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Ciclo Satyajit Ray | O Cobarde (Kapurush)

Está em destaque mais uma grande obra do cineasta Satyajit Ray, “O Cobarde”, uma obra protagonizada por Soumitra Chatterjee e Madhabi Mukherjee.

DOIS HOMENS E UMA MULHER…!

O Cobarde
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Basta ler o cartão da CENTRAL BOARD OF FILM CENSORS do governo da Índia, que antecede o genérico inicial dos filmes KAPURUSH (O COBARDE), 1965, e MAHAPURUSH (O SANTO), 1965, ambos escritos, realizados e musicados por Satyajit Ray, para depreendermos que essas duas obras se devem considerar peças de um díptico, dois filmes que podendo legitimamente ser vistos em separado (e essa foi a opção do distribuidor e exibidor em Portugal), mais bem enquadrados ficam se apreciados um a seguir ao outro, numa visão orientada para um ponto de vista particular sobre as ideias e modelos de ficção inerentes a uma então competitiva indústria cinematográfica de Bengala. De certo modo, como sucede nas artes plásticas, quando se observam quadros ou retábulos separados em duas partes distintas, mas cujos painéis articulados e uma vez unidos se completam, adquirindo assim força e razão maior por reunirem as suas qualidades individuais na visão de uma só obra. Para além do mais, no caso das referidas longas-metragens, permitindo leituras múltiplas e conjugadas que nos permitem apreciar melhor os seus valores de produção e, para o que aqui nos interessa, sobretudo os valores artísticos. Seja como for, saudemos mais uma vez a excelente iniciativa da MEDEIA FILMES e da LEOPARDO FILMES que nos oferece a reposição em sala de uma parte significativa da filmografia de Satyajit Ray nos anos cinquenta e sessenta do século passado, e ainda um exemplo do cinema de ficção que dirigiu nos anos setenta, JOY BABA FELUNATH (O DEUS ELEFANTE), 1979, que na devida altura aqui destacaremos.

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Dito isto, vamos aos filmes do díptico KAPURUSH O MAHAPURUSH, como ficou conhecido na origem. Primeiro, KAPURUSH (O COBARDE). No início damos de caras com um jovem, Amitabha Ray (interpretado por Soumitra Chatterjee), muito ansioso e agitado quando se vê impedido de seguir caminho por causa de uma avaria no carro que conduzia. O problema não parece fácil de resolver. Todavia, minutos depois, acaba por ser abordado por um cliente da estação de serviço, local onde impera aquilo a que se chama na gíria de produção o product placement, que nos faz lembrar, num misto de nostalgia e memória, algumas marcas que “marcaram” uma época. Este homem, aparentemente mais velho, Bimal Gupta (magnífica personagem composta por Haradhan Bandopadhyay), perante a falta de qualidade dos alojamentos para pernoitar na região, convida o infeliz viajante a passar a noite em sua casa. Pouco depois, na conversa que os dois estabelecem ao longo do caminho, ficamos a saber que o jovem veio de Calcutá, ganha a vida como argumentista e decidira viajar para longe daquela cidade para procurar inspiração numa zona rural e escrever o guião de um filme. Por seu lado, o anfitrião era um senhor abastado, dono de uma rica, ampla e economicamente florescente plantação de chá. Uma vez chegados a casa, uma magnífica mansão que mistura ocidente e oriente numa simbiose requintada de inegável conforto, Bimal apresenta a sua mulher a Amitabha. E será aqui que o principal conflito dramático vai começar a dar a volta ao que podia ser um argumento linear e sem grandes motivos para entusiasmos. De facto, o realizador não queria que a narrativa seguisse por esse caminho e, bem pelo contrário, quis introduzir o pauzinho que irá fazer descarrilar a engrenagem daquela “pacífica” atmosfera burguesa, desarrumando as personagens no seio daquela família socialmente respeitável. Na verdade, o jovem e a mulher do outro, a igualmente jovem Karuna (mais uma excelente presença da belíssima Madhabi Mukherjee), não são propriamente desconhecidos. Num passado mais ou menos recente tinham sido amantes, naquilo que se podia designar por uma relação difícil de concretizar numa sociedade onde, mesmo entre estudantes com algum poder económico, prevaleciam contradições e desequilíbrios motivados pelas divisões de classe, diferenças que se abatiam sobre os sentimentos individuais. Sozinho no quarto, o jovem irá recordar em flashback os momentos fulcrais que impediram a união entre os dois. Momento para o espectador partilhar a fundo a sua história pessoal. E, por isso mesmo, será igualmente aqui que se amplia a sombra da palavra COBARDE, na medida em que fica claro que Karuna estaria disposta na época a sacrificar o seu estatuto e os seus planos de vida para casar com o homem que amava, mas este não soube estar ao nível do compromisso proposto.

