afiada e manientas psicoses.

O PIOR: Clift e a crueldade com que foi tratado nos bastidores da produção.

CA

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