O Cobarde Satyajit Ray
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A personalidade de Karuna, mais forte do que a de Amithaba, não venceu as circunstâncias adversas geradas pela cobardia

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– eu diria antes hesitação – do amante que no jogo da vida não quis arriscar. Porque os espectadores passam a saber bastante mais do que a personagem do marido de Karuna, as diversas sequências que Satyajit Ray concebeu com aquela figura e com a dupla de antigos amantes (situações quotidianas de uma aparente banalidade que adquirem na estruturação da montagem uma dimensão ficcional sólida e complexa) são uma espécie de placa giratória onde a cada momento o que se mostra agora como certo pode daqui a pouco já não ser verdadeiro. Esta mise-en-scéne será motivo para acompanharmos um delicioso exercício do gato e do rato, muitas vezes gata e gato escondido com o rabo de fora, ou quase. Planos e cenas que se sucedem e onde o desenlace deste nó existencial parece iminente, para logo a seguir recuarmos ao ponto de partida, aquele onde o jovem argumentista não consegue alinhar duas palavras eficazes para despertar o fulgor de um amor que, no caso de Karuna, arrefeceu por se mostrar impraticável e impossível de consumar. Karuna a mulher pragmática, a mulher que sabe manipular o poder que possui sobre os dois homens da sua vida. O realizador mostra de novo em O COBARDE a sua perspectiva muito positiva do universo feminino, polarizando a atenção sobre a personalidade vigorosa da mulher e atribuindo a esta a resolução do que afinal vai ser a chave para encerrar este conto adaptado e filmado a partir de uma evidente reflexão sobre a fragilidade do ser masculino. Estudo sobre as cicatrizes deixadas pela indecisão de um estudante que vacilou quando se esperava o contrário. Estudo sobre a decadência moral de uma “casta” de proprietários capitalistas como Bimal que, noite após noite, afoga as rotinas e o vazio no consumo desregrado de álcool. Finalmente, estudo sobre uma mulher que sabe o que quer e para onde quer ir. Sem revelar nada, direi apenas que o olhar incisivo de Karuna, quando nos derradeiros minutos vai ao encontro de Amitabha que a espera na estação ferroviária, diz mais da filosofia deste projecto fílmico e do seu autor do que as mil e uma palavras que o pudessem eventualmente descrever. E por isso, nem mais, palavras para quê? Digo apenas, mais um filme a não perder.

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O Cobarde

Movie title: Kapurush

Date published: 9 de September de 2022

Director(s): Satyajit Ray

Actor(s): Soumitra Chatterjee, Madhabi Mukherjee, Haradhan Bannerjee

Genre: Drama, 1965, 74min

  • João Garção Borges - 85
85

Conclusão:

PRÓS: Uma cópia digital restaurada que nos permite apreciar a qualidade intrínseca da Direcção de Fotografia, da responsabilidade de Soumendu Roy, muito próxima da que se fazia nas produções americanas do pós-guerra. Nunca esquecendo a excelente prestação dos actores, assim como a força narrativa que se desprende deste conto moral indiano, com argumento, realização e música do mestre Satyajit Ray.

CONTRA: Nada. Só um pormenor: quem vir este filme não deixe de ver o seu “meio irmão”, O SANTO, que será objecto de crítica própria, aqui na MHD.

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